E a louça hoje é de quem?


por Barbara Falleiros

Este homem lava a louça! Ou quase...
A Organização Internacional do Trabalho publicou recentemente, em julho, o relatório  "Perfil do Trabalho Decente no Brasil - Um Olhar sobre as Unidades da Federação".  Ainda que avanços tenham sido constatados, as estatísticas comprovam a permanência de uma divisão desigual do trabalho doméstico, baseada no gênero. O peso das responsabilidades domésticas e familiares continua a recair sobre as mulheres, que acumulam uma jornada dupla. No cômputo geral, elas trabalham 5 horas a mais por semana do que os homens, sendo que realizam 12 horas e meia a mais de tarefas domésticas.

"Ao conjugarem-se as informações relativas às horas de trabalho dedicadas às tarefas domésticas e de cuidado com aquelas referentes à jornada exercida no mercado de trabalho, constata-se que, apesar da jornada semanal média das mulheres no mercado de trabalho ser inferior à dos homens (36 contra 43,4 horas), ao computar-se o tempo de trabalho doméstico dedicado aos afazeres domésticos (22 horas para elas e 9,5 horas para eles), a jornada semanal feminina alcançava 58 horas e ultrapassava em 5 horas a masculina (52,9 horas)."
Ele tem uma lava-louças e, sobretudo,
usa as pastilhas Senhor Limão, que
garantem uma louça brilhante!



O relatório comprova o quão perversa e viciada é a lógica do "Eu não vou lavar a louça porque volto cansado do trabalho", "Eu não preciso ajudar na limpeza porque eu já chego muito tarde em casa", "O meu trabalho é mais importante para a família porque eu ganho mais." Vale sublinhar que, segundo o IBGE, o salário feminino é 28% menor do que o masculino.

Em resumo, está comprovado o que sabemos:  a mulher ainda trabalha mais, ganha menos, obtém menos reconhecimento dentro e fora de casa. O fato de as mulheres trabalharem fora não acompanhou-se de uma evolução completa das mentalidades.

Mas estes dados tendem a focar uma certa organização no interior da família. Que dizer de pessoas solteiras, em especial, dos homens solteiros? Como eles vêem e exercem - ou não - as tarefas domésticas? Por curiosidade, xeretei algumas revistas dedicadas ao público masculino e outros sites do tipo para ver o que se dizia - ou não se dizia - sobre o trabalho doméstico. Aí vão alguns exemplos:

A independência do machão: uma mulher-canivete
com mil e uma utilidades
 1. "Resolveu cortar o cordão umbilical e sair da casa da mamãe? Seu casamento naufragou? Se você se enquadra em um desses casos, vai precisar montar um lar e recomeçar a vida. E, claro, ter uma faxineira." (Revista Men's Health) O exemplo não poderia ser mais revelador. Para a revista, que apresenta em seguida uma série de "dicas da diarista" para o solteiro perdido, o trabalho doméstico insere-se evidentemente numa esfera feminina.  O homem é tido como um ser incapaz de manter a casa em funcionamento, devendo estar sempre sob a dependência de uma mulher: primeiro a mãe, depois a esposa, na falta das duas, a empregada. Como escreveu certa vez a Lola, este modelo do homem inútil, do estilo solteiro bobalhão ao Homer Simpson casado, só reforça a divisão desigual do trabalho dentro de casa.

2. Ao discutir os "Cuidados com suas roupas" que os homens devem ter, a revista apresenta uma lista em que um só ítem pressupõe que o homem vá, de fato, lavar a sua roupa ("Como manter as cores vivas"). Os outros implicam a delegação da tarefa fastidiosa: "Quantas vezes lavar a seco uma peça" ou "Como escolher uma lavanderia". Isso me faz pensar em um amigo do meu namorado que, jovem independente de 25 anos, enviava sua roupa suja toda semana para sua mãe... pelo correio!


3. A tarefa doméstica só não aparece como "coisa de mulher" quando há alguma possibilidade de ser usada pelos homens como arma de sedução. Neste caso, há uma imposição vertical de saberes: o homem é aquele que é forte, aquele que sabe / domina; ele não detém o conhecimento primário quase intuitivo das coisas do dia-a-dia como as mulheres, muito pelo contrário, o homem é o especialista.

"O charme dos homens gastrossexuais" (Terra Mulher): "Pilotar o fogão agora é coisa de macho galanteador", diz a matéria. Da comidinha cotidiana simples, feminina, menosprezada, passa-se a uma atividade de status: gastronomia é coisa séria, requer curso especializado, cozinhar é uma arte e, o mais importante, as mulheres caem aos pés daqueles espécimes refinados e modernos que apresentam orgulhosamente uma redução de balsâmico com pupunha.

"6 motivos para você aprender a fazer tarefas domésticas de homem" (Papo de Homem). Repare bem a nuance: tarefa doméstica de homem - como se uma atividade pudesse mesmo ser determinada pelo gênero da pessoa que a exerce.  A matéria fala então do desenvolvimento de man skills, de coisas de macho, isto é, de atividades que requeiram técnica: serviços elétricos, consertar vazamentos, pintar paredes. Um claro reflexo dos estereótipos de gênero que predominam nas atividades e profissões técnicas: vale dizer aqui que, segundo o mesmo relatório da OIT citado acima, 93,8% dos frequentadores de cursos da área de construção civil, por exemplo, são do sexo masculino.

Na lista, há uma clara dimensão de orgulho envolvida: é preciso aprender para não ser enrolado por picaretas (outros homens, portanto) e para não se sentir constrangido ao precisar de ajuda (de outros homens, portanto). 

Finalmente, há o argumento da habilidade técnica como arma de sedução do macho alfa: "Sua vizinha gostosíssima bate na porta da sua casa pedindo ajuda porque o chuveiro elétrico dela não está esquentando e ela precisa se arrumar para a festa de hoje à noite." Ah, fala sério!

Para concluir, um último exemplo, da Revista Alfa. Em uma matéria intitulada "Homens que lavam a louça têm melhor vida sexual" afirma-se, de acordo com uma pesquisa da Universidade de Riverside e um psicólogo chamado Joshua Coleman, que "as mulheres tendem a sentir mais atração sexual e afeição pelos maridos se eles compartilham as tarefas domésticas" e que "a partilha das tarefas domésticas está associada a um nível mais elevado de satisfação conjugal e sexual".

Mas claro, né? Porém, existe uma enorme diferença entre as tentativas de sedução mostradas nos exemplos anteriores e a divisão mais igualitária do trabalho em casa. É aquela velha diferença entre "machismo" e "respeito". Fazer as coisas para impressionar a presa é muito diferente de assumir suas responsabilidades na organização de uma vida em comum. É óbvio que qualquer pessoa, homem ou mulher ou nenhuma das alternativas anteriores, só pode ser feliz vivendo numa relação em que há equilíbrio. Pena que ainda seja preciso uma pesquisa da Universidade de X para que se entenda que você vai ser mais amado e feliz se tratar seu/sua companheir@ de igual pra igual...

Um comentário:

  1. vim parar aqui de paraquedas, procurando uma matéria no google - embora eu tenha curtido vcs no facebook. respondendo a questão: a louça continua sendo das empregadas. mesmo numa casa em que a mulher não ache que tenha que lavar, nem o homem pense tal coisa, quem acaba lavando, na maioria das vezes, é a mulher. que mulher? a empregada. quantas mulheres independentes hoje, muitas vezes solteiras, não delegam a tarefa doméstica pra uma empregada?

    não sei se fugi demais, ainda não estamos falando de feminismo quando se fala de empregada doméstica?

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