Feminismo e beleza: a grande questão

por Barbara Falleiros

Atributos típicos da feminista padrão:
cabelo mal cuidado, roupa desleixada,
fumo e muitos pelos no corpo.
Nos últimos meses, com as garotas da Femen oferecendo à grande mídia a imagem polida de neofeministas nórdicas geneticamente privilegiadas (como sugeriu Sara Winter), assistimos a uma grande revolução: a palavra feminista, que o vulgo assimilara anteriormente a sapatona hippie peluda desleixada, ganha a nova acepção de loirinha gostosa pagando peitinho. Como convém, a luta das mulheres reduz-se a este âmbito, por natureza "feminino", que é a beleza: só o que interessa é saber se a ativista é feia ou bonita, encaixá-la ou excluí-la de um padrão de beleza. E por quê? [Aqui termina a ironia desta introdução] Porque a beleza é o único poder que se concede às mulheres.

As relações entre feminismo e beleza são complexas; estes conceitos, por si só, já o são. Porém, mais uma vez a história nos ajuda a fugir das generalizações da ignorância. A grande bandeira do senso comum antifeminista é a de que feministas não são femininas, entendendo a feminilidade como uma certa graça, delicadeza, vaidade e beleza características das mulheres. Só aí já dava discussão para uma vida inteira.

"Linda e loira" já no século XV. Mas ainda
nada de silicone, bronzeamento ou alisamento.
Mas vamos devagar. Primeiramente, não dá para ser "contra a beleza" pois esta, enquanto experiência de apreciação estética, é própria do gênero humano. Padrões de beleza ideal estão presentes em todas as sociedades, em todos os tempos. No entanto, estes padrões não são absolutos mas variam conforme o lugar e a época. Por exemplo, na Europa do século XV, o ideal de beleza feminina caracterizava-se pela pele pálida, os seios pequenos, o ventre redondo. Jamais uma dama tentaria esconder com seus cabelos louros uma testa proeminente! Pelo contrário: as outras é que, desesperadas, tentavam aumentar a superfície da sua testa depilando com cal viva o alto da cabeça... Vale dizer também que, nesta época, a beleza era entendida como um reflexo das qualidades morais...

Mas se há sempre um padrão ideal que se busca atingir, por que é então que as feministas criticam as mulheres que querem ficar mais bonitas? - pergunta de novo o senso comum. Balela. Mas pensemos: ficar bonita por que e para quem? A nossa beleza ocidental, "globalizada", é também comercializada. É um produto. Por trás dela está a indústria da beleza. Esta indústria precisa criar um ideal cada vez mais inatingível para abalar a tal ponto a nossa percepção de si, para que nos sintamos tão feias, tão desagradáveis visualmente, que a cada manhã passemos horas na frente do espelho, diante de um arsenal de frascos e tubos e aparelhos, nunca suficientes, para que tenhamos enfim coragem de levantar os olhos em direção ao outro e enxergar nossa presença no mundo. Odiar nossos corpos para comprar uma imagem melhor. O que as feministas criticam é esta necessidade de ser ou de ficar bonita (inclusive para "seduzir" um homem) como a única forma de uma mulher se afirmar como sujeito. A Tággidi falou outro dia de como a propaganda molda nossas mentes e corpos. Produtos de beleza tornam-se promessas de sucesso. A felicidade é jovem, lisa, limpa. Antirrugas, perfumes, peeling, hidratação, drenagem linfática, escova progressiva, luzes, silicone, lipoaspiração, bronzeamento, musculação, clareamento dos dentes. Ficar bonita e pagar pela beleza é vencer na vida.

Benoîte Groult
"Uma coisa é viver pela imagem, mas essas feministas aí são muito descuidadas, credo". Ora, um pouco de perspectiva histórica não faz mal a ninguém. Temos que pensar no significado da ruptura da imagem tradicional da mulher provocada pelo movimento feminista nos anos 60/70. As feministas desta época romperam com uma beleza considerada burguesa e alienada e valorizaram mais o natural: o natural de um corpo  solto, livre.

Li uma entrevista interessante sobre o assunto, não muito recente (de 2003), com uma escritora e militante francesa chamada Benoîte Groult. Seu caso é particular pois ela viveu sua juventude no meio da moda, sua mãe tinha uma maison de couture e seu tio era o famoso estilista Paul Poiret, considerado um precursor do estilo Art Déco. Na entrevista, Benoîte fala da obrigação de seduzir os homens que pesava sobre as garotas em idade de se casar:

Bette Davis, solteirona em
The Old Maid
"Durante toda a minha infância, eu vivi obcecada pela obrigação de beleza e sedução que era imposta às meninas. Em 1936 eu tinha 16 anos e nessa idade, naquele tempo, entrávamos na horrível categoria de meninas "para casar" (...). Se, com 25 anos, a gente ainda não estivesse casada, entrávamos em outra categoria horrível, a das solteironas, o terrível arquétipo da literatura dos dois últimos séculos: tornávamo-nos aquela tia largada, desprezada, prima pobre, éramos consideradas necessariamente feias."

Benoîte conta então como, nos anos 70, as mulheres da sua geração deixaram de ter vergonha do próprio corpo e buscaram falar sobre ele, conhecê-lo. Elas se libertaram da obrigação de serem belas para casar e das roupas que as oprimiam, não só simbolicamente, mas também fisicamente: a cinta-liga, por exemplo, que machucava e cortava a cintura.

"Que libertação, que felicidade! Era como se eu tivesse renascido! Eu tinha mais de 40 anos, mas comecei a viver. Já não era obrigada a usar os vestidos de alta-costura da minha mãe. Nós não éramos obrigadas a obedecer aos cânones de beleza. Podíamos afrouxar as algemas, vestir-nos como gostávamos (...)"
Ao promoverem uma liberação física e mental em relação ao corpo feminino, elas conseguiram usufruir de uma liberdade que fez com que se sentissem de fato belas. Uma ideia eficiente retomada por uma série de campanhas atuais que procuram incentivar as mulheres a amarem e respeitarem o próprio corpo.


Benoîte Groult é uma feminista que fez plástica e que não é contra a medicina estética per se. Sim. Existe. Mas daí a fazer das mulheres escravas de um padrão cruel e inatingível é bem diferente. Ela chama a atenção para o que considera um retrocesso na nossa época, uma vulnerabilidade aos ditados da moda e aos padrões de beleza que prova como ainda estamos impregnadas da ideologia tradicional.

É desesperador! É como se a revolução de 1968 não tivesse servido para nada. Seios siliconados, lábios inchados artificialmente, coxas lipoaspiradas! Impõe-se uma beleza feminina estereotipada que é uma escravidão.
(...) Chegamos a um estágio inacreditável de pornô chique na moda. E ninguém diz: vocês são ridículas com seus saltos agulha torturando seus dedos, vocês morrerão de dores nas costas mais tarde. Estas mulheres que eu vejo nos aeroportos com seus saltos 12 cm, de saia apertada, arrastando malas pesadas, olho pra elas com a mesma pena que me inspiram as mulheres de véu. Todas elas se deixam condicionar, umas pela religião, outras pela sociedade de consumo ou pelas supostas fantasias masculinas.
Com esta crítica, retomo as perguntas colocadas acima. O cerne da questão não está em ser ou não ser bonita, mas em ser bonita para que, por que ou para quem? Para se sentir amada? Para se dar valor? Simplesmente para existir? É nas motivações que se escondem as amarras.

Ser bonita é ser feliz! ... já dizia a propaganda de sabonete.

5 comentários:

  1. Concordo plenamente! Excelente post!
    As mulheres modernas, mesmo após anos de luta contra a opressão patriarcal e social, ainda não compreenderam bem o significado da palavra "liberdade"! Liberdade, independência, não é apenas a financceira, não. É ter liberdade em tudo, sem ser escrava de ditames de moda e estética. Porque os homens não são escravos de moda, de shopping, blablabla? Bem, porque sabem que deles a exigência relativa à aparência é mínima.

    Não quero dizer que as pessoas (homens e mulheres) devam andar feios e mal vestidos. Apenas que é preciso valorizarmos mais as pessoas pelo que elas "SÃO" e não pelo que "APARENTAM".

    Parabéns pelo blog!
    :-)

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  2. OLá! Parabéns pelo texto. Recomendei-o no meu facebook e vou divulga-lo tb no Blog das Cabeludas: www.facebook.com/blogdascabeludas

    Bjs

    Nanda Cury

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  3. Excelente texto! Mas eu não me sinto confortável com essa idéia de que as mulheres se deixam condicionar por religião ou pela sociedade de consumo. Não penso que isso seja uma questão de escolha e certamente um assunto muito mais complicado. Ontem por exemplo, eu assisti a entrevista da candidata da presidência do Afeganistão, Fawzia Koofi que estava estava no programa do John Stwart para divulgar o livro dela: Favored Daughter. Fawzia conta que ela como a maioria das mulheres no Afeganistão sao ignoradas ao nascer pelos pais e pelo país e crescem invisiveis como sujeito, a sociedade. Fawzia espera ser assassinada a qualquer momento mas ao invés de se exilar num outro país e lutar remotamente pelas transformações sociais que ela gostaria de ver acontecer, prefere viver no Afeganistão tentando mudar o curso da história das mulheres. Curiosamente Fawzia usa o véu, fato que eu vejo como uma tentativa de reduzir o risco de vida na corrida contra o tempo em que ela se coloca. Por ter uma vida pública e ser foco da mídia nesse momento, eu pergunto o uso do véu constituí um ato de submissão ou de estratégia?

    Um outro ponto que eu vejo como fator complicador é falar sobre feminismo, conceito de beleza e sociedade de consumo sem sobrepor raça e classe, principalmente no Brasil onde essas duas coisas se confundem. Pensando nos ideais de beleza das sociedades dominantes e num suposto mundo “globalizado” fica muito mais complicado falar dessas questões. Não tenho dúvida de que a contribuição da revoluçao feminina nos anos 60/70 estão gravadas em nossos DNAs, e penso que a resistência e a discussão é essencial para emancipacão, no entanto eu penso que o modelo de luta que inspirou o mundo nos anos 60/70 precisa de reajustes.

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    1. Olá Ana,

      Muito interessante o que você disse sobre essa candidata afegã Fawzia Koofi. Que coragem! O uso do véu não me parece neste caso um ato de submissão... Como ela já está numa posição transgressora ao buscar um espaço político, precisa garantir uma "margem de manobra" pra sua voz ser ouvida, né? Se "rasgasse o véu", ela não seria apenas vista como uma "vagabunda" e ignorada/silenciada/assassinada mais rapidamente?

      Quanto às questões raciais e econômicas, de fato o texto foi escrito do meu lugar de mulher branca de classe média, assim como o discurso da B. Groult se produz neste mesmo lugar. Seria muito legal pensar a questão da perspectiva que você sugere. Tema para um outro post, talvez!

      Obrigada pelo comentário e por acompanhar o blog!

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