Dormindo com o inimigo: os mecanismos da violência conjugal

por Barbara Falleiros

Esta semana, no blog da Lola, li um depoimento que me fez pensar nos mecanismos da violência e da dominação que às vezes (demasiadas vezes) governam as relações de um casal. A Mazu, nos seus comentários sobre a violência física e psicológica exercida por maridos e companheiros sobre as mulheres, já nos deu alguns exemplos bem reais.

 Agressão verbal, ameaças, gestos e posturas agressivas. A
violência psicológica pode ferir mais do que a física
O que me impressiona ao ler essas histórias de violência conjugal é a recorrência de certos elementos e o fato de elas acontecerem não apenas lá longe, com famílias socioeconomicamente desfavorecidas, com "gente sem estudo e sem educação", como dizem alguns, mas com qualquer um. Tem aquele marido sem camisa, largado no sofá, entupindo-se de cachaça e que termina o domingo batendo na esposa. Mas acontece da mesma forma na casa do médico agressivo, do empresário dominador, do professor universitário que diz que a esposa é burra, acontece com a adolescente de família cujo namorado possessivo faz figura de bom moço.

Uma cartilha distribuída pelo Ministério Público de São Paulo ("Mulher, vire a página... e seja protagonista de um final feliz!") mostra as três fases do chamado Ciclo da violência:


Em termos de manutenção do domínio sobre a vítima, a fase mais poderosa é esta "lua de mel" que antecede a evolução da próxima tensão. O seu objetivo é dissuadir a mulher de partir e fazê-la acreditar que o agressor é capaz de mudar seu comportamento. Mais do que isso, essa fase encoraja a mulher a buscar desculpas para as atitudes violentas : "Ele estava passando por um dia ruim", "Ele não é assim", "Ele está arrependido". Posso dizer que se ganha muito mais flores, perfumes, bombons e presentes de um homem machista e violento do que daquele que vê sua companheira como igual.

Viver com um homem machista é viver cercada. Ele te faz achar que sente ciúmes porque te ama, quando na verdade os ciúmes são sua forma de afirmar que a mulher lhe pertence. Sob a dominação de um homem machista, vive-se em constante estado de alerta, a medir as palavras, controlar as ações, abaixar os olhos, finalmente calar-se. "Ai meu Deus, agora ele vai achar que..." - quantas mulheres não são tomadas pelo pavor da reação de seus "companheiros" (a palavra certamente não cabe) a situações totalmente sem importância, como receber um bom-dia sorridente do dono da padaria?

O comportamento controlador é um dos principais sinais indicando uma relação violenta. Num passado distante, lembro-me claramente do meu primeiro dia na faculdade, com os novos colegas participando do trote no campus, e de ver o cara de repente ali, do outro lado da rua, parado, observando-me. Essas "surpresas" que se travestiam de intenções apaixonadas: "Eu estava com saudades", "precisava te ver", "não posso ficar um minuto sem você", na verdade queriam dizer: "Não posso suportar que sua existência se desvie um milímetro de mim". Na minha experiência, sempre soube que aquilo era uma afronta à minha liberdade, assim como a moça que escreveu o depoimento para o blog da Lola sabe que ela está dormindo com o inimigo. Mas eu tinha medo. É MUITO difícil conseguir fugir... E fugir novamente, e mais uma vez, a cada vez que o fantasma reaparece...

A cartilha do Ministério Público lista os sinais que identificam as chances de uma relação se tornar fisicamente violenta:
  1. Comportamento controlador;
  2. Rápido envolvimento amoroso;
  3. Expectativas irreais da pessoa violenta com relação à parceira;
  4. A pessoa violenta é irritável, mostra-se facilmente insultada, ferida em seus sentimentos;
  5. Ela revela crueldade com crianças e animais;
  6. Atribui a responsabilidade de abusos passados às vítimas anteriores; 
  7. Abusa verbalmente da parceira:
O agressor poderá ser cruel, depreciativo, grosseiro. Tentará convencer sua parceira de que ela é estúpida, inútil e incapaz de fazer qualquer coisa sem ele.
Não, você não é louca, você não é burra e você não é feia! Ele é que é um canalha desequilibrado!

Eu falei mais acima da enorme dificuldade de escapar desse tipo de relacionamento abusivo. Como vimos com a fase da "lua de mel", o próprio modo de funcionamento dessas relações dificulta seu rompimento. Além das barreiras psicológicas, do medo, da vergonha e da solidão, devemos lembrar que a situação social precária da mulher contribui para mantê-la presa ao seu agressor: a velha tendência de se colocar a culpa na vítima que leva ao medo da rejeição social e, especialmente, a dependência econômica que muitas vezes prende a mulher ao homem. Por isso a importância de políticas públicas e de apoio institucional às mulheres (e suas crianças) agredidas, física e psicologicamente.

Para se libertar, é preciso sair do isolamento, é preciso se reaproximar dos amigos e da família, de grupos de apoio, compartilhar o problema. É mais fácil reunir forças para fugir quando se tem a possibilidade de refúgio. A mulher precisa saber que não está sozinha. Fico pensando em quantas mulheres passam as noites em claro; único momento em se sentem em segurança, enquanto seus agressores dormem. Que essa moça que escreveu para a Lola, ela e tantas outras, consiga o quanto antes sentir o alívio da liberdade.

Em uma relação de amor não deve haver espaço para o medo.

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