Ainda estamos na Idade Média?

por Barbara Falleiros

Quando respondo a perguntas sobre o que faço da vida, às vezes me deparo com interlocutores perplexos. Muitos não entendem o porquê de se estudar "personagens obscuros de um período obscuro", tão distantes do "extraordinário estágio civilizacional para o qual evoluímos"! Afinal, que interesse pode haver em uma época de príncipes e castelos, rivalidades e traições, para além daquilo que serve à fantasia de um Game of Thrones e afins? Vejo-me no papel de meus antigos professores de História, repetindo a adolescentes insolentes que a compreensão do passado serve para entendermos o presente. E às vezes você descobre que quinhentos, seiscentos anos te separam... do mesmo lugar!

Christine de Pizan no seu "escritório"
Há uma década, descobri uma mulher impressionante. Italiana de origem mas educada na corte francesa, filha de um médico do rei, Christine de Pizan (1364-1430) teria vivido uma existência tranquila, uma existência anônima de mãe e esposa como tantas outras se, como ela conta, sua vida não tivesse sido influenciada por duas forças poderosas, "Natureza" e "Fortuna" (ou seja, o destino).  A primeira conferiu-lhe grande curiosidade intelectual, a segunda deixou-a viúva aos 25 anos de idade, com três filhos pequenos. E o que faz uma jovem viúva com dificuldades financeiras no final da Idade Média? Casa-se novamente, certo? Errado! Ela se torna a primeira escritora profissional da história da literatura francesa.

O caminho que Christine escolheu não era, decididamente, o que a sociedade esperava dela. É verdade que, enquanto mulher e escritora, ela representava uma "novidade" que foi em parte responsável pela fama que adquiriu ainda em vida. Por outro lado, os homens intelectuais não a consideravam como uma igual, longe disso, e ela teve que lutar duramente pelo seu espaço no campo literário. Christine tinha total consciência da posição de inferioridade ocupada pelas mulheres e um dos seus maiores combates foi contra a concepção misógina de uma natureza feminina "deficitária", isto é, contra a visão das mulheres como seres moralmente e intelectualmente inferiores (valeu, Aristóteles!). Era preciso distinguir o natural do cultural, como ela afirma no Livro da cidade das damas (1405) a respeito da educação feminina: 

Eu reafirmo, e não duvides do contrário, que se fosse costume mandar as meninas à escola e se lá aprendessem as ciências, como fazem com os meninos, elas aprenderiam tão perfeitamente e compreenderiam tão bem quanto eles as sutilezas de todas as artes e ciências. [...] Sabes por que elas sabem menos? Porque não vivenciam coisas diferentes, porque basta que permaneçam em suas casas, às voltas com suas ocupações domésticas. Porém, não há nada mais estimulante para uma criatura dotada de inteligência do que experiências diversas e abundantes.

No Livro da visão de Cristine (1405), que contém inúmeras passagens autobiográficas, ela retoma a questão a partir de sua própria experiência. Ela se imagina dialogando com uma personificação da Filosofia, à qual diz:

Pois embora minha natureza me inclinasse para o saber, as tarefas que normalmente cabem às mulheres casadas, além da obrigação de frequentemente carregar bebês em meu ventre, impediram-me de dedicar-me aos estudos. [...] E o que há de mais belo que o saber? E o que há de mais vergonhoso do que a ignorância de um homem? Assim, certa vez respondi a um homem que criticava meu desejo de saber: ele dizia que não cabia a uma mulher ter conhecimento, como existem poucas. Respondi que tampouco cabia a um homem ser ignorante, embora existam muitos!
E eis a resposta de Filosofia:
No que te diz respeito, não há dúvidas de que se teu marido estivesse vivo até hoje, não terias estudado tanto quanto estudaste, impedida pelas ocupações do lar. Assim, não terias apreciado uma das coisas que mais amas no mundo, isto é, o doce sabor do conhecimento.

Vale ressaltar que Christine não era contra o casamento. Ela amou profundamente o marido que seu pai escolhera para ela e admirava-o por sua inteligência. E se ela começou a escrever após sua morte, a poesia serviu-lhe primeiramente como experiência catártica, uma forma de lidar com a solidão e com a tristeza. "Sozinha estou e sozinha quero estar, sozinha deixou-me meu doce amigo, sozinha estou, sem companheiro nem mestre", disse em seu poema mais famoso.


Por volta de 1401-1402, Christine se envolveu em uma briga literária com homens intelectuais do seu tempo a propósito de uma obra extremamente famosa, o best seller de então, chamada Romance da Rosa. O livro conta a história da tomada de um castelo seguida da "colheita de uma rosa" pelo Amante apaixonado, em outras palavras, a história da conquista e da defloração de uma jovem dama. Para Christine, um escritor tinha que arcar com sua responsabilidade moral e não podia escrever absurdos misóginos e obscenos usando a desculpa de que tinham sido ditos por suas personagens. A discussão toda era sobre a função da literatura, o que não cabe desenvolver aqui, mas é muito interessante reparar nos argumentos usados pelos "inimigos" de Christine para desmerecê-la no debate. Para um deles, tudo o que ela era dizia era ditado por terceiros. Afinal, que mulher seria capaz de pensar e tirar suas próprias conclusões? Ela era só o "guarda-chuva" (é a palavra que ele usa, ou "capa de chuva") colocado na linha de frente do debate e atrás do qual se escondiam homens covardes que lhe assopravam os argumentos... Resumindo, queria dizer: não foi você quem disse e eu não discuto com mulher.

Sábios e o temor da audácia feminina:
Aristóteles seduzido e humilhado pela cortesã Fílis
Após lançada a carta da incapacidade intelectual, eis que emergia o velho e bom julgamento baseado na moral e na sexualidade feminina. Ora, ao ousar atacar o grande mestre autor do Romance da Rosa, Christine agia como Leontina, uma prostituta grega que criticara o filósofo Teofrasto. Ou seja, no debate, Christine é literalmente chamada de puta!

Não é curioso que nós, seiscentos anos depois, escutemos o mesmo tipo de discurso, o mesmo tipo de argumento e o mesmo tipo de insulto? Não é curioso que nós, mulheres, ainda estejamos tentando conciliar casa, filhos e trabalho, sobrecarregadas por tarefas domésticas que muitas vezes nos impedem de seguir vocações? Que embora as mulheres sejam hoje a maioria na Universidade (enquanto estudantes, mas não necessariamente enquanto docentes...), ainda existam áreas nas quais elas são vistas como "incapazes" e "incompetentes", só por serem mulheres? Que em suas tentativas de emancipação a mulher seja invariavelmente tratada como piranha e vagabunda?

Em uma de suas cartas escritas durante essa querela literária, Christine tentou convencer seus interlocutores de que as mulheres não eram monstros de outra espécie, que precisavam ser combatidos e domados, que elas eram seres humanos como eles:

Penso sem dúvida que, se tu fosses bem informado, já não trarias [ao debate] aquele Ovídio da Arte de amar como argumento para desculpar teu mestre [o autor do Romance da Rosa]. [...] Ó livro mal intitulado Arte de amar! Pois de amor é que não é! Mas sim de falsa arte e maliciosa habilidade de enganar mulheres, é como deveria ser chamado. Que bela doutrina! É então um grande feito iludir essas mulheres? Quem são as mulheres? São elas serpentes, leões, dragões, víboras, animais vorazes devorantes e inimigas da natureza humana, que devem ser trapaceadas e capturadas por meio de artimanhas? Se assim pensais, homens, lede então a Arte: aprendei os artifícios! Agarrai bem as mulheres! Enganai-as! Insultai-as! Invadi o castelo! Cuidai, homens, para que nenhuma vos escape, e que tudo ceda ao opróbio! Por Deus, não são elas vossas mães, vossas irmãs, vossas filhas, vossas esposas e vossas amigas? Elas são vós mesmos e vós mesmos sois elas.

Feminismo: há mais de seis séculos, a ideia radical de que as mulheres são gente...


6 comentários:

  1. Então, pra você ver, séculos de luta, um mundo inteiro que mudou radicalmente, mas basta os ~homens~ chamarem as mulheres de ~putas~ para voltarmos para a idade média(?)... Sério que você realmente acha que esse discurso faz você descobrir que "quinhentos, seiscentos anos te separam... do mesmo lugar?" Que um grupo de homens que chama as mulheres de putas tem o poder de definir o lugar das mulheres? Quando, mas quando, o feminismo vai parar de orbitar aquilo que machistas e misóginos pensam e fazem? Por que não é possível que não se perceba que o que esse discurso faz é exatamente o contrário do que ele acha que se propõe a fazer, a saber: dar mais poder ao discurso machista e congelar as mulheres na posição de vítima. Liv

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    1. A Barbara pode responder melhor, mas não vejo o texto como um apagamento da luta feminista desde então. Acho que ele vai contra um outro tipo de apagamento, o de que já estamos muito evoluídos e "o feminismo não é mais necessário" porque "machismo é coisa do passado".

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    2. O « estamos na Idade Média » era uma firula retórica. As pessoas costumam evocar o « período medieval » quando querem falar de algo ruim, ultrapassado, que deveria acabar. Foi nesse sentido que tentei mostrar o machismo dos nossos dias como sendo « medieval » (embora venha de mais longe ainda no tempo). Seiscentos anos nos separam do mesmo lugar não em negação às lutas e conquistas, mas em relação à permanência – apesar das lutas e conquistas – de um velho discurso que permanece arraigado quando deveria ser considerado obsoleto. Na minha opinião, constatar a continuidade histórica de discursos misóginos não ajuda a valorizá-los, ao contrário, é necessário compreender de onde eles vêm para combatê-los. Foi o que fez a própria Christine de Pizan no seu livro A Cidade das damas, retraçando todos os argumentos que seus contemporâneos tinham herdado da Antiguidade, a fim de desconstruí-los. Seu exemplo é, aliás, totalmente contrário à lógica de vitimização : ela se transforma em escritora ao se contrapor e ao afirmar sua identidade feminina. Meu textinho, ao apresentá-la como um exemplo de luta « protofeminista », segue na mesma linha.

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  2. Adorei o texto, Ba. Lembrei de um conto da Virgia Wolf chamado The Society. Vc deve conhecer, mas se nao conhece, vale demais a leitura. Beijo.

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    1. Valeu pela dica, Má! Acabei de ler e achei este trecho traduzido em português:

      "Sempre achei que o dever de uma mulher era passar sua juventude tendo filhos. Eu venerava minha mãe, que teve dez; e mais ainda minha avó, que teve quinze; minha própria ambição, confesso, era ter vinte. Passamos por todas essas épocas supondo que os homens fossem igualmente industriosos e que suas obras eram de igual mérito. Enquanto criávamos filhos, eles, supúnhamos, criavam livros e quadros. Povoamos o mundo. E eles o civilizaram. Mas agora que nós sabemos ler, o que nos impede de julgar os resultados? Antes de trazermos outra criança ao mundo, temos de nos jurar que vamos descobrir como o mundo é."

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