Nossa guerra cotidiana


por Barbara Falleiros

Même la guerre est quotidienne.
 Marguerite Duras

Perdõem-me o teor egocêntrico desta introdução. Mas quando meus textos começaram a aparecer aqui no Subvertidas,  todo mundo achou assim... meio esquisito. É que, embora eu tenha estudado um pouco sobre a vida das mulheres na Idade Média, nunca tinha levantado bandeiras. Ninguém diria de mim com convicção: "Ah, aquela lá é uma feminista!" Certamente pela palavra carregar consigo um estigma muito grande. O fato é que conheço pouco da teoria feminista. Porém, como qualquer mulher, tenho minhas histórias de horror pra contar, guardo na memória a imagem enevoada do medo. Como toda mulher, enfrento as pequenas violências cotidianas, as piadinhas que parecem inocentes, os abusos verbais travestidos de cantadas, o dilema da família versus carreira, o acúmulo de responsabilidades, as pressões com relação ao corpo, à idade, à maternidade, aos cabelos brancos que já insisto em esconder...

Desde que comecei a escrever aqui, passei a observar com mais atenção esses detalhes cotidianos. No post de hoje reproduzo algumas notas sobre o que vi e ouvi nos últimos dias.

QUINTA-FEIRA

Acompanho por alto um grupo do Facebook que tentou organizar - sem sucesso - um debate com a Führerin do Femen Brazil, Sara Winter. Como não houve diálogo e o Femen Br perdeu sozinho toda a credibilidade, o tal grupo do Facebook mudou de rumo e passou a debochar da Sara, ao mesmo tempo em que tentava promover discussões feministas. O volume de mensagens é grande mas, se entendi bem, a Sara estava se fazendo de morta para evitar as perguntas quando alguém teve a ideia da seguinte "piadinha", com base na imagem, ao lado, do best-seller Onde está Wally? A resposta, que vinha em seguida, era esta:

E o pessoal achou graça. As semanas passaram e é como se nada tivesse restado da polêmica em torno do comercial do homem invisível, da Nova Schin. No entanto, os elementos da imagem são os mesmos: na praia, uma mulher é importunada por um jovem e, num sobressalto, acaba mostrando os seios; os dois homens que se viram para olhar a cena estão sorrindo, enquanto outras duas mulheres exibem uma expressão de espanto. Assim, esse livro que é um clássico da nossa infância mostra que submeter uma mulher a uma situação vergonhosa é engraçado (para os homens). E o pessoal riu... dentro de um grupo feminista, o pessoal riu. Como se não bastasse, a própria ideia da "piadinha" ridiculariza não só o sumiço, mas também a nudez de Sara nos protestos. Surpresa! Exatamente como a propaganda do Fiat Punto.

SEGUNDA-FEIRA
No trem. Duas mulheres adultas conversam ao lado de um homem de uns quarenta anos, vestindo terno e gravata. Ele interrompe uma delas: "Com licença, senhora, posso fazer uma pergunta?" A mulher, surpresa, responde com educação:  "Sim, claro, senhor!" E ele continua: "Vocês estão na menopausa? Por que não ficam quietas?"

... A violência do sexismo ordinário numa manhã de segunda-feira. Contei isso no meu mural do Facebook. Alguns ficaram chocados, sensíveis à agressividade da cena. Outros riram. Outros botaram na conta do tão famoso mau humor parisiense. Perguntaram-me o que as mulheres responderam. Não é difícil adivinhar: balbuciaram uma resposta, ficaram sem jeito e finalmente se calaram. O homem conseguiu o que queria.

Alguém acha graça?
Sinto muito, mas não tem graça. Tampouco é um caso de mau humor. O que este homem disse não é o fruto de uma reação individual de exasperação provocada por um estado particular de espírito, é a reprodução de um discurso arraigado sobre a relação das mulheres com a palavra. "Pleurer, parler, filer, femmes l'ont de nature", disse no século XIV o cronista Gilles Li Muisis, amigo de Dante: "É da natureza feminina chorar, falar e fiar". A mulher é tradicionalmente associada à esfera da sensibilidade, enquanto o homem é colocado do lado da racionalidade. E somos educados para isso. Meninos não choram, certo? Qual a porcentagem de homens num curso de literatura e de mulheres num curso de engenharia? A mulher sente e fala, o homem reprime e pensa. É por isso que este homem do metrô se considera no direito de repreender duas pessoas desconhecidas em um local público, simplesmente porque ele é o homem (sério, detentor da autoridade) e elas são as mulheres (desequilibradas, falam demais).

"A mulher louca é alvoroçadora, é simples e nada sabe", lemos nos Provérbios 9:13, enquanto que "A mulher sábia se mantém calada", lembra o Bispo Edir Macedo. Afirmar que a mulher fala demais é o mesmo que dizer que sua palavra não tem nenhum valor.

Isto não é uma piada, é uma estratégia de desvalorização da palavra feminina

QUARTA-FEIRA

 Nos corredores do metrô, passo por dois cartazes publicitários de uma marca de roupas. 

"Solteira, mas chique". Quanto sentido se esconde atrás de uma mera conjunção adversativa! Celibato e elegância, dois termos inconciliáveis que se unem por intermédio da Kookaï. O que diz a marca é que ela é capaz de conferir algum valor a uma pobre mulher incapaz de seduzir e manter um homem ao seu lado. Vestindo Kookaï e sem descer do salto, esta mulher troca sozinha o pneu do carro, já que não tem um homem que o faça por ela. Viva a independência! A marca tenta dar uma outra nuance à propaganda traduzindo "single" por "sozinha no mundo". Não convenceu. Aliás, não dá pra saber o que é pior.

"Esfomeada, mas chique". Uma geladeira cheia de salada, um iogurte na mão, do tipo desses "iogurte de mulher" com 0% de gordura e de açúcar. Apologia a um padrão de beleza magro e incentivo à anorexia, assim, abertamente. Os que conceberam esta propaganda devem ter se sentido muito orgulhos de criar um conceito "provocante", reprodução tão original do discurso dominante...

SEXTA-FEIRA

No ônibus lotado, cheio de idosos, um lugar fica vago. Um homem de uns 50 anos, com uma das mãos enfaixada, oferece o lugar para uma garota adolescente. Ela recusa. Ele insiste. Ela recusa novamente. Ele se senta e diz sorrindo: "Bom, se hoje em dia as mulheres não querem se sentar, sento eu!" Um homem educado, não é? Na verdade, não. Mesmo que ele tivesse as melhores das intenções, ao insistir para que a garota se sentasse, este homem estava assumindo que toda mulher é fraca, mais fraca que um homem, mais fraca que um homem mais velho e machucado...

DOMINGO

Comentando com uma amiga o nome curioso de um conhecido: "Ah, era um personagem de livro!" - digo. "Nossa, o pai dele devia gostar de ler!" - ela responde. O pai...  E por que não a mãe? Por que é o pai quem dá a palavra final com relação ao nome do filho? Por que se alguém na família tem um nível cultural elevado, é mais provável que seja o pai?

Pois esta foi a minha semana. 

Aqueles que estão tão bem acomodados a uma configuração social injusta lançarão mão de todas as estratégias de silenciamento, velhas como o mundo, e dirão mais uma vez que tudo isso é um grande exagero. Que é mania de perseguição, que é falta de senso de humor, que eu estou maluca, que não sei levar na brincadeira, que a gente é tudo um bando de drama queen, que é mal amada, que tem inveja porque é feia, que é burra e não entendeu, que bem-feito-quem-mandou-ser-desse-jeito, que não sabe fechar a matraca, que agora só falta chorar...

A força do machismo está no acúmulo de pequenas coisas. Um acontecimento isolado é um detalhe, um conjunto de pequenas coisas "sem importância" constitui um sistema de veiculação de ideias e valores que servem a uma determinada configuração do poder.

A realidade esta aí, toda, inteira. Basta ver e ouvir.

3 comentários:

  1. Meldels! Que semaninha, heim? Ótimo post, Bá. Beijão

    ResponderExcluir
  2. Lembrei de um texto que rolou pelo face um tempo atrás: o mundo é desse jeito e "as feministas é que são chatas"? Ah, tá bom...

    ResponderExcluir
  3. Bá, amei o post. Muito. Como dizem, o problema não é ver machismo em tudo, o problema é não ver.

    ResponderExcluir