Memórias machistas


por Tággidi Ribeiro

Há relativamente pouco tempo, eu comecei a olhar de forma muito diferente para as  mulheres. Eu havia desde sempre sido um tanto quanto antipática a elas, ao passo que me dava muito bem com os homens, minhas companhias preferidas em todas as ocasiões. Havia, na minha trajetória, feito boas amigas, mas poucas. Havia conhecido mulheres em minha opinião interessantes, mas poucas. Tinha, no geral, pouco apreço pelo meu próprio gênero, que eu julgava dedicado em demasia à conquista da beleza e do casamento, invejoso, dado a picuinhas.

Competição feminina como mecanismo
de manutenção do patriarcado
Que haja mulheres que se encaixem nesse estereótipo não é de estranhar. Como não é de estranhar que homens se encaixem no estereótipo cerveja, futebol e mulher (que, aliás, não define o que são, mas seus interesses comezinhos, e os reduz a seres desprovidos de subjetividade, logo, pouco humanos). O fato era que eu aceitava conviver com o estereótipo masculino e rejeitava o feminino, em relação ao qual me sentia completamente deslocada.

A questão vinha de criança. Filha mais velha, tendo um irmão menor, vi a hierarquia etária ser subjugada à hierarquia de gênero. Na minha memória, esse subjugo representou a primeira contradição do mundo adulto. O discurso de autoridade era muito forte: 'respeite os mais velhos' - e eu tendia a ser obediente. Mas quando esse discurso, com o qual eu havia concordado porque me parecera justo, deu lugar àquele da constituição de gênero (embora mais novo, meu irmão tinha mais liberdade que eu por ser meninO), eu protestei.

Sei que a contradição aqui parece ser a minha. Afinal, tal experienciamento do machismo tão cedo poderia ter facilmente me levado ao enfrentamento desse status quo e à rivalização com o sexo oposto, arbitrariamente posto acima do meu. O enfrentamento se deu de fato: contestava, sempre, desobedecia. Mas em vez de tomar os homens como “inimigos”, tomei as mulheres. 

Consigo compreender o porquê: eram as mulheres que me instavam, pois que responsáveis por minha educação, a ser como elas. Aprender a cuidar da casa, ter bons modos, preservar a sexualidade foram todos ensinamentos femininos. Eram ensinamentos limitadores, me restringiam ao espaço da casa e esse era o espaço que não me interessava, não só ele, pelo menos. Eu queria mais era saber do mundo.

“Isso é o que eu vestia quando 
eu ‘Estava pedindo...’”
Bem, o mundo aconteceu comigo. Com o passar do mundo, como disse, comecei a olhar as mulheres de outra forma. Fui sabendo, conhecendo a História e histórias que, achei, fossem só minhas: histórias de abuso, de desrespeito - de violência em suas várias formas. Eu, que logo no início da adolescência me condoí com as desigualdades sociais, compreendi e rejeitei o preconceito contra negros e homossexuais, que deplorei a desproteção das crianças – eu não enxergava meu próprio rabo.

O espelho e a reflexão me reconciliaram com meu gênero. Pude compreender a minha pregressa condição de ‘antipática’ ao mesmo tempo em que entendia a mesma condição nas outras mulheres – é sempre mais fácil subjugar iguais se os fazemos julgar que não o são. Pude compreender as mulheres da minha infância e suas agruras, que eu ignorava.

Interessante é que só depois de me livrar da culpa, da ideia de ser uma mulher indigna e suja (detalhe cruel e, agora sei, comum às vítimas: era eu quem carregava a mancha pelos abusos sofridos, ainda criança e pré-adolescente, não os meus agressores), pude perceber melhor o desespero do meu gênero: o de receber de volta o silêncio que permite a violência.

Daí, o que precisei fazer foi quebrar o meu próprio silêncio.

4 comentários:

  1. Lindo e comovente o texto, Tággidi, parabéns! Acho que a competição feminina é um dos principais mecanismos de manutenção do patriarcado mesmo, desde fotos sexy de mulheres brigando com a do post, até a competição pela atenção de homens, que bem cedo é ensinada - e é uma balela. As mulheres não devem ser culpadas por isso, como você tão bem coloca, de maneira humanizante. Substituir competição por solidariedade e irmandade é muito poderoso. Adorei.

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  2. Obrigada, Roberta. :)É difícil deixar de lado a competição quando se tem medo de perder algo. O medo de não ter um homem leva muitas mulheres a aceitar qualquer coisa: comportamentos abusivos, p.ex., e a fazer qualquer coisa: eliminar a amizade de outras mulheres, p.ex.. Concordo quando você diz que o melhor caminho é o da solidariedade. Quanto a mim, ficar sozinha (não namorar ou casar) foi uma possibilidade desde a segunda adolescência (15, 16 anos), então 'antipatizar' com as mulheres era, em parte, reação à hostilidade delas e em parte ignorância (frutos da mesma cultura da competição, sem dúvida): aquilo de que eu gostava na companhia dos homens (a liberdade) não era masculino, era humano, e havia sido tirado às mulheres como se estas não fossem humanas. Aliás, uma das 'balelas' na cultura da 'competição pela atenção dos homens' é o fato de que as mulheres livres têm abertura e incentivo falsos dos machos (uso a palavra como tentativa de não generalização dos homens), mas na verdade simplesmente as desprezam ou veem-nas como inferiores.

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  3. Precisamos de mais blogs feministas pq a internet está cheia de blogs superficiais sobre mulheres que só prpondera as desigualdades de gênero. Gostaria muito que vcs tb. visitassem meu blog www.amusasemmascara.blogspot.com

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  4. Olá, Maria Aurea, obrigada pelas gentis palavras. Muito legal o seu blog. Seguimos em contato!

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