Gostosa, piranha, suja


por Barbara Falleiros

“Você é muita linda, moça. Posso te oferecer uma bebida?” 
Não, obrigada.
“Me dá seu telefone?”
“Uma bebida juntos, ou o quê?”
Não, obrigada.
“Na minha casa, claro, não em um café. Ou no hotel, na cama, você sabe...”
Você não está entendendo? Eu não quero!
“Mas se você dá tesão, é normal...”
“Piranha!”

Lançado na semana passada na Bélgica, o documentário Femme de la rue, trabalho de conclusão de curso de uma jovem estudante de audiovisual, Sofie Peeters, mostra as injúrias cotidianas sofridas por ela e tantas outras mulheres num bairro desfavorecido de Bruxelas.

“Você quer mesmo que eu diga? São coisas do tipo: Se eu pudesse eu te enfiava no… É tão vulgar que eu não ouso repetir a frase. (…) Este é meu cotidiano ao voltar pra casa. Eu me visto normalmente, eu acho.  Apenas as palavras já são suficientes para exercer dominação sobre uma pessoa. Em todo caso, isso me faz mal.” – diz uma vizinha de Sophie, minutos antes de se mudar do bairro.

Sofie assinala a primeira reação de culpa face à agressão: “Eu acho que esta é a primeira pergunta que você se faz: Eu é que sou muito provocante? São as minhas roupas? É algo que eu fiz?” A velha e clássica culpabilização da vítima.

As moças entrevistadas compartilham suas estratégias: não olhar nos olhos dos homens, mudar de trajeto, evitar certas ruas, não usar shorts, preferir a bicicleta ao transporte público, usar fones de ouvido. Animais acuados, liberdade cercada.

Sofie entrevista dois grupos de homens cujo lazer preferido é, ao que parece, mexer com as mulheres na rua. Ela pergunta o que precisaria que fazer para não ser mais insultada. Respostas e justificativas:

Os mais jovens veem o assédio como um simples passatempo, uma forma de extravasar sua energia sexual enquanto esperam pela moça "para casar". A única forma de uma mulher se esquivar das cantadas e insultos é colocar-se sob a tutela de um outro homem: de acordo com os jovens, Sofie deveria dizer que é casada, nem que para isso deva andar com uma aliança falsa. Não se mexe com a propriedade dos ‘irmão’, né?

Para os mais velhos, as cantadas são na realidade - pasmem - um incentivo à autoestima da moça. “Ao invés de querer nos dar bronca, você deveria nos dizer: Obrigada por fazer com que eu me sinta mulher!” Mas como se esquivar das abordagens, ainda que tão "bem intencionadas"? Solução proposta pelo entrevistado: ele se oferece para seguir Sofie e protegê-la. “E eu, como mulher, não há nada que eu possa fazer eu mesma?” - pergunta ela. Resposta: “Tudo o que você tem a fazer é ficar calada”. E os homens da mesa explodem de rir.

Todos estes homens entrevistados, que se exprimem no vídeo em francês, são de origem muçulmana magrebina. O ponto é delicado. Como esboçar uma denúncia sem assumir posições racistas? Como criticar uma prática que parece ser cultural sem estigmatizar um grupo? E ainda, como diz Sofie, como continuar acreditando em uma sociedade multicultural? Uma das mulheres entrevistadas se pergunta se este tipo de assédio é um reflexo da cultura ou se ele não seria, antes, um sinal do estado de degradação desta cultura. Um outro entrevistado, de origem magrebina, coloca o problema do choque cultural:

“[No passado, eu e meus amigos buzinávamos e convidávamos a moça a entrar no carro]. Quando a pessoa se recusava a subir ou a responder – porque, claro, você não assobia pra uma pessoa na rua, você assobia pra um cachorro, pra um animal – então imediatamente a xingávamos: ‘Puta suja!’, ‘racista!’. (...) Nós não falamos de sexualidade com nossos pais, é tabu. E não podemos falar muito com as meninas do bairro, porque trata-se da irmã de um amigo ou da filha de alguém da família. E você não pode nem olhá-la, porque ela é toda coberta. (...) Mas nas propagandas, as mulheres estão nuas. Como você vai explicar a estes jovens que é preciso respeitar as mulheres se tudo o que eles veem são mulheres nuas? No Ocidente, pra mim, há emancipação, mas a mulher continua sendo um objeto de desejo do homem.”


As reações ao documentário de Sophie Peeters não tardaram. A municipalidade de Bruxelas estuda punir os insultos e aplicar multas já a partir do mês de setembro.

Aqui, o documetário Femme de la rue, em uma reportagem de tv (com legendas em inglês):

5 comentários:

  1. é engraçado você ter falado da cultura e do racismo, no meu último post, quando a taxista com quem conversei contou de um caso de preconceito pelo fato de ela dirigir táxi, ela disse: o cara deve ser árabe.
    E super interessante, você ter trazido o outro lado né? A emancipação que, na verdade, não é emancipação, é a nudez, que no caso dos ocidentais, em especial aqui no Brasil, não me parece ser um direito e sim uma outra forma de opressão, vide post da Tag, vide a tirinha do seu post.

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  2. Bárbara, posso estar errada, mas penso que em determinados casos a palavra diálogo simplesmente não se aplica. É o que acontece em relação aos homens árabes muçulmanos que estão na Europa aterrorizando as mulheres. Ninguém tem que conversar com eles, eles devem é ser reprimidos, punidos exemplarmente por seus crimes contra os direitos humanos das mulheres. Se as mulheres fossem de fato iguais aos homens no ocidente, muito rapidamente já se teria diro: AQUI as mulheres não são tratadas como pedaço de carne. A questão não é cultural, ou é, mas não deve ser tratada como tal: já passou da hora de pararmos de usar a cultura como desculpa para estuprar e matar mulheres, ou mesmo para (simplesmente?) importuná-las na rua. A propósito, na Índia, há mais ou menos um mês 40 homens abordaram duas mulheres na saída de um boate e uma delas, que não conseguiu escapar foi humilhada durante trinta infinitos minutos. Eles foram gravados por um cinegrafista que em nenhum momento se colocou contra o que acontecia. A mulher foi levada por guardas que não efetuaram nenhuma prisão. Há dois dias, também na Índia, uma mulher foi queimada com ácido por se negar a fazer sexo com dois homens - ela era casada e você sabe que, se ela tivesse consentido, o crime seria dela... Eu não respeito isso. E alguns países da Europa, onde a ideia de que mulheres são seres humanos já foi assimilada, também não devem ficar com crise de consciência em não respeitar. Ótimo post, Bárbara.

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  3. Respondendo tarde, mas antes tarde do que nunca! Curioso o comentário da taxista, já que no Brasil a presença árabe é mais reduzida do que aqui na Europa, onde a cisão de culturas e o preconceito que a acompanha é gritante. A desculpa da cultura é mesmo fácil e botar a culpa no outro é arriscado, mas o fato é que infelizmente existem infinitas formas e uma enorme gradação da violência e da opressão, a gente pode ousar dizer que uma é pior que outra? Eu vivo me policiando pra tentar manter a neutralidade do julgamento - e da raiva -, mas pra gato escaldado às vezes fica difícil...

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  4. Tagg,vc tirou as palavras da minha boca! O relativismo cultural( ereligioso) tem sido muito utilizado para reforçar crimes contra nós,aí resta-nos a pergunta: nossos direitos humanos está abaixo do que se considera culturalmente aceito? Ninguém deve ser punido só por causa da cultura e religião? Arabe á machista sim,não devemo ter pena ou ficar tentando justificar suas ações.Po,vcs se revoltaram lá com os estupradores daquele grupo de pago e agora ficam com "medo" de criticar o machoismo árabe? cade a empatia com as vítimas??

    Só um detalhe: a mulher não é tratada como humana na Europa,se o fosse,muitos destes países não teriam legalizado a prostituição que faz muitas vítimas no nosso próprio país.Além do mais,a pronografia é imperante,e até a pornografia infantil é encorajada na Escócia( vide: http://humanizandoosexo.wordpress.com/2012/07/14/onu-legaliza-pornografia-infantil-e-prostituicao/;para mais fontes,recomendo o scotish coalition against sexual exploitation)
    è inegável que a objetificação da mulher contribui e muito para tais atitudes machistas,mas nem por isso a desculpa da cultura deve ser aceita.

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  5. Calma lá: uma coisa é querer punição pra crimes contra as mulheres (a saber: estupro, abuso, coerção física e verbal), outra é tentar balizar e conviver com as diferenças. Uma coisa não anula a outra: não respeitar o homem que comete o crime é diferente de não respeitar a cultura desse homem. A linha é tênue, mas é necessário fazer essa distinção. Ninguém aqui quer demonizar nenhuma nação ou religião - já sabemos onde isso leva.

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