Guest Post: Quem tem medo de Judith Butler?


por Júlia Neves

Ela é um dos maiores nomes na área de Estudos Culturais por suas reflexões sobre gênero, sexualidade e feminismo. Atualmente, ela tem trabalhado com as questões de imigração, identidade cultural, guerras, política e judaísmo. Mas neste (longo) post, falarei sumariamente de seu trabalho com gênero e sexualidade. Será difícil – para não dizer impossível – escrever sobre ela e explicar um pouco sobre sua obra sem ser superficial. Quando o assunto é Judith Butler, precisa-se de concentração e também de paciência, pois a argumentação é densa, as discussões são intensas e as perguntas, infinitas.

Judith Butler: "Gênero, você está 'fazendo'"
Doutora em filosofia pela Universidade de Yale, em Connecticut (EUA), Butler publicou o seu primeiro livro, intitulado Gender Trouble (traduzido como "Problemas de Gênero" no Brasil) em 1990. O livro foi um marco para a teoria feminista e, segundo vários pesquisadores, deslanchou a teoria queer dentro do meio acadêmico. Desde então, esta é uma das obras mais citadas na área de Estudos de Gênero por defender que gênero é uma categoria socialmente construída. Ou seja, o que nós entendemos do que é “ser mulher” e “ser homem” depende veementemente do nosso meio cultural.

Primeiramente, vale relembrar aqui a diferença entre sexo e gênero. O primeiro é estritamente relacionado à constituição anatômica de uma pessoa, basicamente o pênis ou/e a vagina. Já o segundo é o termo usado para falar de uma identidade de gênero que tem um caráter social e de formação do indivíduo, que seriam, predominantemente, chamados de homens e mulheres. Quando uma pessoa possui um sexo que corresponde ao seu gênero, ela é considerada cisgênero e isso é supostamente o “normal”. Mas como sabemos, muitas vezes isso não acontece. Por exemplo, uma pessoa pode nascer com uma vagina, mas sentir-se como um homem e ter uma identidade de gênero masculina, vestindo-se e comportando-se como homem.

É exatamente esta uma das maiores questões do trabalho da Butler. Ela aponta que, na nossa sociedade, este sistema binário de gêneros não comporta a diversidade que realmente existe, pois ele só oferece a possibilidade de ser homem OU mulher. Além disso, este modelo dominante mantém somente a heterossexualidade como forma de sexualidade e não comporta outras formas de desejos sexuais: nós só podemos ser homens OU mulheres e isso implica que, se formos um homem só podemos desejar sexualmente a uma mulher; e, como mulher, só podemos desejar sexualmente a um homem. Em outras palavras, não há espaço para entender homossexuais e transgêneros (indivíduos que não são cisgêneros) como indivíduos normais, mas apenas como pessoas que vivem de forma contrária às normas dominantes de gênero e heterossexualidade.

Brian Teena: o menino que nasceu menina e foi
brutalmente assassinado. Sua história fora contada no
filme "Meninos Não Choram" (1999), com Hilary Swank
A partir deste argumento, Butler defende que, para podermos estabelecer-nos como indivíduos dentro de uma sociedade, fazemos o possível para atender a essas normas e somos, até certo ponto, condicionados a repetir e imitar os modelos de masculinidade e de feminilidade a nossa volta. É aqui que entra a sua famosa teoria de performatividade de gênero. Para a Butler, nós constituímos a nossa identidade de gênero através do nosso meio cultural. Sendo assim, uma pessoa torna-se homem ou mulher a partir da repetição e reiteração de gestos, linguagem, discursos, atitudes e comportamentos que ela vê e incorpora a sua volta.

É bom ressaltar que esta repetição não é consciente, nós mesmos não temos controle sobre isso. No entanto, Butler acredita que todos nós somos capazes de reflexão e, portanto, também podemos subverter essas normas, a partir do momento de que nós mesmos, na esfera individual, passamos a agir e a nos comportarmos contra elas. Assim que mais pessoas aderem a novas formas de comportamento, elas podem criar uma aliança entre si, conexões que fortaleçam novas maneiras de pensar e que virem modelos com os quais outros possam se identificar.

"Gênero é o efeito de reiteração de atos"
Vou dar um exemplo prático. A Marcha das Vadias e as Paradas Gays no Brasil têm sido movimentos fortes na representação política de mulheres e da comunidade LGBT, pois elas têm ganhado cada vez mais público e atenção da mídia. Porém, somente a realização destas passeatas não é suficiente: as pessoas têm de começar a mudar os seus comportamentos no dia-a-dia. Não adianta ir para a Marcha das Vadias uma vez por ano e, na vida prática, uma mulher chamar a outra que está ao seu lado de vagabunda porque ela está usando um decote e uma saia curta; ou tirar sarro da prostituta que está trabalhando na rua. Assim como não adianta participar da parada gay e não querer que homossexuais mostrem afeto em público; ou então, debochar do travesti que está sentado ao seu lado no ônibus.

Esta é uma grande questão para a Butler: que indivíduos comecem a mudar e a subverter atitudes conservadoras e dominantes para que novos modelos de comportamento possam se estabelecer e também tornarem-se referência de identificação. Dentro deste pensamento, ela ressalta que o perigo da criação de novos modelos ou categorias de identidade é exatamente o da exclusão. Para evitar isso, ela escreve na introdução do seu quarto livro, o Undoing Gender (em português, seria “Desfazendo Gênero”), que não devemos aceitar categorias e modelos de gênero e de sexualidade sem críticas, pois é só através do pensamento crítico que podemos “abrir a possibilidade de novos modos de viver; em outras palavras [não devemos] celebrar as diferenças como meras diferenças, mas buscar sempre estabelecer condições mais inclusivas para abrigar e manter vidas que resistem a modelos de assimilação”. 

* O livro Undoing Gender ainda não foi traduzido para o português.
** Para quem está interessado/a em ler Judith Butler, sugiro que comecem com este artigo (em inglês), que foi publicado em 1988, e foi o primeiro dela sobre a sua teoria de performatividade. Aqui, ela remete a diversos argumentos ligados ao teatro e à performance. 
*** O meu post é um mero e superficial resumo da teoria de performatividade da Butler. 

2 comentários:

  1. Perfeito o post, Júlia, parabéns!

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  2. Olá Júlia! Você sabe se existe o artigo que você indica em português? Obrigada, Ana.

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