Humor masoquista

por Roberta Gregoli

Essa semana ouvi mais de uma vez afirmações muito parecidas: piada de gordo feita por gordo não tem problema, piada de gordo feita por magro, sim. Por extensão, o mesmo se aplicaria a piadas que têm como alvo minorias étnicas e históricas (negrxs, judeus, mulheres).

Resolvi testar essa tese com este vídeo da Fernanda Young, que ironiza a Marcha das Vadias:


O fato da Fernanda Young ser mulher legitima a piada ou a faz mais engraçada? Se fosse um homem, reclamaríamos, mas por ser mulher tudo bem, certo? Errado. A 'piada' ter sido feita por uma mulher, para mim, faz do quadro ainda mais triste. Por que alguém gozaria do próprio grupo, minando a legitimidade de uma forma de protesto? 

Nesse caso específico, acho que existe um forte elemento de classe embutido na 'piada' de Young. É possível que ela brinque que quer ser encoxada no ônibus simplesmente porque ela não tem de pegar ônibus. É nessas horas que eu admiro a lucidez da Presidenta Dilma Rousseff quando diz que é mais difícil ser uma mulher comum do que presidenta da República porque a mulher do povo sofre mais violência e desigualdade salarial. Ou seja, é fácil para a Fernanda Young - que está com a barriga cheia, não sofre violência doméstica ou assédio de rua, reduzir a Marcha das Vadias a uma demanda por sexo caliente. É possível ter fantasias eróticas que envolvam violência física quando não se é vítima de violência de fato, quando se está empoderada o suficiente, no caso, com um emprego de reconhecimento financeiro e social. É fácil rir do assédio no transporte público quando se está dirigindo carro com o vidro fechado e insulfilm.

Enfim, como diria a sabedoria popular, pimenta nos olhos dos outros é refresco. Rir do ardume, então, é sadismo. Mas se, por um lado, em relação à classe social, Young está rindo da tragédia dos outros, por outro está rindo da própria miséria porque, apesar desse tipo de violência não fazer parte de seu cotidiano, ela, como mulher, também está sujeita a ser assediada, agredida, estuprada. Vai que o carro dela quebra.

Sobre humor e subversão, a melhor epítome que já vi está no essencial documentário O Riso dos Outros: "O humor que mais gosto é o que não ri da vítima, mas do carrasco". Veja aqui a partir da marca 43'35'' - mas vale a pena ver o documentário todo:


No humor, sempre se está escolhendo um lado: ou se ri da vítima ou do algoz.

E, quando se ri da vítima, não interessa se quem está rindo é a própria vítima ou o carrasco. Assim como no caso do humor machista de Fernanda Young, as piadas racistas de Danilo Gentili não seriam menos graves ou mais aceitáveis se fossem feitas por um negro.

É claro que existem piadas e piadas. Uma piada sobre minorias feitas por representantes dessa minoria  não é, necessariamente, preconceituosa. Ela pode ser autocrítica, empoderadora, subversora. Um exemplo sobre o mesmo tópico, a sexualidade feminina, é o da Margaret Cho, com uma piada mais ou menos assim (vocês podem ver a versão original aqui):

Um de meus primeiros empregos como comediante stand-up foi num cruzeiro lésbico. No barco, eu transei com uma mulher pela primeira vez. Daí veio todo o drama, será que sou gaaaay, sou héeetero? Então me toquei que só sou safada [I'm just slutty]. Cadê a minha parada? E o orgulho de ser vadia [slut pride]?
Diferente de Young, que, querendo afirmar seu gosto sexual acaba por justificar a violência de gênero, Cho afirma as mulheres como sexualmente ativas de uma maneira totalmente subversora, sobretudo por desafiar não somente a heteronormatividade como também o paradigma que divide a sexualidade feminina (e, por que não, humana) entre hétero e homossexual.

Interessante também o fato do show ser de 2000, ou seja, Cho antecipa a existência de uma marcha das vadias (em inglês, chamada Slut Walk) em mais de uma década, ainda que a Marcha das Vadias tenha reivindicações para além da liberdade sexual feminina, envolvendo questões como violência e ocupação do espaço público. Taí, então, um bom exemplo de humor inteligente, subversivo e pioneiro.

O humor que goza do carrasco, ou seja, desafiador do status quo e do senso comum preconceituoso é claramente mais complexo, exige mais esforço e sutileza. Existem também as piadas auto-depreciativas e sardônicas, que, quando feitas de maneira inteligente podem ser interessantes, mas a linha entre o reforço da opressão e o rir de si mesmo de maneira saudável é bastante tênue, ainda mais quando o assunto são minorias.

O humor que ri da vítima, como O Riso dos Outros defende, é o humor que gera o riso fácil porque reflete preconceitos e estereótipos já consolidados. É o humor que vomita de volta para a sociedade o que ela tem de pior. E, apesar dos comediantes toscos se sentirem lesados na sua liberdade de expressão (como se esse fosse um direito só deles), o nível de tolerância com esse tipo de humor é grande numa sociedade em que a educação ainda é largamente acrítica (ou simplesmente de má qualidade) e a grande mídia emburrece.

Como pode atestar qualquer mulher que tenha um mínimo de consciência e já tenha sido encoxada num ônibus, a piada da Young não é inofensiva. Ao naturalizar esse tipo de comportamento dizendo que isso é normal (pior, que é o que as mulheres querem), Young está participando na legitimação desse tipo de violência. Legitimando de maneira particularmente contundente e nociva porque, como mulher, ela supostamente teria maior autoridade para dizer "o que as mulheres querem".

Em resumo: uma piada nunca é inofensiva e sempre se está escolhendo um lado. A diferença entre o carrasco que ri da vítima e a vítima que faz piada sobre a própria condição é que, no segundo caso, o humor, além de perverso, é masoquista.

5 comentários:

  1. muito bom, Rô! já tinha visto esse vídeo da Young e é patético - esse povo do humor não percebe, mesmo, quando não é engraçado? e aquela moça do documentário O riso dos outros que faz piada de gordo e NINGUÉM ri. ela não percebe, mesmo, o silêncio da plateia?

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  2. Pois é, e n'O riso dos outros tem aquela hora que uns comediantes toscos dizem "enquanto o povo estiver rindo, não me calarei" ou algo do tipo, num tom todo heróico. O problema é que o ego às vezes cega e ensurdece e nem param pra ver se o povo está rindo mesmo. E se está, nem se questionam o por quê.

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  3. Excelente texto, Rô.
    Esse é um tema q sempre discuto com meus amigos...e quase sempre sou incompreendida.
    E sobre a Young....bah... já não curtia essa "persona"; agora, menos ainda.

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  4. Obrigada, Fer! Simpatizo completamente: quando o assunto é feminismo, incompreensão é um lugar comum, infelizmente.

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