A abertura olímpica da utopia


por Roberta Gregoli
As sufragistas protestam em Londres
Não estou muito por dentro dos jogos das Olimpíadas, mas o que tenho acompanhado nos bastidores tem sido muito interessante. Antes mesmo dos jogos começarem, boas notícias: pela primeira vez na história, todas as delegações têm atletas mulheres - e mulheres que estão fazendo bonito. A má notícia é que a propaganda machista continua, no Brasil e no mundo.

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Notícia ruim e boa ao mesmo tempo foi a expulsão da atleta grega que escreveu tweets racistas. Lição para nós, que ainda nos atrapalhamos com o conceito de liberdade de expressão: tolerância zero e medidas severas contra manifestações racistas e sexistas. E avisem que a desculpa 'foi só de brincadeirinha' já não cola mais.

Abertura

Vi a abertura ao vivo. Fiz questão, por morar na Inglaterra e ter acompanhado todos os papos e os mistérios (que, diga-se de passagem, nem se comparam ao frisson que se passa no Brasil, com 4 anos de antecipação). Quando disseram que iam colocar ovelhas no palco, não botei fé. E realmente achei o espetáculo chocho, bem ao estilo inglês: bem executado, mas sem emoção. Mas achei a cerimônia muito interessante por uma série de motivos, e pela repercussão.

Este ótimo artigo sobre o feito de Danny Boyle (para quem não se lembra, o diretor de Trainspotting e Quem quer ser um milionário?) para mim é conclusivo: a cerimônia foi um poema celebratório apaixonado para o país que Boyle gostaria que existisse - uma Grã-Bretanha multicultural, tolerante, gay-friendly e que tem como princípio o Estado do bem estar social. Isso explica o beijo lésbico, a presença das minorias étnicas em praticamente todos os quadros, a homenagem ao NHS (o equivalente ao SUS no Brasil, motivo de orgulho para os britânicos em comparação aos Estados Unidos, por exemplo, onde saúde custa e caro).

Boyle já tinha me ganhado no começo, quando entraram as sufragistas. O direito ao voto foi conquistado pelas mulheres na Grã-Bretanha em 1918, fato que o comentador da Globo citou. Na minha opinião, seria uma oportunidade para fazer o elo com o Brasil e citar o movimento nativo, já que aqui muitas pessoas sequer conhecem a palavra 'sufragista' ou sabem que o sufrágio feminino foi conquistado em 1932 num movimento encabeçado por Bertha Lutz. Mas acho que esperar algo parecido da Globo é um pouco de delírio da minha parte.

Ideal x real

Aplausos para Danny Boyle, então, que conseguiu até mesmo que uma rainha carrancuda participasse de um vídeo bem humorado. E é aí que eu queria chegar - a realidade versus o ideal.

Olha todos estes países que costumavam ser meus
Apesar de achar que, para muitos países no mundo, o tributo ao NHS não fez sentido algum, trata-se, na verdade, de um ponto político nevrálgico. Este ano houve uma reestruturação enorme por parte do governo conservador, resultando no que, muitos acreditam, será a deterioração do sistema de saúde público inglês. Além disso, tendo em vista a rendição de toda a Europa ao sistema bancário, colocando a seguridade social - e todos os ganhos conquistados no continente no último século em termos de políticas públicas promovendo a igualdade social - em segundo (terceiro, quarto...) plano, saúde de graça é, sem dúvida, algo digno de celebração.

Além disso, para um país que se pretende escolarizado e multicultural, a confusão com as bandeiras da Coreia do Norte e Sul foi vexatório.

Outro dado de realidade para a utopia boyleana: apesar de ser, de fato, um país multi-étnico, a Grã-Bretanha é insistentemente segregatória e racista. Prova veio como reação à própria cerimônia de abertura: veja aqui um artigo extremamente racista publicado no Daily Mail, o tabloide mais popular do país. Traduzo aqui parte do texto:

Era para ser uma representação da vida moderna na Inglaterra, mas seria difícil para os organizadores encontrarem uma mãe branca escolarizada de meia-idade e um pai negro morando juntos com uma família feliz dessa maneira [...] A pauta da igualdade multicultural foi tão encenada que foi doloroso assistir.
O artigo depois foi alterado, excluindo esta parte, e mais tarde retirado do ar. No Brasil chamariam de censura, lá é bom senso - que faltou ao colunista na hora de escrever.

Diversidade racial e sexual, feministas, saúde de graça de qualidade e uma rainha bem humorada: a Inglaterra de Danny Boyle é muito mais interessante do que a Inglaterra de fato.

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