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Quem dá mais?

por Barbara Falleiros

Catarina Migliorini não é a primeira a tentar vender sua virgindade pela internet. Casos como o dela têm se tornado corriqueiros nos últimos anos (já se trocou a virgindade por um iPhone 4 e até por ingresso pro show do Justin Bieber)... Mas a história desta jovem catarinense tem uma particularidade: para promover seu leilão, ela teve de passar por uma seleção e todo o processo está sendo organizado e filmado por um documentarista australiano. Para evitar problemas legais, o ato será consumado (ou consumido) durante um voo da Austrália para os Estados Unidos. Beijos não estão no contrato. O produtor também escolheu um outro jovem virgem do sexo masculino (oh, belo exemplo de paridade!) e os lances podem ser dados pelo site Virgin's wanted.


Os argumentos de Catarina para participar do "projeto" são triviais: conhecer novos lugares, ganhar dinheiro para uso pessoal - e se sobrar, para alguma causa social -, continuar os estudos. Em 2008, uma estudante americana conhecida como Natalie Dylan, recém-graduada em Women's studies, associou-se a um famoso bordel de Nevada e colocou sua virgindade à venda com o objetivo de financiar sua pós-graduação. Diz-se que os lances ultrapassaram os 3 milhões de dólares. Diz-se também que tudo não passou de um embuste publicitário. Vai saber se não é também o caso de Catarina e deste "documentário"... Mas, na verdade, isso pouco importa aqui, o que me interessa são os discursos que se constróem a respeito da "transação". Na época em que se tornou famosa,  Natalie Dylan reivindicou-se feminista e afirmou, ao explicar suas escolhas:

"Quando aprendi isso, tornou-se evidente para mim que a virgindade idealizada é apenas uma ferramenta para manter as mulheres em seu lugar. Mas então percebi outra coisa: se a virgindade é considerada tão valiosa, o que me impede de beneficiar do que é meu? E o valor da minha castidade está num nível em que os homens não podem competir comigo. Decidi virar o jogo e transformar minha virgindade em algo que me permitisse ganhar, dos homens, poder e oportunidade. Tomei a antiga noção de que a virgindade de uma mulher não tem preço e usei-a como veículo do capitalismo. (...) Para mim, valorizar a virgindade como algo sagrado é simplesmente inconcebível. Mas valorizar a virgindade monetariamente,  eis uma concepção que eu poderia adotar. Eu não vejo a venda de sexo como algo errado ou imoral (...)" [desculpem-me pela tradução precária, aqui está o depoimento completo]

Mas fazer do corpo uma mercadoria e do ato sexual uma "prestação de serviços" pode conferir efetivamente algum poder às mulheres? Ao ser tomada como produto, objetificada, negociada, a mulher não continua ocupando uma posição de subjugação ao domínio sexual do homem? Reclamar o controle do próprio corpo e da própria sexualidade num contexto que reforça a ideologia patriarcal e suas relações de poder, não é continuar a gritar a liberdade de dentro de uma gaiola?

De acordo com Carole Pateman, em seu livro O Contrato sexual (1988),

"Quando os corpos das mulheres são vendidos como mercadorias no mercado capitalista, (...) a lei do direito sexual masculino é afirmada publicamente, e os homens ganham reconhecimento público como proprietários sexuais das mulheres, isto é o que há de errado com a prostituição."

Minhas perguntas acima não eram retóricas. Não sei mesmo o que pensar sobre isso... O problema da prostituição é de uma complexidade ímpar e suscita debates com uma infinidade de argumentos contrários, mesmo se falarmos apenas da chamada "prostituição de livre escolha" (que se opõe à "prostituição forçada"). Talvez possamos retomar essa questão em uma próxima ocasião. Por hoje, gostaria apenas de abrir o debate e comentar as regras do leilão que me chamaram a atenção, no tal site Virgin's wanted... Nas regras para os compradores, o vocabulário utilizado faz do ato em questão uma transação mercantil como qualquer outra: vende-se "a virgindade de um homem e de uma mulher" e objetiva-se "proporcionar uma experiência de compra agradável". Mas certas nuances mostram bem como funciona a objetificação de que falei acima. Rapidamente, percebe-se que não se trata de modo algum da contratação de um serviço sexual, mas da dominação e posse de uma pessoa: do direito à virgindade do vendedor ("to buy the right to the seller's virginity"), passa-se à compra da pessoa, d@ virgem ("purchasing the virgin"; "buy the virgin").

Uma última observação: alguém poderia contra-argumentar dizendo que não há aí qualquer problema de gênero, que homem e mulher estão em pé de igualdade, visto que os participantes são um garoto e uma garota. Mas a virgindade de um homem não se prova. E a de uma mulher, se tira. Vale notar, então, a enorme diferença na demanda. Quem são os compradores e que produto preferem? Até a noite de sábado, o jovem Alexander tinha recebido sete lances chegando a USD$ 1,300, sendo que quatro tinham sido feitos por homens (embora estes nem sejam elegíveis, visto que as regras definem claramente o ato sexual, neste caso, como a penetração do pênis na vagina). Os treze lances que recebeu Catarina, por outro lado, já alcançaram USD$ 160,000... Como negar, então, que o que motiva estes consumidores é a dominação machista?

De um produto a outro: a camiseta sai por 20 dólares


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Dividir para conquistar mulheres


por Tággidi Ribeiro





Sempre penso sobre a questão da 'conhecida' rivalidade feminina, que pode talvez ser descrita como a tendência das mulheres a brigar entre si, enquanto defendem os homens, nas mais variadas situações. Dizem que mulheres não podem ser amigas umas das outras, ou até podem, mas não da forma profunda e ao mesmo tempo tranquila com que homens são amigos uns dos outros. Se levarmos em consideração que tampouco mulheres e homens podem ser amigos - é o que reza o discurso comum -, chegamos à conclusão de que não há criatura mais desgraçadamente solitária que uma mulher. 

É triste perceber que, muitas vezes, mulheres são mesmo rivais e suas amizades se desfazem muito facilmente. E também que, por outro lado, homens mantenham suas amizades sob circunstâncias eticamente discutíveis. Digo isso só de observar, de ver como desde que era menina as intrigas se davam muito mais entre as meninas, ao passo que meninos brigavam e logo depois viravam melhores amigos de novo.

Nada de achar, contudo, que mulheres são naturalmente rivais. Se desde crianças criamos intrigas é porque imitamos o comportamento adulto (em casa e na tv) - é realmente muito difícil deixar o cerco da cultura. Se crescemos vendo nossas mães e tias falarem mal umas das outras, vamos falar mal umas das outras. Se aprendemos que devemos brigar para ter um homem, vamos fazê-lo. E se aprendemos que os grandes sofrimentos do mundo (fora perder um filho) são masculinos, não reconheceremos todas as nossas outras dores.

Mas o fato é que precisamos desaprender isso. E aprender a criar empatia pelas nossas iguais. Quer dizer, precisamos reconhecer o sofrimento feminino e nos solidarizar com ele. Por que será que é tão fácil, e aqui me refiro sobretudo às intelectuais, criar empatia pelos pobres, negros e homossexuais - cada grupo com sua história e lutas específicas - mas não pelas mulheres? Não teríamos nós também nossas lutas específicas? Entendendo o problema da opressão do pobre, não entendemos também o nosso? Entendendo o preconceito contra o negro, não entendemos também aquele que recai sobre nós? Deplorando a violência gratuita contra homossexuais, por que não choramos também as tantas violências que sofremos?

Em O Mercador de Veneza, de Shakespeare, o judeu Shylock, em sua fala mais conhecida e comentada, diz: "[Antonio] cobriu-me de desprezo (...), indispôs-me com meus amigos, excitou meus inimigos, e por que razão faria tudo isso? Por eu ser judeu. Então um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos? Nem órgãos, nem proporções, nem sentidos, nem afeições, nem sentimentos? Não se nutre com os mesmos alimentos? Não é ferido com as mesmas armas? Não está sujeito às mesmas doenças? Não se cura com os mesmos remédios?" Essa fala não resgata Shylock na peça de Shakespeare - ele se mantém vilão - mas aponta a humanidade que lhe é negada. Penso que ela sirva para nós, mulheres, também nos dando dimensão da nossa humanidade. Temos órgãos, afeições e sentimentos. Nos ferimos com as mesmas armas e nos curamos com os mesmos remédios. E, sim, sofremos violências somente por sermos mulheres.

O que nos falta talvez seja não deixar que nos indisponham 'com nossos amigos' - com nós mesmas. Não deixar que a tática de 'dividir para conquistar' continue fazendo entre nós o estrago que tão comumente fez e faz entre os povos mundo afora. Nossa rivalidade não é inata, mas fomentada por quem ganha com ela. Quanto mais conversamos e compartilhamos informações sobre o que vivemos, mais nos identificamos, deixando de pôr na conta do indivíduo aquilo que é problema geral e específico que afeta nosso gênero. 

Se você é mulher e acha que vive muito bem, que não há pelo que lutar, que já 'conquistamos nosso espaço', que é só se 'portar' bem que nada acontece, tente se colocar no lugar de tantas outras mulheres que não vivem tão bem assim (mesmo que se comportem bem). Se você nunca (nunquinha) sofreu violência de gênero - estupro, abuso, assédio, constrangimento físico ou verbal, violência doméstica, preconceito na forma de dúvidas em relação a sua capacidade intelectual, emocional ou física etc. - saiba que é uma raríssima exceção que valida este e todos os blogs e coletivos feministas (todo o feminismo). Então, tente se colocar no lugar de todas essas outras mulheres - as que não são exceção. Ouça-as e as entenda. Reconheça-as.




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Cinco mitos sobre o aborto


por Roberta Gregoli


Dando continuidade ao meu post da semana passada e aproveitando as ótimas novas de que o Uruguai é o primeiro país da América Latina a descriminalizar o aborto, revisito o tópico. Já vi várias versões de mitos sobre o aborto circulando pela internet, mas resolvi criar a minha própria lista, na esperança de adicionar meu vintém ao debate:

1. "Ser a favor do aborto é ser contra a vida" ou "Aborto é assassinato"

Este é, na minha opinião, o argumento mais sedutor contra a legalização do aborto, e também o mais moralizante. Primeiramente, o conceito de vida deve ser tratado com muito mais complexidade do que normalmente vemos por aí. Um feto sem cérebro, que não tem chance nenhuma de sobreviver, é vida? Um óvulo fecundado é vida? 

Na verdade, existem diversas teorias sobre quando a vida começa. A Igreja Católica diz que é no momento da concepção, e essa é sem dúvida a ideia mais difundida no Brasil. Mesmo dentro da Igreja Católica, no entanto, há uma corrente dissidente chamada Católicas pelo Direito de Decidir, que realiza um trabalho excepcional. 

Se não há definição em relação ao conceito de vida, a questão é somente moral e religiosa e daí, num Estado laico, cabe a cada um fazer a sua escolha. Moral e crença religiosa não se impõem com leis. 

O ponto central é que um embrião não é uma pessoa dotada de direitos e interesses - ao contrário da mulher. E então uma pergunta merece consideração: a "vida" de um embrião tem mais valor do que a vida de uma mulher? Porque o aborto inseguro é a terceira maior causa de óbitos maternos no Brasil

Podemos, então, inverter completamente o argumento e dizer que a criminalização do aborto que é, na verdade, contra a vida - a vida de milhões de mulheres que fazem abortos inseguros. "Assassinato sancionado pelo Estado", como muitos gostam de apelar em relação à descriminalização do aborto.

2. "Se legalizar, todo mundo vai sair por aí abortando"

Em outras palavras, o número de abortos aumentaria, certo? Errado. É comprovado que nos países onde o aborto é legalizado, o número de abortos é muito menor do que nos países onde é criminalizado. 

A taxa na América Latina, onde as leis são altamente restritivas, é de 32 abortos a cada 1.000 mulheres em idade fértil contra somente 12 em 1.000 na Europa Ocidental, onde o aborto é amplamente legalizado (veja o primeiro item da seção 'Abortion Law' aqui).

3. "A legalização do aborto encoraja uma postura sexual menos responsável" ou "Se legalizar, ninguém mais vai 'se cuidar'"


De certa maneira, a resposta ao mito 2 responde a este também, mas é preciso deixar claro: educação sexual e aborto são temas distintos. As feministas lutam pela descriminalização do aborto E por melhor educação sexual. 

Acho que não é preciso lembrar que, quem não usa preservativo corre risco de pegar uma infinidade de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive a AIDS. E ninguém sai por aí dizendo que a cura da AIDS encorajaria uma postura sexual menos responsável. Ou diz?

4. "Hoje só engravida quem quer"

Pois você sabia que a eficácia da camisinha gira em torno de 97 a 98%? E a pílula anticoncepcional em 98 a 99%? Ou seja, a cada 100 mulheres que tomam absolutamente todas as precauções para evitar uma gravidez, 1 a 3 podem terminar tendo uma gravidez indesejada. 

Num país de mais ou menos 98 milhões de mulheres, isso representa de 980 mil a quase 3 milhões mulheresÉ certo prender essas mulheres por abortarem?

Além disso, garantir a eficácia da pílula anticoncepcional não é tão simples assim. Muita gente não sabe, mas diversos medicamentos cortam o efeito da pílula. E se você esquecer de tomar a pílula um único dia e tiver tido relações sexuais na semana anterior, pode engravidar. 

É justo condenar mulheres que engravidaram sob esta circunstância por optarem pelo aborto? Quem nunca esqueceu de tomar antibiótico um dia na vida que atire a primeira pedra.

5. "E se o bebê que você abortou tivesse encontrado a cura do câncer"

A Lola trata desse mito de maneira brilhante e eu complemento: E se a mulher que morreu em decorrência de abortamento inseguro tivesse encontrado a cura do câncer? 

O ponto central deste mito é que é muito fácil idealizar a vida em potencial. Isso decorre, a meu ver, da ideia católica da "santidade da vida". Quando se pensa num bebê, se pensa num anjinho inocente e indefeso. Não que esse bebê é responsabilidade de pais que podem não estar preparados para criá-lo e que um dia, talvez até independente dos pais que teve, possa se tornar um bandido, um estuprador, um líder neonazista, um masculinista...
Da mesma forma, para muitos é fácil condenar a mulher que aborta e imaginá-la como um monstro. Mas os dados mostram que essa mulher pode, na verdade, ser sua tia, sua irmã, sua mãe

Conclusão

O que todos esses mitos têm em comum é a culpabilização das mulheres e a isenção dos homens de qualquer responsabilidade sobre a reprodução e mesmo sobre o aborto em si.

A discussão sobre a legalização do aborto tem que ser problematizada numa profundidade e sutileza muito maior do que a persistência de mitos tão primários expõe, e a velha mídia brasileira, que todos sabem ser retrógrada e conservadora, não tem interesse nenhum em promover debates mais complexos sobre o tema. Ainda bem que temos as mídias alternativas e grupos feministas ativos, como os citados neste post e muitos outros, para trazer uma outra perspectiva para a mesa. 

E seguimos tentando para quem sabe um dia chegar a um Estado laico que preze pela escolha, pela saúde e pela vida de suas mulheres.

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A luta das meninas e as meninas da luta



por Mazu

Eu me apaixonei por Kung Fu e Sanshou durante meu namoro com meu companheiro, ele praticava e gostava muito e, um dia, me levou para conhecer. O Kung Fu é uma arte milenar e linda, requer muito mais concentração e inteligência do que as pessoas julgam. O nível de autoconhecimento e autocontrole dos praticantes sérios é visível e admirável.

Apesar de toda a admiração, não tive nem tempo, nem oportunidade ainda de praticar o Kung Fu (em especial o Choy lay fut, o estilo que tive contato, é bom dizer porque são muitos estilos). Mas conhecer o Sanshou, o boxe chinês que compartilha alguns dos fundamentos, me fez muito bem. Em tudo, desde entender e concatenar mais os movimentos físicos, ganhar mais coordenação e mais cárdio até perceber que eu vivia guardando muita raiva no coração. E, de verdade, é do coração que vem a força.

Nessa onda de praticar, eu comecei a assistir lutas e acompanhar os treinos, me interessar mesmo. Ultimamente, o maridão anda treinando com uma equipe de MMA aqui de Brasília, e eu acabei indo assistir ao Shooto Brasil 34, e convivendo mesmo com a galera fã e praticante do Mixed Martial Arts, que como o nome diz, é uma mistura de várias modalidades de artes marciais, as mais "pedidas" são o Muay Thai, o jiu-jítsu e o Wrestling, mas não para por aí não.

Feliz em demonstrar o que
"bater como uma menina" significa


Bom, aí, neste convívio, comecei a notar algumas coisas. Primeiro, refiri-me ao julgamento das pessoas ali em cima porque existe muito mau julgamento e pré-julgamento no mundo, e com as artes marciais não seria diferente. Existem vários preconceitos relacionados a esse tipo de esporte, e eles não dizem respeito apenas às mulheres praticantes de artes marciais.

Na verdade, o julgamento das pessoas com relação às artes marciais é super preconceituoso também com relação aos homens, existe um estereótipo, na maioria das vezes, falso, do marombado burro e violento que é mais ligado aos meninos do jiu-jítsu e Muai Thay, mas acaba não deixando ninguém de fora. Agora, quando você acompanha os praticantes sérios do esporte, você percebe que as coisas são bem diferentes, eu, pessoalmente, acabei por conhecer muita gente legal e sábia. É, pois é, pois é, pois é.

Mas este blog é feminista e a minha elegia acaba aqui. E eu começo a pancadaria perguntando: se a imagem é ruim para os caras, imagina para as meninas? 

Cris uma vez colocou para dormir um jornalista
que disse que mulheres são mais fracas que homens
Acho que vale ressaltar que características que são consideradas masculinas, tipo força, porte físico, habilidade para luta, são consideradas masculinas por imposição social. A gente falou disso em outras ocasiões aqui no blog. Logo, as meninas mais fortes e mais centradas não são necessariamente lésbicas. Vale dizer também que, por sua vez, nem todas as lésbicas possuem essas que são consideradas as características masculinas. Força física, a falta ou excesso, a percentagem de musculatura de um corpo nada tem a ver com sexualidade e, de acordo com pesquisas recentes, nem com sexo. Eu me sinto boba afirmando o óbvio, mas a gente ouve cada comentário quando as meninas estão lutando, que olha...


Gina Carano e as marcas da guerra

É verdade, as meninas têm ocupado seu espaço nas artes marciais (vide as medalhistas olímpicas) e, durante o pouco tempo que pratiquei, nunca senti nenhuma diferenciação ou discriminação na academia que frequentei. Agora, o MMA insiste em manter as mulheres nuas segurando placas nos seus eventos, e não consigo entender o porquê. Que sentido faz um evento ter mais garotas de biquíni do que lutadoras, se estamos falando de um evento de luta e não de um desfile de roupas de banho?

Mischa Tate, beleza padrão de ring girl,
mas prefere descer a porrada
Assistir ao Shooto Brasil 34 me deixou louca da vida. Uma luta, dentre as onze do evento, foi feminina e, na minha opinião, a mais legal. No resto do evento, meninas com bundas gigantescas de fora mostravam em que round a luta estava porque né? Contar até três é phoda. A gente precisava mesmo de ajuda. E se eu começar a falar dos eventos do UFC, não vai ter espaço né? Porque lá, mulher lutadora nem existir, existe. Existem as belas esposas, as belas ring-girls e uma juíza, porque os juízes são escolhidos e designados pela Associação Atlética Norte Americana e não pelos grandes empresários do evento. Não vou mentir, assisto, mas ô evento machista do baralho.
Participação femina no Shooto 34: 1 lutadora...


...três ring-girls
Vasculhando as internets por aí, encontrei este documentário rapidíssimo sobre Meninas do MMA, vale pelo depoimento da atleta, falando sobre ser mãe, mulher e lutadora, sobre o que é patrocínio para ela. É divertidíssimo também o depoimento da dançarina que dizia que não conseguia "nem olhar" para a luta de tão violento que era. É engraçado, o que 'violento' significa para cada um. Durante o Shooto, eu não pisquei na luta da Claudinha Gadelha (foto acima), que foi tão daora! Em compensação, cada vez que passava uma daquelas meninas de bunda de fora e subiam os comentários do público, eu tinha vontade de não ver e nem ouvir e, talvez, morrer ou matar alguém.


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Nossa guerra cotidiana


por Barbara Falleiros

Même la guerre est quotidienne.
 Marguerite Duras

Perdõem-me o teor egocêntrico desta introdução. Mas quando meus textos começaram a aparecer aqui no Subvertidas,  todo mundo achou assim... meio esquisito. É que, embora eu tenha estudado um pouco sobre a vida das mulheres na Idade Média, nunca tinha levantado bandeiras. Ninguém diria de mim com convicção: "Ah, aquela lá é uma feminista!" Certamente pela palavra carregar consigo um estigma muito grande. O fato é que conheço pouco da teoria feminista. Porém, como qualquer mulher, tenho minhas histórias de horror pra contar, guardo na memória a imagem enevoada do medo. Como toda mulher, enfrento as pequenas violências cotidianas, as piadinhas que parecem inocentes, os abusos verbais travestidos de cantadas, o dilema da família versus carreira, o acúmulo de responsabilidades, as pressões com relação ao corpo, à idade, à maternidade, aos cabelos brancos que já insisto em esconder...

Desde que comecei a escrever aqui, passei a observar com mais atenção esses detalhes cotidianos. No post de hoje reproduzo algumas notas sobre o que vi e ouvi nos últimos dias.

QUINTA-FEIRA

Acompanho por alto um grupo do Facebook que tentou organizar - sem sucesso - um debate com a Führerin do Femen Brazil, Sara Winter. Como não houve diálogo e o Femen Br perdeu sozinho toda a credibilidade, o tal grupo do Facebook mudou de rumo e passou a debochar da Sara, ao mesmo tempo em que tentava promover discussões feministas. O volume de mensagens é grande mas, se entendi bem, a Sara estava se fazendo de morta para evitar as perguntas quando alguém teve a ideia da seguinte "piadinha", com base na imagem, ao lado, do best-seller Onde está Wally? A resposta, que vinha em seguida, era esta:

E o pessoal achou graça. As semanas passaram e é como se nada tivesse restado da polêmica em torno do comercial do homem invisível, da Nova Schin. No entanto, os elementos da imagem são os mesmos: na praia, uma mulher é importunada por um jovem e, num sobressalto, acaba mostrando os seios; os dois homens que se viram para olhar a cena estão sorrindo, enquanto outras duas mulheres exibem uma expressão de espanto. Assim, esse livro que é um clássico da nossa infância mostra que submeter uma mulher a uma situação vergonhosa é engraçado (para os homens). E o pessoal riu... dentro de um grupo feminista, o pessoal riu. Como se não bastasse, a própria ideia da "piadinha" ridiculariza não só o sumiço, mas também a nudez de Sara nos protestos. Surpresa! Exatamente como a propaganda do Fiat Punto.

SEGUNDA-FEIRA
No trem. Duas mulheres adultas conversam ao lado de um homem de uns quarenta anos, vestindo terno e gravata. Ele interrompe uma delas: "Com licença, senhora, posso fazer uma pergunta?" A mulher, surpresa, responde com educação:  "Sim, claro, senhor!" E ele continua: "Vocês estão na menopausa? Por que não ficam quietas?"

... A violência do sexismo ordinário numa manhã de segunda-feira. Contei isso no meu mural do Facebook. Alguns ficaram chocados, sensíveis à agressividade da cena. Outros riram. Outros botaram na conta do tão famoso mau humor parisiense. Perguntaram-me o que as mulheres responderam. Não é difícil adivinhar: balbuciaram uma resposta, ficaram sem jeito e finalmente se calaram. O homem conseguiu o que queria.

Alguém acha graça?
Sinto muito, mas não tem graça. Tampouco é um caso de mau humor. O que este homem disse não é o fruto de uma reação individual de exasperação provocada por um estado particular de espírito, é a reprodução de um discurso arraigado sobre a relação das mulheres com a palavra. "Pleurer, parler, filer, femmes l'ont de nature", disse no século XIV o cronista Gilles Li Muisis, amigo de Dante: "É da natureza feminina chorar, falar e fiar". A mulher é tradicionalmente associada à esfera da sensibilidade, enquanto o homem é colocado do lado da racionalidade. E somos educados para isso. Meninos não choram, certo? Qual a porcentagem de homens num curso de literatura e de mulheres num curso de engenharia? A mulher sente e fala, o homem reprime e pensa. É por isso que este homem do metrô se considera no direito de repreender duas pessoas desconhecidas em um local público, simplesmente porque ele é o homem (sério, detentor da autoridade) e elas são as mulheres (desequilibradas, falam demais).

"A mulher louca é alvoroçadora, é simples e nada sabe", lemos nos Provérbios 9:13, enquanto que "A mulher sábia se mantém calada", lembra o Bispo Edir Macedo. Afirmar que a mulher fala demais é o mesmo que dizer que sua palavra não tem nenhum valor.

Isto não é uma piada, é uma estratégia de desvalorização da palavra feminina

QUARTA-FEIRA

 Nos corredores do metrô, passo por dois cartazes publicitários de uma marca de roupas. 

"Solteira, mas chique". Quanto sentido se esconde atrás de uma mera conjunção adversativa! Celibato e elegância, dois termos inconciliáveis que se unem por intermédio da Kookaï. O que diz a marca é que ela é capaz de conferir algum valor a uma pobre mulher incapaz de seduzir e manter um homem ao seu lado. Vestindo Kookaï e sem descer do salto, esta mulher troca sozinha o pneu do carro, já que não tem um homem que o faça por ela. Viva a independência! A marca tenta dar uma outra nuance à propaganda traduzindo "single" por "sozinha no mundo". Não convenceu. Aliás, não dá pra saber o que é pior.

"Esfomeada, mas chique". Uma geladeira cheia de salada, um iogurte na mão, do tipo desses "iogurte de mulher" com 0% de gordura e de açúcar. Apologia a um padrão de beleza magro e incentivo à anorexia, assim, abertamente. Os que conceberam esta propaganda devem ter se sentido muito orgulhos de criar um conceito "provocante", reprodução tão original do discurso dominante...

SEXTA-FEIRA

No ônibus lotado, cheio de idosos, um lugar fica vago. Um homem de uns 50 anos, com uma das mãos enfaixada, oferece o lugar para uma garota adolescente. Ela recusa. Ele insiste. Ela recusa novamente. Ele se senta e diz sorrindo: "Bom, se hoje em dia as mulheres não querem se sentar, sento eu!" Um homem educado, não é? Na verdade, não. Mesmo que ele tivesse as melhores das intenções, ao insistir para que a garota se sentasse, este homem estava assumindo que toda mulher é fraca, mais fraca que um homem, mais fraca que um homem mais velho e machucado...

DOMINGO

Comentando com uma amiga o nome curioso de um conhecido: "Ah, era um personagem de livro!" - digo. "Nossa, o pai dele devia gostar de ler!" - ela responde. O pai...  E por que não a mãe? Por que é o pai quem dá a palavra final com relação ao nome do filho? Por que se alguém na família tem um nível cultural elevado, é mais provável que seja o pai?

Pois esta foi a minha semana. 

Aqueles que estão tão bem acomodados a uma configuração social injusta lançarão mão de todas as estratégias de silenciamento, velhas como o mundo, e dirão mais uma vez que tudo isso é um grande exagero. Que é mania de perseguição, que é falta de senso de humor, que eu estou maluca, que não sei levar na brincadeira, que a gente é tudo um bando de drama queen, que é mal amada, que tem inveja porque é feia, que é burra e não entendeu, que bem-feito-quem-mandou-ser-desse-jeito, que não sabe fechar a matraca, que agora só falta chorar...

A força do machismo está no acúmulo de pequenas coisas. Um acontecimento isolado é um detalhe, um conjunto de pequenas coisas "sem importância" constitui um sistema de veiculação de ideias e valores que servem a uma determinada configuração do poder.

A realidade esta aí, toda, inteira. Basta ver e ouvir.

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O corpo na berlinda - cirurgia íntima


por Tággidi Ribeiro


E eis que chegamos ao tempo em que há um padrão para a vagina. Não basta mais que esteja depilada, limpa e cheirosa, é necessário também que pareça uma vagina jovem, virgem (pois é), clara e magra (sim, magra). Essas vaginas-padrão vemos aos montes nos filmes pornográficos - completamente depiladas, lembram a genitália infantil, o que nos remete à questão da pedofilia, que não vou explorar nesse post. Além disso, essas vaginas-padrão nos dizem o quanto ainda somos preconceituosos, hipócritas e, claro, machistas. A vagina deve ser clara e magra, seguindo o padrão ariano. A vagina deve parecer virgem, pois a liberdade sexual feminina ainda não foi aceita e assimilada pela maioria dos homens (e, talvez, nem pelas mulheres). É evidente e essencial aqui, penso, a relação entre esses padrões e o mito da beleza e da eterna juventude.

Para alcançar a vagina perfeita, as mulheres se submetem, fora as sessões de depilação total, a clareamentos e à labioplastia. Nenhum desses 'tratamentos' é exatamente novo, mas todos estão se popularizando cada vez mais, com fins estéticos. A labioplastia é também chamada de cirurgia íntima e consiste basicamente em cortar ou inchar com gordura pequenos e/ou grandes lábios vaginais, de acordo com o 'defeito' que se julgue ter. O pós-operatório dura quase dois meses e, segundo os médicos, a cirurgia pode diminuir a sensibilidade dos lábios vaginais, o que leva à diminuição do prazer sexual.

O risco é alto mas, atendendo à demanda, por receio de ficarem sozinhas e por isso infelizes (outro mito), muitas mulheres deixam-se ao escrutínio do olhar alheio, o bisturi imaginário que as retalha constantemente nas revistas femininas, novelas, propagandas, nas ruas e dentro de casa. É certo que, se há submissão feminina aqui, há sobretudo muita pressão e muito poder masculinos, pois os homens são os donos das mídias (e também da rua). De toda forma, é difícil pensar em alguma parte do corpo feminino que não tenha sido avaliada e para a qual não haja um padrão: cabelos, olhos, pernas, barriga, joelhos, cotovelos, boca, nariz, bunda, peitos, costas, tornozelos, pés, mãos, ânus... e também nosso templo (?). 

Se me permitem a divagação: penso que assim se delineia o corpo pós-contemporâneo, por excelência feminino, já que da mulher se exige a manutenção e/ou 'conquista' da juventude e beleza. Esse é o corpo torturado, o corpo retalhado, costurado e cheio de cicatrizes. Não é a guerra, entretanto, nem o trabalho, que o torturam, mas a gama virtualmente infinita de intervenções estéticas que cortam, secam, incham, serram, enxertam... transformando-o em escultura sempre passível de remendos ou mesmo de refazimento. O corpo do nosso tempo é uma mulher em pedaços, permanentemente imperfeita.


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E se sua irmã abortasse?


por Roberta Gregoli

Você iria visitá-la na cadeia?




Demorou mas juntei energias para abordar um assunto potencialmente sensível, porém essencial ao feminismo: o aborto. A primeira coisa que precisa ser esclarecida é que não existe feminista que seja "a favor do aborto", o que existe são pessoas contra a criminalização do aborto, o que é totalmente diferente. Nenhuma feminista quer que o pessoal saia por aí abortando... Mas também - e é esse o centro da questão - não quer que nenhuma mulher vá para a cadeia por interromper uma gravidez. Pense nisso: se você é "contra o aborto", você é a favor que mulheres sejam presas por praticá-lo.

By Laerte. Neste país NÃO se respeitam as decisões pessoais.
Mulheres assim são presas todos os dias.

E tem muita gente que diz que essas mulheres devem ir para a cadeia, sim. É que a discussão em torno do aborto é tão primária - alguém já viu algum debate decente, com um lado a favor e outro contra discutindo a questão? - que se resume a demonizar essas mulheres. Elas são colocadas como monstros que praticaram um ato criminoso e merecem pagar por ele. Acho que não é preciso discorrer sobre o papel da religião nessa linha de pensamento.

As coisas se tornam bem mais complicadas quando entendemos a dimensão da questão. Este mês foi concluído de maneira confiável o que até então eram estimativas: 1 em 5 mulheres de até 40 anos já praticaram aborto(s). Veja este ótimo vídeo, que, apesar de estar com os números desatualizados, vale muito a pena por traçar o perfil, surpreendente para alguns, da mulher que aborta:


Faça então um exercício bem concreto: saia na rua e conte 5 mulheres, uma delas já abortou. Pense em 5 mulheres da sua família. Uma delas já abortou. Talvez sua irmã ou sua mãe já tenha abortado. Mais difícil pensar em monstros e "assassinas", certo?

Um debate sério sobre o aborto nunca pode ser preto no branco: vida e assassinato, vilão (sempre vilã, infelizmente) e mocinha. Primeiramente, não consigo imaginar uma mulher optando pelo aborto de maneira leviana ou impensada, como muitos dizem num tom absolutamente cruel ("se liberar, aí ninguém mais se previne mesmo", "daí 'a mulherada' vai sair por aí abortando"). Trata-se de uma decisão extremamente difícil e dolorosa, e essa dor nunca deve ser menosprezada ou diminuída. Muitas vezes o parceiro não apoia a gravidez, ou mesmo encoraja o abortamento - este vídeo do filme Antonia (Tata Amaral, 2006) ilustra bem a situação - mas, caso descoberto, só a mulher vai para a cadeia, o que, vamos combinar, é uma tremenda injustiça por si só. Até onde me explicaram nas aulas de biologia, é preciso um homem e uma mulher para que haja a fecundação.


E vale salientar que a lei do aborto no Brasil na maioria das vezes só é, de fato, levada a cabo no caso de mulheres pobres e negras, como o vídeo acima coloca. Como dizem, se os homens engravidassem o aborto já seria legalizado há tempos. E eu vou mais longe e aposto que também já teria sido legalizado se mulheres brancas de classe alta fossem de fato presas por abortarem.

Numa perspectiva global, o mapa das leis do aborto deixa claro o alinhamento ideológico do Brasil com os países mais religiosos e conservadores do mundo, em total oposição aos países desenvolvidos.

Verde: sem restrição ou motivo, vermelho: somente para salvar a vida da mulher ou totalmente proibido.
Veja mais detalhes aqui.

Este é só o começo de um assunto que rende muito pano para manga e que deve continuar a ser discutido - e muito - até que as mulheres brasileiras finalmente conquistem o que, na verdade, é um direito: direito de planejar suas famílias, de planejar sua vidas, direito a ter controle sobre o próprio corpo, direito reprodutivo, enfim.

Mantenham suas opiniões longe dos nossos úteros

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Violência Psicológica



por Mazu


Já falamos aqui no Blog em várias ocasiões sobre a violência contra a mulher e até sobre a violência da mulher contra o homem. Na maioria das vezes, falamos da violência física porque ela chama mais a atenção, é mais evidente pelas marcas que produz e, consequentemente, mais evidente nas estatísticas. 

A violência psicológica foi abordada de maneira geral porque quando falamos de diversos preconceitos e padrões acabamos tocando na questão. Se existe um padrão preconceituoso do que é mulher boa e certa e do que as que não o são merecem por não serem, isso é também violência psicológica.

O que aconteceu foi que, ontem, assisti um episódio de uma série policial que gosto muito chamada Criminal Minds, que tratou da violência doméstica psicológica.
Elenco de Criminal Minds

O enredo principal de "The Crossing", o episódio em questão, gira em torno de uma mulher que um dia disse "ops" para um técnico de informática que prestava serviço para sua empresa, e ele, então, com base nisso, passou a persegui-la e criou uma relação fantasiosa entre eles. Esse caso daria um debate bem interessante que vou deixar para a próxima, já que gostaria mesmo de comentar o enredo secundário, que trata de uma mulher que atirou no marido enquanto ele dormia.

Essa senhora nunca tinha sofrido nenhuma espécie de violência física, mas seus advogados estavam alegando "síndrome da mulher agredida" (tradução super literal, não sei se temos alguma coisa parecida no Brasil). Quando os agentes vão entrevistar os dois filhos do casal, eles dizem que o pai, na verdade, era super paciente com a mãe, que era uma péssima dona de casa e burra.  Os agentes visitam a casa da família que era muito limpa e tinha um esquema de organização quase milimétrico. E quando vão entrevistar a mulher, ela diz que não, que o marido nunca a agredira nem quando ela merecia e que, era, pelo contrário, muito paciente tendo em vista que ela era péssima em tudo. Disse também que não participava da vida escolar dos filhos porque já os constrangia bastante dentro do lar e não queria fazer isso também fora de casa. Ou seja, o marido criou para ela (e para os filhos) uma imagem de incompetente, incapaz e não-merecedora. E isso justificou anos de maus tratos (psicológicos) da família, enquanto ela era basicamente uma empregada doméstica na casa.
Mary-Margaret Humes, em sua excelente interpretação
da esposa assassina
Na hora, lembrei-me de diversas pessoas que conheci ao longo da vida, inclusive de mim mesma. Tive, durante a faculdade, por quase dois anos um namorado muito ciumento cuja tática era me fazer sentir burra e, às vezes, feia. Nunca chegou a nenhum extremo porque me livrei disso, graças a mim. Lembrei também de uma prima, uma amiga e do caso Yoki, que já comentei aqui. Mais uma vez, não quero dizer que devemos matar nem usar de violência, insisto nisso porque quando fui tratar do caso da Elise andaram dizendo por aí que eu estava defendo o ato dela, e eu não estava. Nem estou agora defendendo o ato da mulher fictícia que assassinou o marido no seriado. As Subvertidas são contra toda forma de violência. Estou só dizendo que a violência psicológica é uma das principais formas de dominação, se paramos para pensar. Já dissemos aqui, existe um imaginário idiota na nossa sociedade de que diz que tudo de ruim que acontece com uma mulher acontece por culpa dela. Esse imaginário besta junto com imposição psicológica e falsa de que não somos boas o suficiente ou não somos boas como são os homens em determinadas coisas é o que forma o aparelho da opressão feminina.

Lembra que a Tággidi escreveu sobre motivos para não casar? Então, essa crença do "amarre um homem se for capaz e, se não for, morra sozinha" é uma das maneiras de diminuir a gente. E mais, essa opressão psicológica "de ser menos" acaba por fortalecer outros imaginários patriarcais da nossa sociedade, tipo o de que precisamos de um homem para sermos inteiras, completas. O tipo de coisa que irrita muito. E as companheiras lésbicas? E se uma mulher simplesmente não quiser casar ou qualquer coisa do tipo? Porque, na real, relacionamento não completa, nem conserta ninguém.

E aí, enquanto esse aparelho da opressão funciona na nossa sociedade, algumas mulheres toleram violência, toleram o fato de trabalhar muito mais, como acabou de descrever a Bárbara, a gente vai ficando tolerante porque é incutida em nós a idéia de que temos que ser tolerantes, porque somos menos. Perigoso, não é mesmo? E já deu né? Passou da hora de romper com isso, nós não somos menos. Nunca fomos. Ser solteira não é defeito, muito menos ser independente. E se uma mulher tem um homem em sua vida, isso pode ser bom ou ruim, mas ela é o que é, com ou sem ele.

Hoje, estou de aniversário, 31, vai vendo. Minha irmã me ligou e eu estava me queixando de estar envelhecendo ao que ela respondeu: pelo menos você já casou. Fiquei tão chateada, de todas as coisas que já fiz nessa vida, em 31 anos, (não vou mentir: queria ter feito mais), mas, ainda assim, ela se lembrou só do meu casamento como um grande feito que deveria me acalmar diante do fato de passar dos trinta. Sei que ela não fez por mal, afinal, somos criadas assim. Escutamos nas novelas, filmes, em todos os lugares que casamento e filhos deveriam ser nossos grandes objetivos de vida. E é por isso que movimento feminista precisa crescer, ainda mais, para ocupar, ainda mais, esses espaços e quebrar esses padrões.

Enfim, todos os episódios de Criminal Minds começam e terminam com uma citação, vou copiá-los e terminar com a citação final do episódio que comentei:
"Woman must not depend upon the protection of man, but must be taught to protect herself."
Susan B. Anthony
(Uma mulher não deve depender da proteção de um homem, mas deve ser ensinada a defender a si mesma)

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E a louça hoje é de quem?


por Barbara Falleiros

Este homem lava a louça! Ou quase...
A Organização Internacional do Trabalho publicou recentemente, em julho, o relatório  "Perfil do Trabalho Decente no Brasil - Um Olhar sobre as Unidades da Federação".  Ainda que avanços tenham sido constatados, as estatísticas comprovam a permanência de uma divisão desigual do trabalho doméstico, baseada no gênero. O peso das responsabilidades domésticas e familiares continua a recair sobre as mulheres, que acumulam uma jornada dupla. No cômputo geral, elas trabalham 5 horas a mais por semana do que os homens, sendo que realizam 12 horas e meia a mais de tarefas domésticas.

"Ao conjugarem-se as informações relativas às horas de trabalho dedicadas às tarefas domésticas e de cuidado com aquelas referentes à jornada exercida no mercado de trabalho, constata-se que, apesar da jornada semanal média das mulheres no mercado de trabalho ser inferior à dos homens (36 contra 43,4 horas), ao computar-se o tempo de trabalho doméstico dedicado aos afazeres domésticos (22 horas para elas e 9,5 horas para eles), a jornada semanal feminina alcançava 58 horas e ultrapassava em 5 horas a masculina (52,9 horas)."
Ele tem uma lava-louças e, sobretudo,
usa as pastilhas Senhor Limão, que
garantem uma louça brilhante!



O relatório comprova o quão perversa e viciada é a lógica do "Eu não vou lavar a louça porque volto cansado do trabalho", "Eu não preciso ajudar na limpeza porque eu já chego muito tarde em casa", "O meu trabalho é mais importante para a família porque eu ganho mais." Vale sublinhar que, segundo o IBGE, o salário feminino é 28% menor do que o masculino.

Em resumo, está comprovado o que sabemos:  a mulher ainda trabalha mais, ganha menos, obtém menos reconhecimento dentro e fora de casa. O fato de as mulheres trabalharem fora não acompanhou-se de uma evolução completa das mentalidades.

Mas estes dados tendem a focar uma certa organização no interior da família. Que dizer de pessoas solteiras, em especial, dos homens solteiros? Como eles vêem e exercem - ou não - as tarefas domésticas? Por curiosidade, xeretei algumas revistas dedicadas ao público masculino e outros sites do tipo para ver o que se dizia - ou não se dizia - sobre o trabalho doméstico. Aí vão alguns exemplos:

A independência do machão: uma mulher-canivete
com mil e uma utilidades
 1. "Resolveu cortar o cordão umbilical e sair da casa da mamãe? Seu casamento naufragou? Se você se enquadra em um desses casos, vai precisar montar um lar e recomeçar a vida. E, claro, ter uma faxineira." (Revista Men's Health) O exemplo não poderia ser mais revelador. Para a revista, que apresenta em seguida uma série de "dicas da diarista" para o solteiro perdido, o trabalho doméstico insere-se evidentemente numa esfera feminina.  O homem é tido como um ser incapaz de manter a casa em funcionamento, devendo estar sempre sob a dependência de uma mulher: primeiro a mãe, depois a esposa, na falta das duas, a empregada. Como escreveu certa vez a Lola, este modelo do homem inútil, do estilo solteiro bobalhão ao Homer Simpson casado, só reforça a divisão desigual do trabalho dentro de casa.

2. Ao discutir os "Cuidados com suas roupas" que os homens devem ter, a revista apresenta uma lista em que um só ítem pressupõe que o homem vá, de fato, lavar a sua roupa ("Como manter as cores vivas"). Os outros implicam a delegação da tarefa fastidiosa: "Quantas vezes lavar a seco uma peça" ou "Como escolher uma lavanderia". Isso me faz pensar em um amigo do meu namorado que, jovem independente de 25 anos, enviava sua roupa suja toda semana para sua mãe... pelo correio!


3. A tarefa doméstica só não aparece como "coisa de mulher" quando há alguma possibilidade de ser usada pelos homens como arma de sedução. Neste caso, há uma imposição vertical de saberes: o homem é aquele que é forte, aquele que sabe / domina; ele não detém o conhecimento primário quase intuitivo das coisas do dia-a-dia como as mulheres, muito pelo contrário, o homem é o especialista.

"O charme dos homens gastrossexuais" (Terra Mulher): "Pilotar o fogão agora é coisa de macho galanteador", diz a matéria. Da comidinha cotidiana simples, feminina, menosprezada, passa-se a uma atividade de status: gastronomia é coisa séria, requer curso especializado, cozinhar é uma arte e, o mais importante, as mulheres caem aos pés daqueles espécimes refinados e modernos que apresentam orgulhosamente uma redução de balsâmico com pupunha.

"6 motivos para você aprender a fazer tarefas domésticas de homem" (Papo de Homem). Repare bem a nuance: tarefa doméstica de homem - como se uma atividade pudesse mesmo ser determinada pelo gênero da pessoa que a exerce.  A matéria fala então do desenvolvimento de man skills, de coisas de macho, isto é, de atividades que requeiram técnica: serviços elétricos, consertar vazamentos, pintar paredes. Um claro reflexo dos estereótipos de gênero que predominam nas atividades e profissões técnicas: vale dizer aqui que, segundo o mesmo relatório da OIT citado acima, 93,8% dos frequentadores de cursos da área de construção civil, por exemplo, são do sexo masculino.

Na lista, há uma clara dimensão de orgulho envolvida: é preciso aprender para não ser enrolado por picaretas (outros homens, portanto) e para não se sentir constrangido ao precisar de ajuda (de outros homens, portanto). 

Finalmente, há o argumento da habilidade técnica como arma de sedução do macho alfa: "Sua vizinha gostosíssima bate na porta da sua casa pedindo ajuda porque o chuveiro elétrico dela não está esquentando e ela precisa se arrumar para a festa de hoje à noite." Ah, fala sério!

Para concluir, um último exemplo, da Revista Alfa. Em uma matéria intitulada "Homens que lavam a louça têm melhor vida sexual" afirma-se, de acordo com uma pesquisa da Universidade de Riverside e um psicólogo chamado Joshua Coleman, que "as mulheres tendem a sentir mais atração sexual e afeição pelos maridos se eles compartilham as tarefas domésticas" e que "a partilha das tarefas domésticas está associada a um nível mais elevado de satisfação conjugal e sexual".

Mas claro, né? Porém, existe uma enorme diferença entre as tentativas de sedução mostradas nos exemplos anteriores e a divisão mais igualitária do trabalho em casa. É aquela velha diferença entre "machismo" e "respeito". Fazer as coisas para impressionar a presa é muito diferente de assumir suas responsabilidades na organização de uma vida em comum. É óbvio que qualquer pessoa, homem ou mulher ou nenhuma das alternativas anteriores, só pode ser feliz vivendo numa relação em que há equilíbrio. Pena que ainda seja preciso uma pesquisa da Universidade de X para que se entenda que você vai ser mais amado e feliz se tratar seu/sua companheir@ de igual pra igual...