Mulher fatal??


Por Mazu

"A história de Elize Matsunaga, assassina confessa, que esquartejou o marido milionário enquanto a filha dormia"


Queria começar dizendo que sou contra violência, toda ela, queria que não existisse. Sinto mesmo que por mais escrota que uma pessoa seja, ela não merece ser esquartejada. Sinto isso daqui do meu computador, no ar condicionado, sem ninguém me ameaçando ou ameaçando alguém que amo. Se estivesse em outra situação, sinceramente não sei. Dito isto, gostaria de tecer um ou dois comentários a respeito da matéria da revista Veja sobre o caso de Elize Matsunaga.

A capa me chateou bastante por ser super sexista e sensacionalista, por sua vez, a matéria dentro da revista estava menos preconceituosa e tendenciosa do que o esperado pela capa, ainda assim, foi bem mais curta do que eu esperava. O fato é que essa edição vendeu horrores, e a gente bem sabe que a capa teve parte no milagre. Acho que quando digo sensacionalista, meu ponto está bem claro pela escolha dos termos, pela formulação do título e subtítulo. E sexista pela “mulher fatal", penso que podemos convir que o termo denota e conota preconceito, usado para o "bem" ou para o "mal". Na maioria das vezes, a mulher fatal é a vilã (porque a mocinha tem que ser a virgem). E o grande problema é que este caso não é tão preto no branco assim, existem milhares de tons de cinza. Não estou defendendo ou dizendo que a Elize é uma heroína, acho só que qualquer definição absoluta e maniqueísta dela deixaria a desejar. E que o rótulo de vilã lhe foi dado sem maiores considerações porque ela é mulher e porque já foi garota de programa.

História de Elize foi comparada a Uma linda mulher pela Veja
Para tentar construir meu argumento, vou comparar a Elize com o goleiro Bruno do Flamengo que também virou capa de revista. Não vou compará-los como pessoas ou pelos crimes porque não os conheço nem sou jurista, vou compará-los por suas respectivas exposições na mídia. 

Pelo que se diz, o Bruno alimentou seus cães com a mãe do seu filho recém nascido. Foi capa de revista, mas estava de roupa, sem nenhuma nomenclatura estereotípica ou condenatória e duvido que tenha vendido tanto ou tanto pelo mesmo motivo. Novamente, aviso aos navegantes, não aprovo nada disso, não acho ninguém que cito no meu texto um grande exemplo de vida ou de ser humano. Mas, gostaria mesmo de entender por que o fato de ser mãe e a crueldade da Elize pesam tanto mais. O Bruno é pai, não é? Ele premeditou o crime, ela não.

São dois pesos e duas medidas. O fato de Elize e Bruno serem pais pesa mais para Elize porque ela é mulher e na nossa cultura, ser mãe implica mais responsabilidade do que ser pai. O fato de ser uma ex-garota de programa pesa mais para Elize do que o fato do marido dela comprar mulheres por aí como se elas fossem coisas. Aliás, ele comprava mulheres por aí “enquanto a filha dormia”, o que parece ser um fato muito importante para a Veja: fazer as coisas enquanto os filhos dormem. O que será que o Bruno fazia enquanto seus filhos dormiam? Bruno e o executivo da Yoki eram pais também, mas Elize é mãe, consequentemente, seus crimes são piores porque existe um imaginário, uma imposição social inculcada nas mulheres e nos homens de que as mulheres têm que ser mais delicadas, amáveis, santas, têm que perdoar, têm que amar seus filhos e companheiros acima de tudo e todas as coisas. A gente já falou disso aqui de várias formas, mas o assunto nunca se esgota porque o padrão só faz se repetir.

"goleiro", "ídolo"
Em cima de tudo, como cereja do bolo, ainda tem a questão legal. Elize não recebeu relaxamento de prisão, nesta última semana, pelo alarde midiático do seu caso e, vou chutar, pelo poder da família da vítima. Para quem estiver escandalizado: o relaxamento de prisão, no Brasil, nesses casos, é mega comum, considera-se que o réu primário em tais e tais circunstâncias não representa perigo para a sociedade. O interessante de tudo é que o Bruno, goleiro, teve relaxamento de prisão concedido. Inclusive, o Flamengo disse que seu lugar está garantido no time quando ele quiser. Contem para mim qual vai ser o lugar da Elize no mundo se um dia ela sair da prisão? Dado Dolabela virou a mão na cara de três mulheres e ainda é galã de novela, eu queria ver quando uma mulher que apresenta comportamento parecido é mocinha e onde. Lembrando que o artigo 5º da Constituição em seu inciso I, diz: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. - é, então, acho que não!

Meu ponto é: uma ex-prostituta que mata um executivo milionário vira capa de revista, recebe prontamente o rótulo de assassina, destruidora de lares. Agora, duvido que um executivo que mata prostitutas seja pelo menos indiciado. Não é que eu duvide diretamente da competência dos órgãos responsáveis, duvido de tudo mesmo. Duvido que mulheres em determinada situação façam a queixa, duvido que, depois disso, se assim fizerem, que alguém as ouça ou acredite nelas, depois disso, duvido que se faça alguma coisa, e em cima de tudo isso, duvido que a mídia se importe. Duvido! Aliás, parece que existe um serial killer de prostitutas solto em São Paulo, você já ouviu falar? Pois é.

E outra coisa, no mundo que a gente vive, por que homem fatal é um termo que não existe, por quê? Redundância? Sério mesmo, com a quantidade de mulheres assassinadas por seus companheiros no Brasil, com requintes de crueldade também, na frente dos filhos também. Não vira capa de revista, e sabe por quê? Porque nós somos mulheres, somos descendentes de Eva, todos os pecados são nossa culpa! - ou é pelo menos nisso que a sociedade patriarcal vem nos fazendo acreditar. Já cansei de ver gente chamando a vítima do Bruno, mãe do filho dele, de interesseira, piriguete, Maria chuteira e tal. Mas e aí? Tudo bem dar de comer aos cachorros então? Se um homem mata por ciúme/dinheiro/traição a culpa é da mulher; se a mulher mata por ciúme/dinheiro/traição a culpa é da mulher também. Sim, nasça com dois cromossomos X e ganhe a culpa do mundo de brinde! Sério, que poha é essa? Em pleno século XXI? Não me desce, não entendo nem aguento.

E isso me pega tanto justamente porque os números são absurdos assim e desiguais assim.

A cada cinco minutos, uma mulher é agredida no Brasil. - leiam isso e me digam se não dava uma puta capa de revista. Essa informação e outras mais estão no mapa da violência no Brasil, em seu caderno complementar sobre homicídio de mulheres. O documento conclui que os altos níveis de feminicídio são decorrentes de níveis altos de tolerância da violência contra as mulheres, aponta ainda que, embora existam leis, as políticas de aplicação não são tão efetivas.

Talvez seja o momento de fazermos uma relação entre a tolerância da violência contra mulher e a culpabilização da mulher nos casos em que ela é vítima. Se tudo que a acontece a mim, mulher, acontece porque eu deixo ou permito fica absurdamente difícil evitar, punir, contar ou prever.

No caso da Elize, gostaria de ver a separação das coisas e das culpas. Ela era agredida pelo marido, ela foi traída pelo marido - essas atitudes foram dele, não dela. Agora, ela assassinou o marido, esta atitude é dela e de mais ninguém. Não importa o tipo de pessoa que a mãe do filho Bruno tenha sido, ele a matou/mandou matar - esta atitude é dele e somente dele. A respectiva culpa para o respectivo agente.

Gostaria mesmo de viver um dia em uma sociedade em que meus erros não fossem mais errados e meus acertos não fossem menos certos só porque eu sou mulher.


6 comentários:

  1. Brilhante o texto, Má, parabéns! Mesmo! Super pertinente a relação com a violência de gênero, lembrando que o Brasil está em penúltimo lugar no índice ISO-Quito na América Latina e Caribe, atrás apenas da Guatemala.

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  2. Mazu, excelente!!! Vamos fazer uma chamada de capa pro Bruno correlata à da Elize: "Goleiro do diabo - Acusado de assassinar a mãe de seu filho e jogar o corpo para os cães."

    Sabe que a chamada da capa do Bruno era o que eu mais ouvia na época em que Elisa sumiu: "Olha o cara, acabou com vida dele". Tipo isso mesmo: eu ouvia gente com PENA DO BRUNO que, afinal de contas, era 'um grande goleiro, tinha muito pra crescer ainda'. Eu não ouvi uma pessoa dizer: 'filho da puta, MATAR'. MATAR, cara!!! Não importa se é homem, mulher ou criança: MATAR um ser humano, em condições que não a de legítima defesa, devia causar INDIGNAÇÃO. O Flamengo, ao dizer que o Bruno pode voltar a campo, diz também que somos uma sociedade que tolera o assassinato (de mulheres, principalmente).

    Lembrei agora do Pimenta Neves, assassino da Sandra Gomide, réu confesso como Elize mas que, diferentemente dela, não foi punido pelo seu crime. Há dois anos, Pimenta recebeu da revista da editora Abril chamada Alfa Homem uma quase homenagem em forma de reportagem: aparece lúcido, grandioso, solitário e humano, demasiadamente humano.

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  3. "Agora, duvido que um executivo que mata prostitutas seja pelo menos indiciado. Não é que eu duvide diretamente da competência dos órgãos responsáveis, duvido de tudo mesmo. Duvido que mulheres em determinada situação façam a queixa,"

    Eu também duvido que prostitutas mortas façam queixas!

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  4. Acho que o que a Maíra quis dizer - e que me parece absolutamente claro pelo contexto - é que vítimas de violência de gênero muitas vezes são omissas por uma série de fatores, entre eles medo, culpa, impotência diante a falta ou desprezo de seus direitos.

    No caso de violência doméstica, a Lei Maria da Penha é um grande avanço, ainda mais agora em que qualquer um - não só a vítima - pode fazer denúncias.

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  5. Coitadinha, né? Mulher não tem nem o direito de cometer homicídio sem ser incomodada. Até quando?

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  6. O texto não defende nem justifica o crime por ser cometido por uma mulher, apenas explicita os diferentes tratamentos dados a homens e mulheres em situações parecidas. Reduzir o argumento dessa maneira não faz jus à complexidade e sutileza do texto.

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