Guest Post: Quando a vida imita a arte


por Júlia Neves

Andando por um mercado de rua aqui em Berlim, me deparei com uma roupinha de bebê que dizia "got my looks from my mom and the brain from my dad" (tenho o físico da minha mãe e o cérebro do meu pai). Na hora, já reclamei com um amigo que me acompanhava no passeio: "é sempre assim, a beleza é feminina, a inteligência, masculina. Depois não sabem de onde vem estes preconceitos grotescos. É a vida imitando a arte". Ao escutar isso, meu amigo ficou aguçado e quase instantaneamente disse: "Que isso! É a arte que imita a vida!"

É a questão do ovo e da galinha, realmente. No entanto, vindo de uma base acadêmica dos estudos culturais, defendo que a arte representa sim a vida. Mas é a vida que imita a arte. Tenho forte convicção de que é a mídia (e nesta incluo tudo, música, literatura, artes plásticas, imprensa, publicidade, etc.) que dissemina discursos e, sendo assim, estereótipos e preconceitos também. Para nós dos estudos culturais, a representação de classe social, etnia, gênero e sexualidade na indústria cultural é fundamental para o entendimento de qualquer sociedade, pois parte-se do princípio de que nós, seres humanos, somos esponjas e absorvemos todo o tempo aquilo que vemos, escutamos e aprendemos em nossa volta. 

O problema é quando se cria um produto cultural de acordo com a repetição de estereótipos e preconceitos de todos os tipos, enfatizando um discurso já estabelecido e deixando pouco espaço para novas representações culturais. O documentário da diretora Jennifer Siebel Newsom, Miss Representation (com legendas em português), critica exatamente este modelo de representação de mulheres e meninas na mídia norte-americana. Em seu filme, Newsom questiona a excessiva objetificação e sexualização de mulheres na televisão, em filmes, na imprensa e em propagandas com depoimentos de mulheres importantes para a política e cultura americanas, como a ex-secretária de Estado Condoleezza Rice, a atriz Geena Davis e a comediante Margaret Cho. 



O depoimento de Newsom é a base para o enredo do documentário. Ela, que já foi atriz e hoje é diretora de cinema, conta sobre seus conflitos, dificuldades e desafios como mulher, principalmente sobre a pressão de ser constantemente julgada por sua beleza e não pelo seu intelecto. Eu, particularmente, achei esta base um tanto dramática. Embora entenda a problemática da aparência física, achei a fala dela muito emocional; um discurso com questões verdadeiras e comum a muitas mulheres, porém um tanto vitimizado. 

Mesmo assim, recomendo o documentário pelas entrevistas e pela discussão da representação midiática de mulheres que é sempre extremamente sexualizada e focada na aparência: as mulheres devem ser bonitas para que os homens possam admirá-las. Mas quando uma mulher mostra intelecto, ela é ridicularizada e alvo de piadas, é a escrota do pedaço. É o que acontece com a Hilary Clinton, com a própria Condoleezza Rice e, no Brasil, com a presidenta Dilma Rousseff. Quantas vezes não ouvi piadas que ridicularizam a presidenta por ela ser mulher: "é mal comida", "sapata", "divorciada" e por aí vai. Ou então que ela não manda, é a secretária do ex-presidente Lula; assim como Hilary Clinton só entrou na política por conta de seu marido:

O documentário de Newsom critica este tipo de misrepresentation (má representação) que circula de diversos modos na indústria cultural, em qualquer lugar do mundo, seja nos Estados Unidos, na Alemanha ou no Brasil. Na mídia, encontramos predominantemente imagens de mulheres sensuais, frágeis, em busca de um marido/provedor e, quando elas são intelectuais ou poderosas, geralmente esta imagem é passada de forma negativa. Por conta disso, há uma falta enorme de imagens de liderança feminina na mídia, já que esta posição acaba sendo ridicularizada, como mostra a foto acima. 

Em alguns de seus posts aqui no Subvertidas, a Roberta comentou sobre os comentários infelizes de celebridades brasileiras relacionados ao estupro e ao abuso de mulheres. Por mais que várias pessoas acreditem que o humor politicamente incorreto é inofensivo, estas representações preconceituosas de mulheres, negros, homossexuais e pobres consolidam-se e, pior ainda, tornam-se naturalizadas no nosso dia-a-dia, reforçando mesmo os piores estereótipos. 

Não conheço nenhum documentário que discuta isso na mídia brasileira. Seria um prato cheio, olhar de perto como as novelas representam gênero e sexualidade, por exemplo. As novelas, banalizadas por muitos, são uma das maiores fontes de cultura popular no Brasil. Muita gente diz que não vê, que acha uma bobagem, mas todo mundo conhece a história, os personagens, as intrigas. E as mulheres geralmente representam os mesmos papeis: são ou vilãs ou mocinhas; na maior parte das vezes são lindas e gostosas (padrão nacional) e fazem de tudo para ficar com o príncipe encantado. Quando bem-sucedidas, são geralmente de mau caráter ou então Virgens Marias. 

O meio termo é raridade, pois não há espaço para mulheres que não se encaixam nesses padrões e, muito menos, para a representação de outros modelos de feminilidade que não estejam limitados a tais categorias. Esses discursos proliferam-se com tanta naturalidade que nós mesmos reproduzimos vários dos comportamentos representados na telinha. E é aí que passamos a achar normal uma roupa de bebê atribuir beleza à mãe e a inteligência ao pai.

3 comentários:

  1. vc conhece o betchel test??? é um teste para avaliar a representacao feminina nos filmes... é mto legal, e assustador, pq vc percebe o nivel da representacao feminina nos filmes produzidos. veja aqui uma otima explicacao: www.youtube.com/watch?v=bLF6sAAMb4s
    e esse é o site, com a lista dos poucos filmes q passam no teste:
    bechdeltest.com/

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  2. Mano, esse nosso blog está ficando massa demais!
    Eu sempre digo, os homens têm o direito de ser feios, mulheres não, aparentemente, a pior coisa que nos pode acontecer é a feiura. Até parece!
    O começo do texto me lembrou muito o estudo da Análise do Discurso: não é uma questão de disseminação né? A gente se constitui como sujeito na língua, na ideologia, pelo discurso. Assim, quando a gente é pequena e diz "mamãe", o termo já vem cheio de significado, alguma coisa nos diz que é diferente de "papai". Os discursos preconceituosos e os preconceitos são muito mais entranhados do que a relação disseminado e disseminador. E é por isso que é tão importante brigar por "picuinha" porque quebrar o preconceito sem quebrar o discurso não vai ser possível. =*

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  3. Crocomila, eu conhecia a charge mas não os vídeos. Muito legal mesmo. Eu já estava pensando em começar a escrever sobre cinema, que é a minha área de estudo, então obrigada pelo incentivo extra!

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