Os filósofos iluministas e a mulher - a contribuição de Adília Maia Gaspar

por Tággidi Ribeiro

Não só as religiões trataram de produzir discursos que, digamos assim, 'esquentassem a chapa' das mulheres. Desde nos dividir entre santas e putas e nos culpar por sermos estupradas a nos obrigar a pagar (com nossos corpos) dívidas de outros homens da casa - as religiões complicaram e muito as nossas vidas. As tais não são, contudo, as únicas culpadas (para usar vocábulo apropriado) por termos sido massacradas* ao longo da história. Não só os religiosos, mas também alguns (muitos) filósofos fizeram o favor de tentar justificar o tratamento vilipendioso dado às mulheres.

No livro A Representação das Mulheres no Discurso dos Filósofos: Hume, Rousseau, Kant e Condorcet, a portuguesa Adília Maia Gaspar reúne textos desses quatro filósofos iluministas sobre a mulher. Que ninguém pense em relativizar historicamente o pensamento desses homens (brincando sério): são todos contemporâneos e ainda assim têm visões distintas acerca do valor da mulher na construção da sociedade e como ser humano. O chato, na verdade, é saber que as ideias mais machistas foram as que mais ganharam adesão, sendo publicizadas pelos grandes meios e repetidas à exaustão pelos ogros de hoje.

Kant
"Mulher tem que ser bonita" - agora o povo do boteco vai poder falar de boca cheia que quem disse isso foi Kant. Bem, ele não disse exatamente dessa forma - ele separou os gêneros em belo e nobre. A mulher (o belo sexo), segundo Kant, é naturalmente mais bela que o homem e pouco capaz de pensar. O homem (o sexo nobre) é naturalmente mais dado à filosofia que a mulher, e nem de longe tão belo. Para que os pares não parecessem muito díspares, Kant recomendava à mulher ganhar algum verniz intelectual; ao homem, recomendava que estivesse limpo e arrumadinho.

Rousseau
"Lugar de mulher é na cozinha" - Rousseau dizia que as mulheres tinham uma tendência natural a obedecer. Se elas eram mais fracas fisicamente, isso era sinal de que deviam ser submetidas aos homens (interessante o filósofo que questiona o direito da força dizendo isso, não?). Já que as mulheres tinham nascido dóceis e fracas, Rousseau achava que elas deviam ser ensinadas a serem boazinhas, agradáveis e a cuidarem da casa.

Hume e Condorcet, contemporâneos mais esclarecidos desses dois outros famigerados filósofos das luzes, atribuíram à pressão social o fraco desejo sexual e o recato, à época considerados naturais nas mulheres (Hume) e pretenderam que o direito à educação e ao voto fossem garantidos igualmente a homens e mulheres (Condorcet). Este chega a defender uma ideia completamente absurda para os homens do século XVIII e que ainda hoje não é aceita por todo mundo: a de que mulheres também são capazes de fazer-se cientistas e filósofas. Para prová-la, refere professoras de medicina e filósofas do século XVII, estigmatizadas e posteriormente proibidas de frequentar as universidades.

Condorcet
Verdadeiramente revolucionárias em sua época, as palavras de Hume e Condorcet foram escarnecidas e providencialmente esquecidas. Ainda bem que mulheres conscientes como a Adília Maia Gaspar perceberam a importância fazer esse trabalho de rememoração, buscando na história do pensamento masculino a história da mulher. Como povos conquistados, nós mulheres precisamos ler as entrelinhas da história do conquistador para construir a nossa história. Precisamos, sobretudo, contestar a narrativa do conquistador.



*Falar em massacre de gênero não é exagero: nos proibiram a educação, fomos varridas da vida política, submeteram-nos ao confinamento doméstico, reprimiram nosso desejo mas repetidamente nos violentaram, e, quando quisemos nos revoltar, nos mataram.

3 comentários:

  1. Não sabia que feminista (que coisa mais antiga e brega!!!) agora significava metida, mal informada e desprovida de conhecimento útil. Não iria te fazer mal ler algumas revistas de moda. Ou então Drucker, Kotler ou Chiavenato.
    Quem sabe lendo estes autores, seu salário melhore e você também possa comprar Prada, Gucci e Louboutin.
    Já ouviu falar que Simone de Beauvoir trouxesse algum proveito prático para quem a leu?? Ler esse tipo de livro agrega valor à carreira?? Ajuda na promoção?? É digno de nota em um currículo?? OU seja, dá dinheiro ler isso?
    Enfim, melhor antes de sair por aí comentando, cuidar com o mico. Vai que você vai comentar em um blog de moda, mas que é escrito por uma superdotada, Doutora em Administração por Yale, e uma das maiores especialistas em Planejamento de RH do país!
    E para sua lembrança, umas palavras que estavam guardadas, mas hoje reencontrei e acho que merecem sim a resposta acima:
    "Não sabia que inteligente agora significava fútil, consumista e desprovida de autocrítica. Não ia te fazer mal ler alguns livros (já ouviu falar em Simone de Beauvoir?) em vez de revistas de moda."

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    1. A resposta não só corrobora, mas também reforça a crítica inicial.

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  2. O que sempre me admira nesse tipo de discurso é a incongruência entre, de um lado, a ânsia de valorização do conhecimento e da titulação acadêmica e, de outro, a ideia rasa que se faz do saber, monetarizável, que a fórmula "dá dinheiro ler isso?" resume perfeitamente. Se esse discurso não "agrega valor" à discussão, também nos evita qualquer esforço de resposta, pois já carrega em si as provas da própria ignorância.

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