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Mulheres, humor e escatologia

por Roberta Gregoli

Adoro peidar

Gosto muito de comédia stand-up. Como toda a forma de comédia, estão presentes comentários políticos, sociais e culturais, mas no stand-up, diferente de filmes e esquetes, esses comentários são feitos de maneira totalmente direta e imediata. 

O problema é a ideologia que está por trás dos comentários. A Má já falou sobre comédia stand-up e concordo: muito do que tenho visto no Brasil é de virar o estômago, humor reacionário em seu estado mais puro. Reflexo de uma mentalidade reacionária (mas o Serra perdeu a eleição e talvez assinou o óbito de sua carreira política, o que significa que ainda há esperança!). 

Já defendi que não existe humor inofensivo, mas isso não significa que comédia só possa ser usada para banalizar e naturalizar preconceitos e discursos de ódio.

Margaret Cho e fã alucinada
Ontem fui a um show de comédia stand-up da coreana-americana Margaret Cho, em Londres. Como conheço a maioria dos seus shows, sei que ela tem a boca suja, mas ontem estava particularmente suja. E achei ótimo. Precisamos de mais mulheres falando de assuntos ainda hoje tidos como tabu: menstruação, menopausa, masturbação e sexo, muito sexo. Enquanto santa e puta forem categorias mutuamente excludentes, precisamos de mulheres fazendo piada sobre a própria vida sexual, sobre boquete, sexo anal; enquanto houver a ideia de orientação sexual como algo rígido, com a heterossexualidade como norma, precisamos de mulheres falando sobre sexo com homens e com mulheres.

Precisamos também de mulheres falando sobre o aborto. E aqui alguns podem se chocar. Mas ora, se piada de estupro é "só brincadeirinha", por que de aborto não pode? #padrãoduplo

A Sarah Silverman é outra comediante norte-americana, também de minoria étnica (judia) e gerou polêmica com este post no Twitter, em abril deste ano:


Ela escreveu e eu traduzo: fui ali fazer um aborto rápido caso a lei seja revogada ("R v W" é uma referência ao caso Roe contra Wade, que levou à descriminalização do aborto em âmbito nacional, em 1973).

Sob protestos indignados dos conservadores, talvez principalmente por isso, o comentário é sensacional pois enfatiza o perigo iminente de se perder um direito conquistado pelas mulheres norte-americanas há quase 4 décadas. A graça da piada é que Silverman nem estava grávida, ela disse depois que só estava inchada por ter comido um burrito. 

Meninas passam bilhetes,
meninos 'passam' gases
Precisamos também de mulheres falando sobre temas escatológicos, o chamado 'humor de banheiro'. E a Margaret Cho é ótima nisso, ela fala sobre mijar nas calças, cagar nas calças, peidar. Independente de achar graça nesse tipo de humor ou não, acho importante que piadas assim estejam sendo feitas por mulheres. Porque homens falam abertamente sobre todas essas coisas, fazem piadas, enquanto nós somos educadas para, na melhor das hipóteses, usar eufemismos. E mais do que falar, nós precisamos rir dessas experiências porque o riso naturaliza. E não há nada mais natural do que nossas necessidades fisiológicas. É como se a nossa própria experiência corpórea em seu nível mais concreto nos fosse negada. Ou pelo menos nos fosse negado falar sobre ela, que é a mesma coisa. 

Ainda sobre mulheres e escatologia, me lembro que ano passado houve uma cena do filme Missão Madrinha de Casamento (Bridesmaids, 2011) que foi particularmente criticada:


quem não goste, mas eu adoro esse filme. Primeiro porque a comédia é um campo majoritariamente masculino e um filme escrito por uma mulher e estrelado só por mulheres é uma raridade. Segundo porque não acho o filme clichê, muito pelo contrário. A cena acima, que infelizmente está cortada neste clip, termina com a noiva se aliviando na rua, usando o vestido de noiva. Um belo comentário sobre a instituição do casamento. E o enredo em torno da rivalidade entre as madrinhas de casamento termina em solidariedade feminina, o que é raro em Hollywood justamente pelo potencial subversivo que isso guarda.

Ando pensando muito nas comediantes mulheres no Brasil, mas acho que esse é assunto para um outro post, mesmo porque ainda não consegui chegar a nenhuma conclusão clara. O maravilhoso humor desbocado da Dercy Gonçalves é certamente transgressor, mas não sei o suficiente sobre a nova geração... Talvez a Ingrid Guimarães e a Heloísa Périssé se aproximem mais desse tipo de humor subversivo com relação ao papel da mulher. Comentários?


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Dormindo com o inimigo: os mecanismos da violência conjugal

por Barbara Falleiros

Esta semana, no blog da Lola, li um depoimento que me fez pensar nos mecanismos da violência e da dominação que às vezes (demasiadas vezes) governam as relações de um casal. A Mazu, nos seus comentários sobre a violência física e psicológica exercida por maridos e companheiros sobre as mulheres, já nos deu alguns exemplos bem reais.

 Agressão verbal, ameaças, gestos e posturas agressivas. A
violência psicológica pode ferir mais do que a física
O que me impressiona ao ler essas histórias de violência conjugal é a recorrência de certos elementos e o fato de elas acontecerem não apenas lá longe, com famílias socioeconomicamente desfavorecidas, com "gente sem estudo e sem educação", como dizem alguns, mas com qualquer um. Tem aquele marido sem camisa, largado no sofá, entupindo-se de cachaça e que termina o domingo batendo na esposa. Mas acontece da mesma forma na casa do médico agressivo, do empresário dominador, do professor universitário que diz que a esposa é burra, acontece com a adolescente de família cujo namorado possessivo faz figura de bom moço.

Uma cartilha distribuída pelo Ministério Público de São Paulo ("Mulher, vire a página... e seja protagonista de um final feliz!") mostra as três fases do chamado Ciclo da violência:


Em termos de manutenção do domínio sobre a vítima, a fase mais poderosa é esta "lua de mel" que antecede a evolução da próxima tensão. O seu objetivo é dissuadir a mulher de partir e fazê-la acreditar que o agressor é capaz de mudar seu comportamento. Mais do que isso, essa fase encoraja a mulher a buscar desculpas para as atitudes violentas : "Ele estava passando por um dia ruim", "Ele não é assim", "Ele está arrependido". Posso dizer que se ganha muito mais flores, perfumes, bombons e presentes de um homem machista e violento do que daquele que vê sua companheira como igual.

Viver com um homem machista é viver cercada. Ele te faz achar que sente ciúmes porque te ama, quando na verdade os ciúmes são sua forma de afirmar que a mulher lhe pertence. Sob a dominação de um homem machista, vive-se em constante estado de alerta, a medir as palavras, controlar as ações, abaixar os olhos, finalmente calar-se. "Ai meu Deus, agora ele vai achar que..." - quantas mulheres não são tomadas pelo pavor da reação de seus "companheiros" (a palavra certamente não cabe) a situações totalmente sem importância, como receber um bom-dia sorridente do dono da padaria?

O comportamento controlador é um dos principais sinais indicando uma relação violenta. Num passado distante, lembro-me claramente do meu primeiro dia na faculdade, com os novos colegas participando do trote no campus, e de ver o cara de repente ali, do outro lado da rua, parado, observando-me. Essas "surpresas" que se travestiam de intenções apaixonadas: "Eu estava com saudades", "precisava te ver", "não posso ficar um minuto sem você", na verdade queriam dizer: "Não posso suportar que sua existência se desvie um milímetro de mim". Na minha experiência, sempre soube que aquilo era uma afronta à minha liberdade, assim como a moça que escreveu o depoimento para o blog da Lola sabe que ela está dormindo com o inimigo. Mas eu tinha medo. É MUITO difícil conseguir fugir... E fugir novamente, e mais uma vez, a cada vez que o fantasma reaparece...

A cartilha do Ministério Público lista os sinais que identificam as chances de uma relação se tornar fisicamente violenta:
  1. Comportamento controlador;
  2. Rápido envolvimento amoroso;
  3. Expectativas irreais da pessoa violenta com relação à parceira;
  4. A pessoa violenta é irritável, mostra-se facilmente insultada, ferida em seus sentimentos;
  5. Ela revela crueldade com crianças e animais;
  6. Atribui a responsabilidade de abusos passados às vítimas anteriores; 
  7. Abusa verbalmente da parceira:
O agressor poderá ser cruel, depreciativo, grosseiro. Tentará convencer sua parceira de que ela é estúpida, inútil e incapaz de fazer qualquer coisa sem ele.
Não, você não é louca, você não é burra e você não é feia! Ele é que é um canalha desequilibrado!

Eu falei mais acima da enorme dificuldade de escapar desse tipo de relacionamento abusivo. Como vimos com a fase da "lua de mel", o próprio modo de funcionamento dessas relações dificulta seu rompimento. Além das barreiras psicológicas, do medo, da vergonha e da solidão, devemos lembrar que a situação social precária da mulher contribui para mantê-la presa ao seu agressor: a velha tendência de se colocar a culpa na vítima que leva ao medo da rejeição social e, especialmente, a dependência econômica que muitas vezes prende a mulher ao homem. Por isso a importância de políticas públicas e de apoio institucional às mulheres (e suas crianças) agredidas, física e psicologicamente.

Para se libertar, é preciso sair do isolamento, é preciso se reaproximar dos amigos e da família, de grupos de apoio, compartilhar o problema. É mais fácil reunir forças para fugir quando se tem a possibilidade de refúgio. A mulher precisa saber que não está sozinha. Fico pensando em quantas mulheres passam as noites em claro; único momento em se sentem em segurança, enquanto seus agressores dormem. Que essa moça que escreveu para a Lola, ela e tantas outras, consiga o quanto antes sentir o alívio da liberdade.

Em uma relação de amor não deve haver espaço para o medo.

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Capital Erótico my ass 2 - continuação


por Tággidi Ribeiro

Esse é apenas o meu segundo post da série sobre a entrevista da Catherine Hakim na Veja, mas sinceramente, gente, eu tou com uma preguiça dessa mulher que deus me livre. Então, não comentarei frase por frase como no post passado, ok?
Beleza e carreira - “Aristóteles já dizia que a beleza é melhor do que qualquer carta de apresentação. As vantagens de uma boa aparência podem ser percebidas desde a infância. Pesquisas revelam que 75% das crianças que se encaixam nos padrões de beleza aceitos universalmente, como um rosto simétrico, são julgadas como corretas e cativantes, enquanto só 25% das que não têm essas características são vistas dessa forma. Presume-se que os belos são mais competentes -- e eles são tratados como tal. Atratividade e beleza são fundamentais para a ascensão profissional das mulheres nas sociedades modernas.”
1. Aristóteles é o filófoso que amassou o barro da sociedade moderna (ou os modernos o juntaram a seu barro), mas não é por isso que precisamos lhe dar razão. Assim como não precisamos dar razão sempre à ciência, que vemos tantas vezes contradizer-se. Agora, direi três nomes para contradizer a última frase dessa fala: Hillary Clinton, Angela Merkel e Dilma Roussef. É o bastante.

As feias que me perdoem - “Beleza extrema é algo raro, um item de luxo. Nem todo mundo nasce Elizabeth Taylor. Quem não tirou a sorte grande deve aprimorar o seu poder de atração. Na França, é comum o conceito de Belle Laide, a mulher feia que se torna atraente graças à forma como se apresenta à sociedade e ao seu estilo. Christine Lagarde, a diretora do Fundo Monetário Internacional, o FMI, é um exemplo de mulher que não ostenta a beleza clássica, mas é extremamente atraente. Tem personalidade, carisma, charme e boas maneiras. Se você não é bonito, por favor, vá à luta. Cultive um belo corpo, aprenda a dançar, desenvolva habilidades. E distribua sorrisos. Como Marilyn Monroe sempre soube, o mundo sorri de volta para quem sabe sorrir. O sorriso é um sinal universal de acolhimento, aceitação e contentamento em relação aos demais. Torna a todos mais atraentes.”
 2. 'As feias que me perdoem, mas eu me embananei toda na hora de defender minhas teorias sobre como é necessário ser belo', deveria ter dito Catherine Hakim. Carisma, personalidade, charme e boas maneiras, saber dançar e sorrir não são atributos do belo, quer dizer, não são próprios do belo, qualquer que seja ele. Todos nós conhecemos gente bonita e antipática/ feia e simpática, assim como conhecemos gente bonita e simpática/ feia e antipática. Geralmente preferimos pessoas (bonitas ou feias) simpáticas (que saibam dançar ou não), porque é melhor conviver com elas. Ainda assim, o sucesso profissional dessas pessoas dependerá de outros fatores, inclusive de ordem cultural. Nós brasileiros costumamos ser bem simpáticos, dizem, e, realmente, aqui a simpatia muitas vezes supera a necessidade de compromisso ou competência. Que eu saiba, na França, compromisso e competência são bem mais importantes que simpatia. Não é, Christine Lagarde, oitava mulher mais poderosa do mundo?  

Pensem.
Qué dizê, gente, o que a Catherine Hakim faz basicamente é tentar nos convencer de que mulheres poderosíssimas como Christine Lagarde devem seu status a sua beleza, carisma e charme e não a sua competência e trajetória. Deem uma olhada na lista das 100 mulheres mais poderosas do mundo, da Forbes, e nesse documentário e tirem suas próprias conclusões.

O próximo post, ainda sobre Hakim, vai ser tenso. Aguardem.  

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Feminismo: Um Guia Visual

por Roberta Gregoli

Fico me perguntando por que, mesmo depois de pelo menos 40 anos, muitos dos mitos e estereótipos relacionados ao feminismo e às feministas continuam presentes e fortes. Já tentei traçar algumas razões, mas vai ver que é mesmo difícil de entender. Então vamos simplificar.

Feminismo não é

O nome disto é misandria

Feminismo é



Feministas não são



São assim e assim:




O feminismo quer substituir


por



E

por


E quer substituir



por



Feminismo não é

Feminismo é

O feminismo quer substituir



por


E

por


Por favor, entendam: feminismo não é


Feminismo é



Ficou claro ou quer que eu desenhe?



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Outubro Rosa, porque algumas lutas são de todos nós


por Mazu



O Outubro Rosa poderia ser azul, verde ou lilás, mas quando se trata de prevenir e tratar de um assunto tão importante, acho que podemos deixar determinadas coisas de lado, só por um momento. Existem vários mitos que explicam a atribuição arbitrária de cores para masculino e o feminino. E, em algum momento de nossas vidas já escutamos várias histórias sobre como a cor lilás foi atribuída ao movimento feminista (cor do tecido de operárias assassinadas, junção entre o vermelho e o azul, etc). Contudo, entretanto, todavia, discutir as cores e o reflexo delas na sociedade e movimentos sociais não é bem a intenção deste post. Apesar de isso dar pano para manga e ser muito interessante, gostaria mesmo de aproveitar o Outubro Rosa e falar sobre a importância da prevenção do câncer de mama e alguns tabus que, infelizmente, ainda existem.

Assisti a uma pequena notícia de outubro do ano passado sobre o câncer de mama, machismo e tabu. Apesar de pequeno o vídeo incita muita reflexão. Acontece que para algumas mulheres, tocar-se, despir-se e ser tocada ainda são coisas culturalmente difíceis de lidar. E quebrar esse tabu pode ser super importante se isso ajudar a detectar qualquer problema e salvar vidas. 
Tocar-se e conhecer-se

Como disse, o vídeo é uma notícia bem rápida sobre mulheres das comunidades rurais mexicanas, apontando que, ano passado, ainda existiam mulheres que não faziam o exame porque os maridos temiam que suas mulheres fossem vistas ou tocadas pelos médicos. Isso parece distante da nossa realidade, mas deve ser muito mais real do que imaginamos. Especialmente, no Brasil, em que determinadas coisas insistem em ficar mascaradas.

Um argumento bom para começar é que os seios são nossos. Ponto, parágrafo, próxima linha. Não importa se uma mulher é casada com um homem, outra mulher ou se é religiosa ou não, ou se está aqui ou na China. Quando se trata da prevenção de uma doença como câncer é muito importante ter a noção, o senso, o sentimento de indivíduo. Isso porque se eu ficar doente, ainda que as pessoas que me amam e se preocupam comigo sofram, ninguém vai ficar doente comigo, certo? Ninguém vai dividir esse fardo específico comigo. Nem o marido, nem o pai, nem os amigos. Eles podem ficar tristes, mas, eventualmente, quem vai passar por tudo (e é muita coisa) sou eu.

Congresso Nacional Rosa pelo Outubro Rosa
Não quero dizer aqui que as pessoas têm que ter uma atitude egoísta com relação ao câncer. Na verdade, quanto mais solidariedade melhor. O que deve ficar claro é que meu corpo é meu, e o seu, é seu. Esse sentimento de autorrespeito e autoconhecimento pode evitar várias coisas e está relacionado com abandonar aquele mito da mulher patrimônio de que já falei aqui. Prevenir-se contra o câncer de mama é um dos vários motivos pelos quais as mulheres devem se entender como donas dos seus próprios corpos.

Todo mundo sempre conhece uma história, uma anedota sobre essa posse/ciúme do corpo alheio, sempre conhecemos alguém cujo companheiro não gosta que a esposa amamente em público ou corte o cabelo, ou altere sua aparência física de alguma forma. É importante perceber o seguinte: agradar ou ser mais paciente com essa ou aquela "besteirinha" da(o) parceira(o) não é um problema. O problema é o excesso, quando isso pode custar a dignidade ou a saúde de alguém. E também quando todas as tentativas de agradar ou compreender são unilaterais, ou seja, só partem de uma das pessoas no relacionamento.

Em 2004, uma trabalhadora metalúrgica do ABC paulista levou um beliscão no seio do seu superior direto, no chão de fábrica, em horário de expediente e, o mais importante, sem o consentimento dela. Na época, eu trabalhava com vários sindicalistas na CUT, e estávamos todos prontos para ajudá-la com os vários processos que isso acarretaria. Nunca conseguimos. A trabalhadora não seguiu adiante com as denúncias porque seu namorado ficou muito incomodado de ser publicamente visto como corno, já que outro homem havia apalpado SUA mulher. E aí está um exemplo claro de excesso. Deixar de exercer um direito ou deixar de cuidar da saúde por outra pessoa não compensa. Ninguém que ama e se importa de fato, exigiria esse tipo de sacrifício.

Catedral iluminada de rosa em Brasília
Não é que a gente não precisa da ajuda ou cooperação dos companheiros e companheiras, insisto, quanto mais solidariedade, melhor. O envolvimento de todos no combate e prevenção pode salvar vidas. As iniciativas como o Outubro Rosa são essenciais, e todos e todas devemos participar. É importante encorajar as mulheres das nossas vidas a se prevenir e se cuidar. Como mulheres, devemos procurar médicos que nos façam sentir confortáveis e devemos nos sentir confortáveis conosco mesmas para fazer e pedir aos médicos exames de todo o tipo. Lembrando que todo câncer quando detectado em estágios iniciais tem grandes chances de cura. Nenhum argumento deve valer mais que esse.

PS.: Antes que alguém venha como alguma piadinha sobre o câncer de próstata, vou me adiantar. As subvertidas apoiariam, com certeza, qualquer iniciativa que buscasse quebrar tabus para salvar vidas. Afinal, esse é um dos preceitos do movimento feminista, queremos homens e mulheres vivendo felizes e saudáveis!

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Capital Erótico my ass

por Tággidi Ribeiro

Gente, eu resolvi fazer uma série de posts comentando as falas da Caherine Hakim, autora de um livro chamado Capital Erótico na Veja (aquela revista séria que a gente já conhece). A Catherine Hakim é uma socióloga 'feminista' que supervaloriza a beleza e incentiva as mulheres a usá-la como forma de 'subir na vida' - a beleza funcionaria como 'capital erótico' da mulher. É, pois é. Prepare-se para a picaretagem que muita gente tomou como pensamento polêmico e renovador do feminismo. E antes ou depois, leia isso aqui e aqui.

“Inteligência e beleza são duas habilidades necessárias para o sucesso e muito semelhantes entre si: metade é hereditária, metade é resultado de investimentos de tempo e esforço. Não existe diferença moral entre a aparência e a inteligência. Acho justo que os mais belos ganhem mais. É frequente presumir que quaisquer benefícios concedidos a pessoas atraentes são desmerecidos e injustos. Quando se fala em sucesso, ninguém duvida do mérito dos inteligentes nem questiona a exclusão dos ignorantes. Por que não recompensar também quem se destaca pela aparência, sendo ela natural ou conquistada?” 
Inteligência e beleza - Catherine Hakim fala de beleza e inteligência como se fossem conceitos estabelecidos e permanentes. Ela ignora a possível existência de diversos tipos de inteligência (verbal, matemática, corporal, musical etc.) e as diversas formas da beleza, que muda (e muito) tanto no tempo quanto no espaço. Veja aqui.

Beleza e inteligência são habilidades - Pode ser um problema de tradução o uso da palavra ‘habilidade’ na definição tanto de beleza quanto de inteligência, mas pode ser também uma forma de tentar enganar as pessoas. Relacionamos facilmente a palavra habilidade ao que pode ser manipulado e melhorado. Daí a aceitarmos o paralelo desonesto entre beleza e inteligência é um pulo. 

Beleza e inteligência são necessárias para o sucesso – Nem uma nem outra o são. Existe muita gente estúpida que obtém sucesso por ter oportunidades melhores na vida. E beleza só é necessária para o sucesso na carreira de modelo (e, mesmo nessa carreira, ser apenas lindo não é o suficiente – tente não ser fotogênico pra ver o que acontece...).
Beleza e inteligência são metade hereditárias, metade resultado de investimentos de tempo e esforçoFala sério. De onde essa mulher tirou isso? É obviamente necessário exercitar o cérebro ou o corpo – ou as inteligências lógico-verbais/corporais-cinestésicas se estagnam. Mas o quanto cada pessoa deverá empenhar de si para alcançar níveis de excelência em suas atividades, aí, meu bem, não dá para dizer. Quanto à beleza, bem, não é uma atividade, né? Não é habilidade e nem capacidade e nem dá para comparar nesses termos com a inteligência. Mas dá para dizer que tem gente que se esforça muito pouco ou nada pra ser lindo e tem gente que faz 50 plásticas e nunca vai ser a Monalisa. Ou seja, essa história de metade/metade é pura balela.
Não existe diferença moral entre a inteligência e a aparência – Não. Porque só dá pra imputar moralidade aos usos de cada uma. Não há moralidade na inteligência nem na beleza em si. E que discordem de mim os filósofos.

Acho justo que os mais belos ganhem mais. É frequente presumir que quaisquer benefícios concedidos a pessoas atraentes são desmerecidos e injustos – Toda profissão, praticamente, possui piso e teto de salário. Pagar menos que o piso é ilegal, pagar mais não é ilegal, mas pode ser desastroso para as contas da empresa. Pagar mais a pessoas bonitas quando essa beleza traz retorno efetivo à empresa é justo. Pagar mais em qualquer situação, ou seja, mesmo quando os bonitos não influenciam nos ganhos da empresa, só me parece uma ação financeiramente estúpida.  
Quando se fala em sucesso, ninguém duvida do mérito dos inteligentes nem questiona a exclusão dos ignorantes - Ah, tá, é tudo simples nessa vida. A inteligência (qualquer que seja ela) é sempre reconhecida. Não há equívocos. A ignorância também é reconhecida e os ignorantes são logo postos de lado. O mundo é equilibrado, né?

Por que não recompensar também quem se destaca pela aparência, sendo ela natural ou conquistada? – Ai, pois, né? Tadinho desse pessoal bonito (ou que se esforça pra ser bonito), que não vê o seu valor reconhecido na nossa sociedade...

Ninguém presta atenção em mim

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Romney e seus fichários cheios de mulheres

por Roberta Gregoli

Ninguém deixa Baby numa pasta
No segundo debate presidencial dos EUA no dia 16, Mitt Romney disse uma frase que lhe atormentará pelo resto da campanha e, oxalá, lhe custará a eleição:

I went on a number of women's groups and said: "Can you help us find folks," and they brought us whole binders full of women.

Abordei vários grupos de mulheres e disse: "Vocês podem nos ajudar a encontrar pessoas [para ocupar o gabinete]?" e eles me trouxeram fichários cheios de mulheres. (minha tradução)
A frase tornou-se viral ainda durante o debate, com direito a memes como a acima, uma infinidade de twítes inteligentes sob a hashtag #binderfullofwomen e até uma página no Facebook que já conta com mais de 330 mil membros.

Mas a fala de Romney não é um caso isolado, uma gafe impensada. Trata-se de um sintoma, mais uma manifestação do consistente ataque aos direitos já conquistados pelas mulheres norte-americanas, que passou a ser chamado, em inglês, de War on Women. E para os que acham que a expressão é exagerada, basta olhar para os acontecimentos dos últimos meses.

Planejamento familiar

Apesar de não articular claramente onde faria o corte orçamentário que permitiria aumentar o orçamento de defesa em US$ 2 trilhões, um dos únicos cortes declarados por Romney seria para o programa de planejamento familiar chamado Planned Parenthood, que os republicanos entendem encorajar o aborto. Educação sexual e a promoção de métodos contraceptivos, ambos extremamente importantes para o planejamento de vida das mulheres, estariam, então, certamente comprometidos.

Estupro de leve


O útero de acordo com os republicanos
Em agosto, o também republicano Todd Akin, membro da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, falou em "estupro legítimo" (como se houvesse estupro de brincadeirinha) e, desafiando qualquer estudo científico e o mais básico senso comum, disse que "se o estupro for legítimo, o corpo feminino tem meios de bloquear [a gravidez]". Pulou a sexta série, coitado. Romney-Ryan rapidamente tentaram se dissociar do comentário, mas não é assim tão simples, já que a fala de Akin foi uma tentativa torpe de explicar por que o aborto nos casos de estupro deveria ser condenado, a mesma posição defendida pelo candidato à Vice-Presidência, Paul Ryan.

Aborto

Apesar de terem negado nas últimas semanas, há razões para se suspeitar que, caso eleito, Romney tentará revogar o direito ao abortamento legal, em vigor em nível federal nos Estados Unidos desde 1973. (Curiosidade: 4 anos antes do divórcio ser legalizado no Brasil... A nossa luta ainda é longa.) O mais amedrontador é que, como Presidente, Romney estará duas nomeações da Suprema Corte mais perto de conseguir, de fato, reverter a lei.

Um futuro de volta ao passado

A fala completa de Romney no debate está aqui e é possível verificar o tom totalmente paternalista e a linha de raciocínio toda equivocada. Como assim não existem mulheres qualificadas? Mais plausível que os assessores não sejam qualificados - ou vivam no século passado. E daí temos a pérola de que os grupos de mulheres enviaram "fichários cheios de mulheres". A palavra binder pode ser traduzida como pasta, fichário, arquivo ou catálogo, dependendo do contexto. Fico imaginando como são esses fichários: fotos e resumos, eu arrisco, talvez não muito diferente das revistas de moda.


A frase em inglês soa igualmente bizarra e cheia de implicações: o candidato então não conhecia nenhuma mulher que pudesse chamar para trabalhar com ele? Talvez não muito surpreendente numa religião que tem a poligamia (masculina, claro) em sua raiz, praticada até hoje, ilegalmente, no Utah. Entendemos, então, o quão distante Romney está das lideranças políticas e sociais femininas, de travar um diálogo para entender as necessidades específicas dessa comunidade. Para que ouvir a voz dessas mulheres? Pega aí o catálogo, vamos vem o que tem.

Em resumo, uma vitória de Romney-Ryan seria um enorme passo em direção ao passado. E aqui deixo com vocês Sandra Fluke, ativista feminista que foi proibida de participar de um debate republicano sobre o aborto no começo do ano, em seu discurso na Convenção Nacional Democrata. Infelizmente o vídeo não tem legendas, mas vale a pena gastar o inglês para ouvir este discurso lúcido e inspirador.

Sobre os dois futuros para as mulheres nos Estados Unidos: 
"Um desses futuros é uma relíquia ofensiva e obsoleta do nosso passado"

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Vencemos o quê, cara pálida?

por Mazu


Como é que é??

Este post vai ter um tom de desabafo, mas espero que a companheirada me perdoe. Estou aqui lembrando de quando a Bárbara teve uma semana super legal, só que não. Esse foi o meu final de semana massa, só que ao contrário. Fui chamada de feminista exagerada, extremista e acusada de ser incapaz de escutar a opinião alheia. Vai vendo. Justo eu que, na real, sempre me achei uma feminista de moderada a leve. Isso porque eu não entro em todas as discussões e dou até um sorriso amarelo quando meu chefe faz suas observações sexistas. Não me julguem, preciso pagar as contas.

Sei que tem uma das blogueiras famosas que se autodenomina “feminista cansada”, não sei bem se ela está cansada pelos mesmos motivos que eu, mas, cara, como cansa.

E sabe por que cansa tanto? Porque a gente se pega tendo a mesma discussão várias vezes, de diversas formas, com várias pessoas e, às vezes, com as mesmas. Esse feriado que passou, tive que repetir umas cinco vezes que feminismo não é o contrário de machismo, que a culpa da tripla jornada de trabalho não é das sufragistas (sim, eu escutei essa barbaridade de uma mulher jovem e bem resolvida), que a Carminha (a da novela) não merecia apanhar e que se a gente andasse de burca, o índice de violência contra a mulher não diminuiria nem no Distrito Federal e nem na China. Eu estaria feliz se tivesse mudado alguma coisa em alguém, mas parece que só fiquei mesmo com a fama de feminista chata e nada razoável.

De qualquer forma, serviu para refletir sobre algumas coisas. E uma matéria de revista me ajudou muito nisso. A Época de outubro de 2012 traz a seguinte matéria de capa: “A Mulher venceu a guerra dos sexos: elas estudam mais, são mais valorizadas no trabalho e já nem querem saber de namorar para não atrapalhar a carreira. Os homens que se cuidem...”.  Parece exagero, mas aí mora a origem de todo o mal: andam vendendo um imaginário de que a mulher já alcançou o máximo que poderia alcançar na nossa sociedade e que os homens estão ameaçados. Meu Deus, que bobagem!

Essa sensação de que já estamos com todos os direitos conquistados faz o feminismo parecer obsoleto e ridículo. E isso é um tiro no pé de todo mundo, inclusive dos homens. Já dissemos milhares de vezes no blog, a independência das meninas é a independência dos meninos. Ninguém precisa proteger ou sustentar uma mulher, hoje em dia, e isso tira peso de responsabilidade dos dois lados.

Sobre a tripla jornada de trabalho, a gente não trabalha mais porque a gente quer. Esta é a ideologia mais reacionária do planeta: a de que as minorias fazem ou deixam de fazer as coisas porque querem, já que hoje somos todos iguais. (Ai, faça-me o favor, vamos estudar história, né?) O que aconteceu é que as mulheres ganharam espaço no mercado de trabalho, mas ainda convivemos com a ideologia patriarcal de que a casa e os filhos são mais nossos que dos caras. O que não tem nada, absolutamente nada, a ver com as sufragistas. (Pelamor!) Tem a ver com a ideologia dominante do patriarcado. E se essa ideologia ainda exerce pressão sobre nós, mulheres, deixa eu te contar, moça, o feminismo ainda tem muito motivo para existir.

Um dos objetivos do blog é mostrar que as feministas não são loucas raivosas, e estou, hoje, tendo dificuldade com isso, já que estou cansada (como acabei de explicar) e com raiva, e a matéria da Época só não está pior porque acabou em cinco páginas.

A matéria começa falando de uma novela dos anos 1980 que está sendo readaptada. Indiferente, não foi boa antes, não vai ser boa agora. O ponto mais ou menos válido do início da matéria é que como alguma coisa mudou na sociedade em 20 anos, a readaptação meio que reflete isso. Por exemplo, uma das personagens era uma mulher mais livre sexualmente e, nos anos 1980, sua liberdade sexual foi censurada, hoje em dia, ela se sente mais enturmada socialmente. Uau.

A partir daí, a matéria começa a descrever como ocupamos o mercado de trabalho, como somos protegidas por algumas leis e como somos maioria nas Universidades. E segue dessa forma, duas páginas e meio de alegria, mostrando todas as nossas conquistas que, durante o texto, foram chamadas de “cataclismos sociais”, juro, na página 72:

“O mais provável que é que estejamos olhando para mudanças permanentes, como as provocadas por cataclismos sociais como o voto feminino ou a Segunda Guerra Mundial, que exigiu a presença feminina nas fábricas.”
Excelente escolha lexical da jornalista!

Depois de toda essa alegria, alguma coisa aconteceu com quem estava escrevendo a matéria, eu penso que um troço chamado “pesquisa” tenha acontecido com ela, e ela começou a apresentar os dados de que já falamos no blog algumas vezes. Ocupamos o mercado de trabalho, mas ainda ganhamos menos, somos menos promovidas, vivemos mais estressadas porque existe a pressão de ser bem sucedida no trabalho, mas existe a pressão de ser mãe e esposa para ser feliz. No cenário político, a participação ainda é pequena e tals. A matéria diz até uma coisa que gostei muito de ler sobre o fato de estarmos sobrecarregadas com essas pressões todas: “ou as empresas se adaptam ou as mulheres terão de rever seu papel em um dos dois lugares” (casa ou escritório). Ainda que isso possa soar como outra forma de pressão do tipo "pense bem no que você quer ser", é libertador, de certa forma, pensar que não precisamos ser tudo. Ainda que ser uma boa profissional e uma boa mãe de família seja comum, hoje em dia, é massacrante. E a gente tem direito de escolher, ou uma coisa ou outra.

Aviso para a Época: esta propagando foi retirada pelo Conar por ser machista e racista,
não é um sinal de vitória para mulher nenhuma.
De repente, a matéria ficou legal apontando como no Brasil, as mulheres ainda são mais apegadas a tradição patriarcal. Aqui, ter marido e filhos é prova de sucesso para mulher. É fato. E é inesquecível quando a seguinte situação acontece com você. Você estuda e se vira e tem suas coisas e escuta: você é casada? Tem filhos? Responde que não e percebe aquele olhar de desprezo na sua direção. Quem nunca?
Grifei Teló e Du Loren,
na lista de "sinais" de vitórias

Bom, a matéria estava indo super bem falando que, hoje, a mudança depende menos das leis e mais de comportamentos que precisam ser alterados, até o último parágrafo em que trouxe uma frase do Silvio de Abreu (Who?): “a mulheres já garantiram o espaço e estão por cima. O homem é que passou a reivindicar o seu lugar.” Meu Deus. Não. Como a matéria trouxe tantas pesquisas e pesquisadoras legais e opta por terminar com essa frase de um sujeito que não tem tradição nenhuma na pesquisa sobre gênero? Só porque ele escreveu uma novela chamada “Guerra dos sexos”?

Tanto esforço e tempo que a gente passa dizendo que “você não está sendo oprimido quando uma minoria exige direitos que você sempre teve”. Tanto tempo mostrando números absurdos de violência e para quê? Para uma grande revista de grande circulação vir com essa conversa de que já ganhamos, está tudo dominado, os homens que se cuidem? Sério como assim alguém acha que “Ai se eu te pego” do Michel Teló e a propaganda racista e preconceituosa da Du Loren são sinais de que já alcançamos nosso lugar ao sol? Como não ficar brava, como ser razoável? Alguém me ajude com isso.

Que canseira e que desânimo. Para começar, não existe guerra dos sexos ou, pelo menos, não deveria existir, já que ter direitos iguais é legal para todo mundo porque ninguém tem mais responsabilidade do que ninguém. Em segundo lugar, esse tipo de matéria e de ideias que ela propaga só serve para deixar os homens na defensiva, e isso não ajuda o movimento. Aliás, não ajuda ninguém.



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Feminismo e beleza: a grande questão

por Barbara Falleiros

Atributos típicos da feminista padrão:
cabelo mal cuidado, roupa desleixada,
fumo e muitos pelos no corpo.
Nos últimos meses, com as garotas da Femen oferecendo à grande mídia a imagem polida de neofeministas nórdicas geneticamente privilegiadas (como sugeriu Sara Winter), assistimos a uma grande revolução: a palavra feminista, que o vulgo assimilara anteriormente a sapatona hippie peluda desleixada, ganha a nova acepção de loirinha gostosa pagando peitinho. Como convém, a luta das mulheres reduz-se a este âmbito, por natureza "feminino", que é a beleza: só o que interessa é saber se a ativista é feia ou bonita, encaixá-la ou excluí-la de um padrão de beleza. E por quê? [Aqui termina a ironia desta introdução] Porque a beleza é o único poder que se concede às mulheres.

As relações entre feminismo e beleza são complexas; estes conceitos, por si só, já o são. Porém, mais uma vez a história nos ajuda a fugir das generalizações da ignorância. A grande bandeira do senso comum antifeminista é a de que feministas não são femininas, entendendo a feminilidade como uma certa graça, delicadeza, vaidade e beleza características das mulheres. Só aí já dava discussão para uma vida inteira.

"Linda e loira" já no século XV. Mas ainda
nada de silicone, bronzeamento ou alisamento.
Mas vamos devagar. Primeiramente, não dá para ser "contra a beleza" pois esta, enquanto experiência de apreciação estética, é própria do gênero humano. Padrões de beleza ideal estão presentes em todas as sociedades, em todos os tempos. No entanto, estes padrões não são absolutos mas variam conforme o lugar e a época. Por exemplo, na Europa do século XV, o ideal de beleza feminina caracterizava-se pela pele pálida, os seios pequenos, o ventre redondo. Jamais uma dama tentaria esconder com seus cabelos louros uma testa proeminente! Pelo contrário: as outras é que, desesperadas, tentavam aumentar a superfície da sua testa depilando com cal viva o alto da cabeça... Vale dizer também que, nesta época, a beleza era entendida como um reflexo das qualidades morais...

Mas se há sempre um padrão ideal que se busca atingir, por que é então que as feministas criticam as mulheres que querem ficar mais bonitas? - pergunta de novo o senso comum. Balela. Mas pensemos: ficar bonita por que e para quem? A nossa beleza ocidental, "globalizada", é também comercializada. É um produto. Por trás dela está a indústria da beleza. Esta indústria precisa criar um ideal cada vez mais inatingível para abalar a tal ponto a nossa percepção de si, para que nos sintamos tão feias, tão desagradáveis visualmente, que a cada manhã passemos horas na frente do espelho, diante de um arsenal de frascos e tubos e aparelhos, nunca suficientes, para que tenhamos enfim coragem de levantar os olhos em direção ao outro e enxergar nossa presença no mundo. Odiar nossos corpos para comprar uma imagem melhor. O que as feministas criticam é esta necessidade de ser ou de ficar bonita (inclusive para "seduzir" um homem) como a única forma de uma mulher se afirmar como sujeito. A Tággidi falou outro dia de como a propaganda molda nossas mentes e corpos. Produtos de beleza tornam-se promessas de sucesso. A felicidade é jovem, lisa, limpa. Antirrugas, perfumes, peeling, hidratação, drenagem linfática, escova progressiva, luzes, silicone, lipoaspiração, bronzeamento, musculação, clareamento dos dentes. Ficar bonita e pagar pela beleza é vencer na vida.

Benoîte Groult
"Uma coisa é viver pela imagem, mas essas feministas aí são muito descuidadas, credo". Ora, um pouco de perspectiva histórica não faz mal a ninguém. Temos que pensar no significado da ruptura da imagem tradicional da mulher provocada pelo movimento feminista nos anos 60/70. As feministas desta época romperam com uma beleza considerada burguesa e alienada e valorizaram mais o natural: o natural de um corpo  solto, livre.

Li uma entrevista interessante sobre o assunto, não muito recente (de 2003), com uma escritora e militante francesa chamada Benoîte Groult. Seu caso é particular pois ela viveu sua juventude no meio da moda, sua mãe tinha uma maison de couture e seu tio era o famoso estilista Paul Poiret, considerado um precursor do estilo Art Déco. Na entrevista, Benoîte fala da obrigação de seduzir os homens que pesava sobre as garotas em idade de se casar:

Bette Davis, solteirona em
The Old Maid
"Durante toda a minha infância, eu vivi obcecada pela obrigação de beleza e sedução que era imposta às meninas. Em 1936 eu tinha 16 anos e nessa idade, naquele tempo, entrávamos na horrível categoria de meninas "para casar" (...). Se, com 25 anos, a gente ainda não estivesse casada, entrávamos em outra categoria horrível, a das solteironas, o terrível arquétipo da literatura dos dois últimos séculos: tornávamo-nos aquela tia largada, desprezada, prima pobre, éramos consideradas necessariamente feias."

Benoîte conta então como, nos anos 70, as mulheres da sua geração deixaram de ter vergonha do próprio corpo e buscaram falar sobre ele, conhecê-lo. Elas se libertaram da obrigação de serem belas para casar e das roupas que as oprimiam, não só simbolicamente, mas também fisicamente: a cinta-liga, por exemplo, que machucava e cortava a cintura.

"Que libertação, que felicidade! Era como se eu tivesse renascido! Eu tinha mais de 40 anos, mas comecei a viver. Já não era obrigada a usar os vestidos de alta-costura da minha mãe. Nós não éramos obrigadas a obedecer aos cânones de beleza. Podíamos afrouxar as algemas, vestir-nos como gostávamos (...)"
Ao promoverem uma liberação física e mental em relação ao corpo feminino, elas conseguiram usufruir de uma liberdade que fez com que se sentissem de fato belas. Uma ideia eficiente retomada por uma série de campanhas atuais que procuram incentivar as mulheres a amarem e respeitarem o próprio corpo.


Benoîte Groult é uma feminista que fez plástica e que não é contra a medicina estética per se. Sim. Existe. Mas daí a fazer das mulheres escravas de um padrão cruel e inatingível é bem diferente. Ela chama a atenção para o que considera um retrocesso na nossa época, uma vulnerabilidade aos ditados da moda e aos padrões de beleza que prova como ainda estamos impregnadas da ideologia tradicional.

É desesperador! É como se a revolução de 1968 não tivesse servido para nada. Seios siliconados, lábios inchados artificialmente, coxas lipoaspiradas! Impõe-se uma beleza feminina estereotipada que é uma escravidão.
(...) Chegamos a um estágio inacreditável de pornô chique na moda. E ninguém diz: vocês são ridículas com seus saltos agulha torturando seus dedos, vocês morrerão de dores nas costas mais tarde. Estas mulheres que eu vejo nos aeroportos com seus saltos 12 cm, de saia apertada, arrastando malas pesadas, olho pra elas com a mesma pena que me inspiram as mulheres de véu. Todas elas se deixam condicionar, umas pela religião, outras pela sociedade de consumo ou pelas supostas fantasias masculinas.
Com esta crítica, retomo as perguntas colocadas acima. O cerne da questão não está em ser ou não ser bonita, mas em ser bonita para que, por que ou para quem? Para se sentir amada? Para se dar valor? Simplesmente para existir? É nas motivações que se escondem as amarras.

Ser bonita é ser feliz! ... já dizia a propaganda de sabonete.