Guest Post: Sobre a beleza


por Júlia Neves

Toni Morrison
Publicado em 1970, O Olho Mais Azul (The Bluest Eye, em inglês) foi o primeiro romance da escritora norte-americana Toni Morrison, que foi condecorada com o Prêmio Nobel de Literatura em 1993 pelo seu conjunto de obras. O livro é uma obra-prima por sua linguagem vívida e fragmentada que reflete arduamente a questão de beleza racial. Neste romance, Morrison entrelaça as relações de gênero, raça e classe social, discutindo, principalmente, como os olhares de uma sociedade têm o poder de transformar um sujeito em mero abjeto, excluído e rejeitado pelo âmbito social. 

Esta é a história de Pecola Breedlove, uma menina cuja infância é marcada por pobreza, rejeição, violência e abandono e que acredita que, se tivesse os olhos azuis, sua vida seria digna de aceitação, respeito e carinho. É o padrão de beleza do branco, louro e dos olhos azuis que determina a ideia de que ser negro é ser feio; e ser feio é estabelecer dentro de si mesmo o ódio por não poder atender ao padrão e, portanto, acreditar que este é o motivo para a exclusão: Pecola passava “longas horas olhando para o espelho, tentando descobrir o segredo da feiúra, a feiúra que fizera dela ignorada e desprezada na escola”. A pobreza de sua família é comum a várias outras, mas a feiúra deles era única. Pecola, sua mãe e seu irmão “vestiam a feiúra [...] embora esta não pertencesse a eles mesmos”.

Morrison critica este padrão de beleza que diminui, limita e marginaliza os outros a fim de se estabelecer como imagem desejada. A única forma de beleza possível é a branca e ela está onipresente: “adultos, meninas mais velhas, lojas, revistas, jornais, propagandas – o mundo inteiro concordava que uma boneca de olhos azuis, cabelos amarelos e pele rosada era o que qualquer menina-criança apreciava”, comenta a narradora de quase todo o enredo Claudia MacTeer, amiga mais nova de Pecola. Ela é quem dá voz ao sofrimento de Pecola e também é a única que questiona a predominância da beleza branca. Ao ganhar uma boneca loura-dos-olhos-azuis, Claudia afirma que “aqueles olhos imbecis, a cara de panqueca e aquele cabelo de bicho de goiaba deixavam-na fisicamente revoltada e secretamente com medo”. 

Cuidado: o reflexo deste espelho pode ser distorcido por ideais de beleza socialmente construídos
Ao contrário de Claudia, a mãe de Pecola, a Sra. Breedlove, é fascinada pelo padrão branco de beleza. Ela passa várias tardes no cinema, onde escapa de sua realidade dentro de casa com o marido violento e seus dois filhos e aprende que é impossível “olhar para um rosto e não associá-lo a alguma categoria de beleza absoluta [a qual] ela absorvera totalmente das telas prateadas”. Suas referências de beleza são as atrizes hollywoodianas, as quais ela tenta imitar. Sua predileção por esta beleza – e ao mesmo tempo o ódio por sua própria feiúra – reflete a maneira como a Sra. Breedlove trata os seus próprios filhos, com displicência e abandono. 

Ela trabalha como doméstica na casa de uma família branca de classe média, onde ganhara um novo apelido, Polly. Aqui, ela cuida da filha do casal, loura-pele-rosada-dos-olhos-azuis, e toma conta de todos os afazeres da casa. Um dia, Pecola aparece de surpresa no trabalho da mãe e, sem querer, derruba uma torta de amora que a mãe acabara de fazer. A Sra. Breedlove vê que sua filha está queimada nas pernas, mas mesmo assim bate em Pecola e grita: “Sua besta louca... meu chão, que bagunça... olha pra você... que trabalho... vá embora” para, logo depois, abraçar a menina dos cabelos dourados, limpar o seu vestido respingado com geleia e consolá-la carinhosamente. Às ordens de sua mãe, a quem ela se refere como Sra. Breedlove, Pecola pega a sacola de roupas lavadas e vai embora apressadamente acompanhada de Claudia e de outra colega.    

No prólogo, Morrison relata que a história da menina que queria ter os olhos azuis, de fato, acontecera quando ela era ainda criança. Uma colega de escola havia dito isso, e ela que, além de não conseguir imaginar sua amiguinha com olhos azuis, não conseguia entender os olhos azuis como uma única forma de beleza, mas sim de opressão, pois eram estes olhares que condenavam a beleza negra dela e de sua amiga. O desejo pelos olhos azuis, Morrison argumenta, denota uma forma de auto-depreciação racial que, muitas vezes, tende a reproduzir a forma de humilhação a qual o indivíduo foi submetido durante a vida. 

A violência, a linguagem e o sofrimento da narrativa de Morrison são como um veneno. Não se trata da vitimização da jovem protagonista por ser negra, mulher e pobre, mas da própria dificuldade de ela se entender como indivíduo por estar sempre em conflito com os preconceitos sociais e violência impostos a ela. Como leitor, não sentimos pena de Pecola e de sua família, mas sentimos um áspero mal-estar por fazermos parte de uma sociedade tão racista e opressora; nos sentimos quase que impotentes perante a ela, mas, acima de tudo, sentimos o próprio horror de ser conivente com ela. 

Em seu livro, Morrison foca na pior consequência da repressão e do preconceito: a aceitação de que a rejeição e a exclusão são legítimas. Ainda que haja muitos que a confrontem e a superem, há muitos outros que “desmoronam anonimamente em silêncio, sem voz para expressar ou afirmar a sua própria resistência”. É este colapso do sujeito dentro do coletivo que interessa à Morrison. Dentro da impossibilidade de afirmar-se e entender-se como indivíduo, Pecola Breedlove padece e, aos poucos, entrega-se completamente a sua redução ao nada, um mero abjeto da sociedade: sem voz, força ou poder de resistência. 

* Neste post, utilizo o termo raça porque me refiro a padrões de beleza relacionados a características físicas de um indivíduo, no caso, dos negros.
** Todas as citações foram traduzidas por mim em referência à edição de The Bluest Eye (1999), da editora Vintage. 

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