7

Assédio e transporte coletivo: quais soluções?

por Barbara Falleiros

Quando, no início do mês, assistimos a mais uma grande tragédia envolvendo um ciclista em São Paulo, voltei a pensar nas dificuldades de circulação nos centros urbanos. Em São Paulo, a situação é tão caótica que até o ex-papável "não foi desta vez", dom Odilo, chegou a fazer piada: "Eu espero que o caminho do céu seja ainda mais congestionado que o de São Paulo". Nessa ditadura do automóvel e do desrespeito ao transporte coletivo e/ou sustentável, o caminho do céu acabará enfrentando um congestionamento de bicicletas...

Estação da Sé, em São Paulo, no horário de pico
No Brasil, onde não há transporte público digno deste nome - como mostra bem a imagem acima -, tem-se a impressão de que a posse de um carro garante a liberdade. Mas o irônico é que esta é uma liberdade de confinamento, liberdade de ficar parado, engarrafado, com as janelas fechadas, com medo dos que estão do lado de fora...

Para as mulheres, como sabemos, a questão é ainda mais problemática pois o espaço público, reino masculino, é hostil à sua presença. Eu já falei do assédio de rua e dos perigos que rondam a mulher que "anda sozinha", a Roberta também discutiu o assunto colocando em evidência os padrões duplos. No site das Pedalinas, o Coletivo Feminino de Ciclistas de São Paulo, há discussões sobre tipo de assédio sofrido pelas mulheres ciclistas. Lá encontramos, por exemplo, este depoimento:

Já imaginou estar subindo uma avenida (a Sumaré, no caso), em pleno domingo, feliz e contente por ter poucos carros na rua, e perceber que um carro reduz a velocidade e sentir uma palmada bem dada na bunda, seguida de um “vaaaaai coisa gostooooosa” e várias risadas de um bando de playboys? Nunca imaginou? Nem eu. Mas isso aconteceu comigo, e o carro preto de placa 2416 e a cara do mauricinho orgulhoso de seu ato machão-ogro olhando e rindo de mim no retrovisor, eu nunca vou esquecer.

A vítima do assédio e autora do post sugere um exercício interessante: fazer uma busca no Google Imagens por "mulheres bicicleta". O resultado não é muito difícil de imaginar: nos deparamos com imagens de mulheres sexualmente objetificadas, claro, com bundas, peitos, biquínis, e até mesmo uma boneca inflável... Vale uma comparação com a busca por "homens bicicleta"...



Parece bobo dizer, mas todos os entraves à circulação feminina são impedimentos à sua liberdade, no sentido mais concreto do termo. As mulheres que andam de ônibus e de metrô, como as pedestres e ciclistas, estão sujeitas a serem abordadas, constrangidas, tocadas, maculadas (literal e figuradamente). Como lembrou recentemente a Lola Aronovich, no ano passado foram denunciados sites que continham vídeos de cretinos, autointitulados "tarados do busão", que se masturbavam nos transportes lotados e ejaculavam sobre as mulheres.

Campanha lançada em 2008 em Rosario, Argentina
Seria justo termos, então, meios de locomoção dedicados exclusivamente ao sexo feminino? Muitos responderão que não. Responderão que esse tipo de medida apenas reforça a discriminação sexual. Entre esses estarão provavelmente aqueles que criticam as cotas raciais e leis como a da Maria da Penha. É que, às vezes, a divergência de opiniões parte de duas concepções distintas de igualdade: de um lado, a que entende que igualdade é oferecer o mesmo a todos independentemente do ponto de partida; de outro lado, aquela que visa a que todos alcancem um mesmo ponto de chegada.

Para o bem ou para o mal - ver a crítica no final deste post - inúmeras iniciativas de transporte feminino têm surgido em todo o mundo, dentre elas, os "táxis rosa" (sim, a associação imediata da cor rosa ao sexo feminino é questionável): o sistema surgiu em Londres em 2006 com o Pink Ladies Cab, sistema pré-pago para clientes registradas, funcionando nas noites de sexta e sábado e com veículos conduzidos por mulheres ; o serviço de táxi por mulheres e para mulheres foi exportado para Moscou, Beirute, Hebrom na Cisjordânia, Bombaim e Nova Deli, Paris, Joanesburgo, Puebla e Cidade do México, Medéllin na Colômbia, Tóquio etc.

Táxi rosa de Puebla
Em algumas das cidades citadas, e em outras cidades brasileiras como Rio de Janeiro e Brasília (lei votada há pouco, em 2012 se não me engano, não sei se implementada), foram colocados em circulação vagões de metrô e de trem suburbano exclusivos para mulheres, normalmente em horário de pico. No Rio, pelo que li, a exclusividade não costuma ser respeitada pelos passageiros. Em São Paulo, a medida fora colocada em prática em 1995, houve uma tentativa de ressuscitá-la em 2005, mas recentemente o Metrô paulistano descartou a possibilidade de criação de vagões femininos por estes "infringirem o direito de igualdade entre gêneros à mobilidade livre". O problema é que a mulher não tem "mobilidade livre": vale lembrar que uma mulher a cada três dias registra queixa por abusos ocorridos dentro do metrô paulistano. Em 2012 na cidade de Campinas, no interior de São Paulo, uma comerciante lançou um abaixo-assinado pela criação de uma linha de ônibus exclusiva para mulheres, na tentativa de diminuir o assédio.

Vagões para mulheres na Índia

Isso só para citar alguns projetos contra um problema mundial, generalizado e recorrente.

Iniciativas como as citadas são respaldadas pela ONU em seus planos de combate à violência contra mulheres e meninas, hoje fortemente ligados a uma grande campanha, ONU-Habitat, pela melhoria dos estabelecimentos humanos e pela urbanização sustentável. Essas ações, que procuram ser ao mesmo tempo afirmativas e preventivas, tem como objetivo possibilitar às mulheres que se locomovam com segurança e sem medo.

Um sistema de transporte público seguro para mulheres é importante porque lhes permite circular livremente pela cidade, sem medo. Por falta de medidas de segurança eficazes, as mulheres são obrigadas a adotar diferentes comportamentos defensivos como, por exemplo, usar roupas "apropriadas" nos transportes públicos, viajar em grupos, subir apenas em vagões de metrô e ônibus que não estão lotados, ignorar o assédio verbal e sexual, gritar para pedir ajuda, carregar na roupa agulhas e alfinetes como armas de defesa, manter-se contra uma janela ou no fundo do veículo, evitar pegar táxis sozinha e abster-se de viajar em veículos ocupados apenas por homens (Kunieda e Gauthier, 2003, 14). Estas medidas defensivas são um pesado fardo adicional para as mulheres e as privam de seu direito de livre acesso à cidade. (ONU Mulheres)
Além dos vagões exclusivos, a ONU propõe outras estratégias de melhoria do transporte público, levando em conta as especificidades de gênero, como: possibilidade de a mulher pedir para descer do ônibus mais perto do seu destino, de manhã cedo ou à noite; instalação de serviços de prevenção da violência e de atendimento de vítimas nas estações de metrô; calçadas suficientemente iluminadas; instalação de ciclovias; tarifas abordáveis.

Porém, em relação aos vagões para mulheres, há quem critique a medida com argumentos de peso, como a professora e socióloga Bila Sorj. Para ela:
A questão é: por que os homens se sentem tão livres para assediar as mulheres? A medida admite implicitamente que o assédio é um impulso irresistível dos homens (...). E pressupõe que o que se pode fazer, então, é proteger as mulheres com vagões exclusivos.  (...) Esta lei reforça a ideia da fragilidade das mulheres, como se elas fossem seres que não pudessem se defender. Segregar reforça uma série de estereótipos masculinos e femininos que têm colocado a mulher numa condição de subordinação. A solução seria alterar os valores de uma masculinidade que supõe que os homens são livres para assediar as mulheres. Isso passa por políticas públicas, que constituam a conduta como crime moralmente condenável e facilitem às mulheres a denúncia desses casos.

A solução não é simples. Como fazer para que as mulheres circulem de fato com segurança no espaço público? Optar por medidas paliativas, enquanto nos esforçamos para promover uma mudança de mentalidade que faça da mulher o que ela é, uma pessoa, e não mais uma presa a ser caçada? É preciso continuar ocupando o espaço, de alguma forma... Mas que estratégias e soluções contra o assédio é a violência? Deixo este post em aberto. Outras ideias?





0

Sexismo de cada dia

Anônimo

A família do meu marido é de origem alemã, eles são todos assim, usando um termo correto, robustos. Sinceramente, não ligo, como dizem por aí: quem gosta de osso é revista de moda, porque nem cachorro gosta, prefere carne, mas enfim.

A minha sogra tem uma predileção nem um pouco velada pelo meu marido, em detrimento de minha cunhada, irmã mais nova dele. Isso fica muito claro nos comentários sobre a aparência física dos dois.

Olhando para os dois irmãos, os médicos e o senso comum diriam que eles estão ambos acima do peso, embora, como já disse, os acho bem agradáveis aos olhos. Mas quando minha sogra vai comentar ela diz: Meu filho, lindo, tão forte. E para a menina: para de comer, você está gorda!

Sério, eles são do mesmo tamanho! Vai entender...


4

Feliciano saiu... E agora?

por Roberta Gregoli


Feliciano é só a ponta do iceberg

Não, Marco Feliciano ainda não renunciou à Presidência da Comissão de Direitos Humanos (CDHM) da Câmara. Digo 'ainda' porque o cerco está cada vez mais fechado, com manifestações da sociedade civil, artistas, políticos, ONGs e até funcionárixs da Câmara, e parece só questão de tempo até que Feliciano caia. Ênfase no 'parece', pois, onde se nomeia alguém respondendo a um processo por homofobia para presidir uma comissão de direitos humanos, tudo pode acontecer.

A atuação da sociedade civil tem sido exemplar e demonstra vividamente sua capacidade de organização, apesar do que proclamam xs resignadxs em tom blasé. No entanto, apesar da abundância de informações, é raro encontrar uma análise de maior profundidade sobre o tema. A maioria dos textos batem na já conhecida tecla da incongruência do pastor para o cargo - não que isso deva ser tomado levemente, mas o fato é que, ainda que Feliciano caia, os problemas relacionados à CDHM não estarão resolvidos.

Feliciano é sintoma, não causa. E sintoma não somente dos posicionamentos reacionários e retrógrados de uma parcela da população como também do achatamento da discussão. Como temos observado, centralizar o debate num único indivíduo é um poderoso mecanismo de canalização da ação social, mas é também inevitavelmente reducionista.

A Maíra já começou a questionar os diversos fatores envolvidos e eu quero continuar avançando a discussão para além da demonização de uma única figura, que não passa da ponta de um iceberg sobre o qual muito pouco se fala.

Primeiramente, se Feliciano sair, o prospecto imediato está longe de otimista. A Vice-Presidente da Comissão responde a diversos processos no STF bem como todxs xs outrxs possíveis substitxs. E todxs são do Partido Social Cristão (PSC). Líderes religiosos não representam uma ameaça aos direitos humanos necessariamente, como lembrado pelo próprio Marco Feliciano ao se comparar, num delírio de grandeza, a Martir Luther King Jr. O problema é a sobre-representação de um partido, sobretudo de um partido religioso, se o princípio for o da laicidade do Estado. Como explica Domingos Dutra:

O PSC, que tem 17 deputados na Câmara, tem oito deputados na comissão, entre titulares e suplentes. O PT, que tem 90 deputados, tem quatro deputados na comissão. Na hora que a comissão é de um só partido acabou a diversidade, acabou a pluralidade, que são essenciais na vida desta comissão.

E essenciais na vida da democracia. Nesse sentido, o slogan "Feliciano não me representa" é brilhante porque contesta a validade democrática da eleição pro forma que levou Marco Feliciano à Presidência da Comissão.


Veja os dados aqui

Apesar de ter quem diga que a CDHM 'caiu' nas mãos do PSC, ela é uma comissão estratégica para o partido, pois é potencial veículo para mudanças que são difíceis para alguns evangélicos engolir. Além do crescente apoio popular à PEC do casamento igualitário e da recente ampliação dos direitos reprodutivos das mulheres para abranger a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, este mês o Conselho Federal de Medicina, em resolução inédita, apoiou a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. Ainda que caminhemos em direção ao Estado laico com vagar, a bancada evangélica tem lá suas razões para se preocupar.

O que escapa ao sensacionalismo da maioria das notícias sobre o assunto é que os cargos nas comissões da Câmara são concedidos por meio de acordos prévios, ou seja, barganhas políticas. É por isso que existe um fundo de verdade na acusação que Feliciano fez à Veja, dizendo que a renúncia de Domingos Dutra (antecessor do PT na Presidência da CDHM) foi um teatro. Tendo visto o vídeo da renúncia e o histórico de Dutra, é pouco provável que sua comoção tenha sido encenada, mas quando Feliciano declara que "foi um acordo partidário" e "acordo partidário não se quebra nessa Casa", ele tampouco está mentindo.

Se analisarmos xs integrantes da Comissão de Direitos Humanos (a lista está disponível aqui, no site oficial da Câmara, para qualquer umx ver), as vagas ocupadas pelo Pastor Feliciano e pela Vice-Presidente, Antônia Lucélia, não foram originalmente destinadas ao PSC, e sim ao PMDB.

É preciso que isso seja enfatizado, até mesmo para cobrar do PMDB a responsabilidade que lhe cabe e exigir prestação de contas: Por que o PMDB abriu mão dessas vagas? Afinal, não fosse essa jogada inicial, não haveria polêmica para início de conversa.

Outro nome que salta aos olhos na lista dos membros da Comissão é o de Jair Bolsonaro, suplente de uma vaga em aberto (se é que isso faz sentido). Então fica claro que o buraco é muito mais embaixo: não só temos um Presidente que é acusado de discurso de ódio contra minorias, mas também um membro que é abertamente a favor do uso de tortura. Uma comissão de direitos humanos composta por homofóbicos, misóginos, racistas e torturadores é muito mais que ironia, é circo tragicômico.

Uma segunda pergunta pertinente é com relação ao PT, que, afinal, estava ocupando a Presidência da CDHM e tem outras iniciativas, como a Comissão da Verdade, intimamente ligadas à questão dos direitos humanos: Por que aceitar a barganha de cargo?

Domingos Dutra responde:

[N]a bancada do PT, o líder escolheu outras comissões que na avaliação do partido, eram mais importantes que a de Direitos Humanos. O PT não quis esta Comissão, o que foi um erro. E as consequências estão aí. Por outro lado, a liderança do PMDB também agiu. O deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi o grande arquiteto desse resultado 

A renúncia de Domingos Dutra, então, pode ser vista como um ato de repúdio não somente à nomeação de Feliciano e ao fato da votação ter se dado de portas fechadas, mas também ao acordo partidário que desencadeou esse desfecho. Dutra, aliás, está migrando para a Rede de Marina Silva, justamente por não concordar com as alianças do PT no Maranhão.

Com base nessa sucessão de equívocos que resultou no circo que agora vemos, a articulação da sociedade civil tem que se focar numa demanda mais ampla, pela total reformulação da Comissão. A exigência tem que ser a de uma nova composição, excluindo totalmente figuras com histórico contrário à dignidade da pessoa humana, como Feliciano e Bolsonaro, e atentando para a proporcionalidade partidária e de interesses, de maneira que exista representatividade de fato. Aí sim, poderemos chamá-la de democrática. 

O poder da sociedade civil está comprovado, mas, para garantir que essa incrível série de manifestações não passe de um modismo passageiro e infecundo, é preciso levar em conta o panorama no qual a CDHM está inserida. Somente a partir de um debate mais profundo será possível engendrar mudanças de real impacto, para que os direitos humanos sejam tratados com a seriedade que merecem, num país que claramente ainda não superou sua recente história de autoritarismo e violência - história da qual a atual Comissão de Direitos Humanos é reprodução e reprodutora.


Agradecimentos à Priscilla Santos pelo debate animado que resultou em importantes contribuições para este texto.


0

Ainda em tempo de Franciscos e Felicianos

por Tággidi Ribeiro

Vale a pena ler o texto abaixo. É a resposta de Matt Dillahunt, do Atheist Experience, a uma de suas espectadoras cristãs. Todos sabem que sou ateia, mas definitivamente não importa se deus (ou deuses) existe(m) ou não. Provar isso não é uma bandeira minha. O que nos incomoda a todos, inclusive a muitos dos que creem em um deus, é a sanha totalitária de muitas religiões, que tentam nos coagir a viver sob seus dogmas. Em tempos de Franciscos e Felicianos, que reservam à mulher o mesmo espaço já conhecido da casa, o mesmo lugar já conhecido - abaixo do homem, em todas as instâncias da vida; que num mundo de 7 BILHÕES de pessoas insuflam o ódio aos homossexuais dizendo que por causa deles a humanidade corre perigo; que tentam resgatar antigos preconceitos contra negros, precisamos nos posicionar incansavelmente pelo direito à dissidência. Por que não poderíamos nos haver com deus depois? Não nos foi reservado o livre arbítrio? Enfim, espero que a fala abaixo os faça refletir sobre a minha e sobre a sua liberdade. O vídeo está no final do post. E aqui tem também o ótimo post da Mazu sobre o (in)Feliciano.

"O que ela (espectadora) escreveu foi: 'Eu não quero viver em um mundo onde os poderosos impõem suas más intenções às massas e não encaram nenhum tipo de consequência. Sem Deus, os homens escapam muito facilmente da justiça humana. Eu não engulo com isso.' Ela também abordou a pedofilia, pelo que percebi, porque alguém falou sobre padres pedófilos para ela. 'Então, você sabe, pedofilia é imoral mas há pedófilos que escapam da justiça humana e portanto é bom saber que a justiça de Deus vai eventualmente pegá-los.' Essa é a base do porquê ela acredita, então aqui está a minha resposta: O mundo onde você quer viver não tem base no mundo onde você de fato vive. Se essa é sua principal objeção às visões de mundo que não incluem justiça cósmica, me perdoe o comentário condescendente, você realmente não entende do que você está falando. A vida não é justa e o desejo de justiça que você expressa é um pensamento-chave da maior parte das religiões.

Todos sabemos que o bem muitas vezes não é premiado e o mal segue impune, então os que esperam justiça criaram uma saída para não se atolar em depressão e evitar encarar a aspereza de uma realidade indiferente. Seja céu e inferno, ou Karma ditando infinitas reencarnações, todas as religiões servem ao mesmo propósito. Alguns de nós preferem encarar a realidade, alguns de nós percebem que não há uma boa razão para crer que o universo não seja nada senão indiferente à nossa existência e aos nossos conceitos de bem e mal. Algumas pessoas percebem que lidar com a realidade em termos 'reais' é a única forma de 'realmente' melhorar a situação.

A vida não é justa. E é de fato reconfortante pensar sobre isso. Se a vida fosse justa, isso seria dizer que você é merecedor das coisas ruins que acontecem com você. E aqueles que se beneficiam de más ações seriam iguais merecedores. Perceber que não há razão para esperar justiça é o que assegura fazer coisas que imponham justiça. Perceber que o bem não é sempre recompensado é o que nos guia a premiar o bem quando o vemos. Perceber que o mal não é sempre punido é o que nos guia a trabalhar juntos como sociedade cooperativa, lidando com nossos problemas coletiva mas também individualmente, de uma forma que encoraje mudanças reais e que, esperamos, minimize ações prejudiciais. Perceber que a justiça não é garantida nos permite apreciar quando ela se realiza e assegurar que se realize em uma base regular. Sua visão particular do conceito de 'deus de justiça' representa o máximo da irresponsabilidade e da injustiça.

A religião que você escolheu nos considera pecadores ao nascer, culpados antes de dar o primeiro suspiro, responsável por coisas que nunca fizemos. Essa religião oferece perdão instantâneo e não merecido para os crimes mais horríveis e pune com pena eterna pessoas cujo único crime é a descrença. 
Somos todos humanos.
Essa religião defende a escravidão, deprecia mulheres, amaldiçoa homossexuais, ordena o apedrejamento de crianças desobedientes, sanciona guerras e extermínios, desculpa sacrifício humano e envenena toda mente que toca. Ela inclui somente um crime imperdoável: não crer. Isso é justo? A 'justiça' que você admira não é justiça, é decreto divino, é arbitrária, caprichosa e, no fim das contas, injusta e imoral.

Sim, eu sei que há pedófilos por aí que escaparam de nossa justiça falha. Você percebe que o seu sistema diz que todos eles são elegíveis a um paraíso eterno? Como isso redireciona sua objeção? Sob as leis do cristianismo, o pedófilo que escapou da justiça aqui pode também escapar da justiça definitiva. Sob as leis do cristianismo, ele talvez viva eternamente no paraíso, enquanto alguém que passou a vida toda fazendo o bem, ajudando os outros e contribuindo de maneira positiva, na única vida que temos certeza que teremos, no final é julgado indigno desse prêmio. Não se engane: você não aceitou um senso cósmico de justiça que alivia o problema. Você aceitou um que alivia o problema para você. É uma justificativa egoísta que não demonstra preocupação com questões de justiça. É o pico da arrogância e do seu desejo de se sentir especial porque 'alguém lá em cima' acha que você é especial.

De acordo com o paradigma que você defende, 'ele' acha que qualquer um que o adore é especial, sem preocupação com justiça ou caráter. Vá, leia Romanos. Ninguém fala desse ponto mais claramente que Paulo. A Lei foi estabelecida com pleno conhecimento de que ninguém seria apto a cumpri-la. Ela foi estabelecida para demonstrar essa incapacidade e nos trazer a danação depois. E então se estabeleceu um  escape para que algumas passassem, independentemente de suas posturas em relação a essa Lei. Sua religião a fez escrava. Fez com que não se preocupasse. Fez você apoiar a imoralidade e a injustiça, enquanto afirma que decretos arbitrários e escapes contam igualmente. É uma mentira repreensível, que a envenena e a impede de entender a realidade. Quando as grades caírem dos seus olhos como aconteceu com muitos de nós, estaremos aqui e você vai perceber que não está sozinha. E não tem culpa."

O que eu espero, do fundo do coração, é que, com deus ou sem deus, as pessoas se guiem por aquilo que abarca a todos: nossa condição humana e viva, igual em importância desde nosso primeiro até nosso último suspiro. Espero que deixemos de justificar, por deuses ou partidos, atrocidades - como fizemos tantas vezes ao longo do século XX, ao longo da história, e continuamos a fazer. 


2

Falar pelo outro ou praticar a escuta do outro?

 Por Thaís Bueno


Movimento de ativistas afegãs pelos direitos das mulheres

Visitando alguns blogs que gosto de acompanhar, topei com um post de uma ativista pelos direitos das mulheres, nascida no Afeganistão, chamada Noorjahan Akbar. Não conhecia nada sobre ela, nem sobre o trabalho que ela realiza. Comecei a ler o post, sem esperar muito, e, no final, estava encantada com as palavras que ela trazia e com a forma como ela descreve sua cultura. 

Nos dias de hoje, em que discussões sobre injustiça política e social, identidade e cultura estão pipocando a todo momento, é importante ter em mente que, independentemente de sua postura política e das suas concepções ideológicas, é preciso ter muito cuidado ao se tentar falar pelo outro e defendê-lo. Há por aí uma série de discursos protecionistas/paternalistas que supostamente defendem os grupos minoritarizados como se fossem pobres coitados, que não têm capacidade de falar por si mesmos. E também já houve, por muito tempo, uma infinidade de discursos, seja na mídia, nos círculos acadêmicos ou nos grupos de agência política, que buscam "falar pelo outro", ou "dar voz ao outro"

Foi por essa razão que eu quis traduzir este post para o português e trazê-lo para este blog. Ler o texto de Akbar é lembrar que o outro tem voz própria, e que talvez ele prefira falar por si. É lembrar que, na verdade, por termos nosso próprio lugar, nossa história e nossa cultura, não podemos falar pelo outro. Podemos, no máximo, escutá-lo e ajudá-lo a ser ouvido. Ou lido.

Noorjahan Akbar

Onde foi que aprendi sobre liberdade 

Por Noorjahan Akbar – Ativista pelos direitos das mulheres afegãs, cofundadora da organização Young Women for Change, autora do UN Dispatch e correspondente afegã para o A Safe World for Women.

A maior parte do meu trabalho e dos meus textos está focada nas atrocidades e injustiças cometidas contra mulheres no Afeganistão, mas, neste blog, eu gostaria de discutir sobre outro tipo de injustiça. 

Recentemente, uma jornalista estadunidense me enviou uma versão preliminar de seu artigo sobre meu trabalho, para edição. Em um parágrafo ao longo do texto, ela afirmava que eu tinha tido a rara oportunidade de receber uma educação e uma formação escolar nos Estados Unidos da América, e que essa experiência de liberdade me garantiu a possibilidade de nunca sofrer injustiças novamente. Nessa frase, eu notei várias concepções que ela fazia da minha pessoa e de minha cultura, e o contraste em relação à cultura dos Estados Unidos, algo que se reflete muito na literatura produzida neste campo. 

Muitos dos textos sobre ativistas afegãs que lutam pelos direitos das mulheres se baseiam na concepção de que nós, mulheres afegãs, aprendemos sobre liberdade e igualdade quando vamos para países que não são nossas pátrias e nossas culturas, e no meu caso particular, acredita-se que o fato de eu ter estudado nos Estados Unidos me trouxe um gostinho de liberdade e me levou a lutar contra a injustiça. Acredita-se na ideia de que eu era uma oprimida e, consequentemente, mera vítima no Afeganistão, e que, se não fosse pelo tempo que passei nos Estados Unidos, eu não teria me transformado em uma ativista pelos direitos das mulheres. 

Esse monopólio dos valores universais tem muitas consequências negativas. Ele contribui para uma visão binária do mundo, em que metade das pessoas é “progressista” e “civilizada” e o restante, desprovido dessas características e desses valores. Além disso, esse tipo de literatura ajuda a construir o discurso usado para deslegitimar as ativistas afegãs como mulheres “ocidentalizadas”. A ideia de que eu ou outras ativistas aprendemos sobre a liberdade nos Estados Unidos se torna, assim, uma faca de dois gumes usada para nos rotular, tanto aqui no Ocidente quanto em nossos países. A ideia de que liberdade ou liberação são conceitos unicamente estadunidenses, ou ocidentais, e de que, consequentemente, nós aprendemos sobre liberdade na América (já que nossas culturas somente nos oprimem e não há possibilidade de liberação em nossa terra natal) é absurda. 

Eu não aprendi sobre liberdade na América. 

Eu aprendi sobre liberdade com meus pais. Quando eu tinha seis anos, eles decidiram que não queriam viver sob o regime do Talibã e queriam educar suas filhas livremente. Eles abandonaram toda a vida que haviam construído, tudo o que haviam feito durante suas vidas, para serem livres. 

Eu aprendi sobre liberdade com minha tia. Quando estava com quarenta anos, ela decidiu aprender sozinha a ler e escrever, para ser mais independente. Ela permitiu que sua única filha viajasse milhares de quilômetros para que pudesse ter uma formação escolar e ser livre. 

Eu aprendi sobre liberdade com as mulheres do meu país, que cantam sobre ser livre em dúzias de idiomas e dialetos, e que contam às suas filhas histórias de liberdade. 

Eu aprendi sobre liberdade com prisioneiras políticas afegãs, jornalistas e escritoras, que preferem a prisão ao silêncio e à opressão. 

Eu aprendi sobre liberdade com um soldado do Exército Nacional Afegão, que conheci no ano passado. O nome dele é Nadeem e ele arrisca sua vida todos os dias, não por causa dos 150 dólares que ele recebe como salário, mas para libertar seu país do radicalismo. 

Eu aprendi sobre liberdade com a poesia de Rabia Balkhi, uma princesa que conseguiu abalar a divisão de classes e a discriminação sexual ao se atrever a amar um escravo, e que foi assassinada por querer ser livre para amar quem ela escolhesse. 

Eu aprendi sobre liberdade com Merman Parwin, que rompeu com tradições opressivas ao se tornar a primeira mulher a cantar em uma rádio afegã. 

Eu aprendi sobre liberdade com Batool Muradi, que foi acusada de adultério por seu marido, o que pode ter sérias consequências, mas decidiu não ficar calada.

Não. Eu não aprendi sobre liberdade na América. A ânsia por liberdade não é algo ocidental, e a concepção de liberação não é algo inventado no Ocidente, não é algo que eu só poderia conhecer nos Estados Unidos. A liberdade está no meu sangue, e no sangue de milhões de mulheres e homens que nunca estiveram nos Estados Unidos, mas que sabem que, sendo seres humanos, merecem ter o direito de respirar o ar puro e ter opiniões, sem medo de serem condenados por isso. Sendo um país cujos fundadores eram senhores de escravos, um país com séculos de escravidão e segregação, mentalidade colonial e imperialista, além de altos números de negros em suas prisões, os Estados Unidos não poderiam ser minha inspiração para lutar por liberdade. 

Young Women for Change, organização criada por Noorjahan Akbar e Anita Haidary em prol dos direitos das mulheres afegãs


As mulheres do Young Women for Change

0

Diamantes são eternos... desde 1938

por Barbara Falleiros

[Vai aí um post no puro estilo "classe média sofre" ou "first world problems". Mas não me levem a mal por falar de noivado, jóias e relacionamentos. Se o assunto é aparentemente banal e burguês, suas implicações são alarmantes, como tentarei mostrar mais adiante: não só revelam como o sexismo e o consumismo podem ditar nossas vidas sem que percebamos, mas ainda como, bem longe da nossa existência tranquila, uma "declaração de amor" pode custar a vida e o sofrimento de milhares de seres humanos.]

"O diamante é um símbolo universal do amor. Tendo carregado inúmeros simbolismos, encarnou através dos séculos o amor romântico, emergindo hoje como seu mais poderoso mensageiro. (...) Hoje, mais do que nunca, o anel de noivado é a expressão mais poderosa do amor eterno e verdadeiro, um elemento essencial do ritual de casamento em todo o mundo." (História dos anéis de noivado, por De Beers)

Ser romântica e feminista não é das tarefas mais fáceis. Isto é, quando você se deixa levar pelo que dizem ser o romantismo. Infelizmente, de um modo geral, é mais cômodo e reconfortante ter verdades nas quais acreditar sem passar pelo esforço da reflexão... Foi assim que meu lado sentimental, flertando timidamente com a simbologia do amor indestrutível, engoliu como um ganso à foie gras o que a De Beers afirmou ser o emblema do amor para sempre. Por sorte, a minha outra metade, à qual um teimoso pragmatismo e perpétua desconfiança garantem a habilidade de detectar as inconsistências de um discurso, soube mais uma vez provar seu ponto e ganhar a discussão. Droga! 

Pois bem, em resposta a uma conversa de ontem à noite sobre casamento, alianças e frescuras, minha metade enviou-me hoje cedo um email com o seguinte título: "Diamonds are bullshit". Sem rodeios. Direto na ferida.

A mulher e o sexo como produtos:
"É claro que há um retorno para o seu
investimento. Nós só não podemos
mostrá-lo aqui."

O texto falava, de um ponto de vista masculino e econômico, do stress financeiro imposto aos jovens adultos, obrigados a investir seu dinheiro (dois meses de salário, segundo a "tradição") em um objeto que perde imediatamente a metade de seu valor logo após a compra (ao contrário da prata e do ouro, considerados investimentos viáveis). Jovens que ainda por cima sofrem uma enorme pressão social por conta do pedido de casamento... O texto explicava então que essa “tradição” dos anéis de noivado era o resultado de uma cuidadosa e eficiente campanha de marketing promovida pela De Beers, a gigante dos diamantes, no final dos anos 30. Seu objetivo: transformar o anel de noivado, até então um presente ocasional, em um símbolo mandatório do amor. Era preciso torná-lo precioso e imprescindível: mesmo a “extrema raridade” dos diamantes foi uma ideia construída pela campanha. Também vieram daí as superstições em torno da compra de um anel usado (símbolo de um amor que não durou).

"A razão pela qual você não sente isso é porque isso não existe. O que você chama de amor foi inventado por caras como eu, para vender meias-calça." (Don Draper, personagem da série Mad Men, sobre publicitários da década de 50)

Dureza. Na verdade, para fazer um resumo grosseiro, o amor romântico, que nós pensamos como algo próprio à natureza humana, construiu-se historicamente a partir dos séculos XII-XIII, na continuidade do antifeminismo dos Pais da Igreja e da idealização da mulher surgida na literatura do período (como teorizado por exemplo aqui). Mais recentemente, esse conceito de amor foi abocanhado pela publicidade, que percebeu rapidinho que a felicidade vende.

“Nós gostamos de diamantes porque Gerold M. Lauck nos disse para gostarmos”, diz o texto que recebi. Com a Grande Depressão, as vendas da De Beers caíram 75%. Em 1938, ela então encomendou a uma agência publicitária um estudo de marketing focado nos homens: era necessário inculcar nos jovens a ideia de que diamantes eram o símbolo do amor, e que quanto maiores e de maior qualidade, maior era a expressão desse amor. Quanto às mulheres, elas foram encorajadas a ver os diamantes como parte integrante da dinâmica amorosa. Mas Gerold M. Lauck precisava vender o produto tanto para aqueles que podiam comprá-lo, quanto para os que não tinham condições de fazê-lo. Daí a solução estratégica de transformá-los em um símbolo de status.

Ou seja, um símbolo do sucesso pessoal e financeiro da família, da liderança e da realização de um homem provedor, do valor de uma mulher escolhida - dentre tantas outras - por um homem de sucesso, da exibição pública de um status social valorizador para a mulher (o casamento), e mesmo do incentivo à competitividade feminina (“o meu é maior que o seu” como “eu valho mais do que você”, “eu tenho, você não tem” como “eu sou amada, você não é”)...
 

O fato é que o único verdadeiro sucesso envolvido na história foi o de uma manipulação marqueteira que fez com que, hoje, 80% das americanas recebam anéis de diamante ao ficarem noivas. Uma moda cada vez mais presente no Brasil. E na excitação da esperança de felicidade para sempre, acabamos nos esquecendo de que, ao peneirarmos esses símbolos, só o que encontramos de reluzente é o sangue derramado por uma indústria que se construiu na lama. Como mostrado no vídeo abaixo, na década de 1990, a guerra civil em Sierra Leona resultou em dez mil civis propositalmente mutilados, entre outras atrocidades quase indizíveis (estupro coletivo, mutilação de genitais de crianças) cometidas pelos rebeldes da Frente Revolucionária Unida, que escoaram cerca de 10 a 15% dos diamantes do comércio mundial. Isso em Sierra Leona, sem falar de Angola...


Dito isso, continuo com meu romantismo, ou seja, continuo acreditando no amor. Sem esperar do alto da torre que meu príncipe traga sentido à minha existência, mas consciente de que a vida é menos dura e mais prazerosa quando vivida em companhia, e que uma existência compartilhada é a maior das riquezas. Mas a ganância de uma indústria não tem mesmo nada a ver com o amor, e eu agradeço à minha metade pé-no-chão pela grande prova de respeito ao me lembrar disso.

Ressaltando, por fim, que este textinho não está aqui para julgar nenhuma feliz proprietária de um anel de diamantes nem nenhum homem apaixonado tentando mostrar do jeito que pode a sua afeição. Há uma diferença essencial entre julgar as vítimas e contestar as engrenagens. O ponto positivo nisso tudo é a rapidez com que uma “tradição” pode se estabelecer. Ora, não há nada de errado na aliança entre pessoas que se gostam. Por que é que símbolos de comprometimento deveriam ser ditados por uma cultura consumista sangrenta que nos pressiona de todos os lados, uns para se impor, outras para se submeter? Que criemos outros símbolos, mais profundos, igualitários e verdadeiros, e menos frágeis que um diamante.

"Para cada mão pedida em casamento, uma outra é arrancada."


9

Por que as titias feministas implicam tanto com Feliciano e por que você também deve implicar

por Mazu 

        Se todas as potências do homem na visão, na audição, nos recursos imensos do cérebro, nos recursos gustativos, nas mãos, na tactilidade, nos pés, se todas essas potências foram dadas ao homem para educação, para o rendimento no bem, isso é, potências consagradas ao bem e à luz, em nome de Deus. Seria o sexo, em suas várias manifestações, sentenciado às trevas?
- Chico Xavier 


Se você anda pelo Brasil, física ou virtualmente, e se não mora embaixo de uma pedra, tem acompanhado as várias manifestações contra o Pastor Feliciano. Elas estão por todo lado, na rua, na chuva, na fazenda, nas internets ou numa casinha de sapê. Este post vai destoar um pouco das manifestações porque vou defender o Feliciano. Brinks. Impussibru. (Bazinga!)

Bom, já assumi, sou uma pessoa religiosa, já fui mais, mas a culpa não é bem de Deus e, sim, dos que acham que falam em nome dele. É, gente tipo o Feliciano. Já falei sobre minha fé e o feminismo aqui. A Thaís e a Tággidi trataram lindamente de religião e preconceito aqui e aqui. Para a gente não ficar se repetindo, vou tratar só do Parco Feliciano. Isso porque, pelo visto, muita gente parece não entender qual é o problema dos movimentos sociais (feminista, LGBT, dos direitos humanos) com o Impastor. Abaixo, numerei alguns exemplos do que escutei e li nos debates gerados em torno das afirmações do Feliciano:



1) A implicância com o Feliciano é preconceito contra evangélicos e cristãos?

Não. Gostaria de deixar assim bem claro que o problema que temos com o Feliciano não tem relação com a religião dele. O Jean Willis fez uma nota bem legal sobre isso. De minha parte, vou fazer uma brincadeira: eu até tenho amigos evangélicos, logo não sou evangelicofóbica. 

Agora, falando sério, o problema não é a religião, é o uso que ele faz da religião para justificar e legitimar os próprios preconceitos. Existe muita gente religiosa, inclusive evangélica, putíssima com as afirmações babacas dele.



2) A gente não tem direito à opinião? E a liberdade de expressão?

Lógico que tem. E a liberdade de expressão continua incompreendida, a coitadinha. Direito à opinião e à liberdade de expressão é uma garantia nos dada pela nossa maravilhosa, LAICA e nem sempre cumprida Constituição Federal de 1988. Mas, como todas as garantias e as liberdades individuais, a liberdade de opinião não é absoluta, não, bro. Todas as liberdades individuais têm o seguinte limite: o outro. Lindo, né? Me gusta. 

Assim, eu posso ter opinião, você, nós podemos, como cidadãos comuns, civis, ter a nossa opinião, por mais ridícula que ela seja e desde que ela não prejudique outras pessoas. A gente pode fazer tudo o que a lei não proíbe. Agora, um agente público, um agente político, um deputado tem a liberdade muito mais limitada que a nossa. Eles só podem fazer o que a lei permite. Por incrível que pareça. Logo, o deputado Feliciânus não pode sair por aí fazendo e falando qualquer coisa. As ações desses caras têm que estar dentro das leis, de acordo com a nossa amada salve, salve Constituição que não é, pasmem, a bíblia. E a Constituição PROÍBE discriminação religiosa, de manifestação ideológica, cor, raça e, além disso, equipara homens e mulheres em direitos e obrigações. Lá no comecinho já, artigo 5º, ou seja, não está nem no fim, nem oculto ou escondido na CF, está nas primeiras páginas mesmo. São garantias expressas.

Outro problema é que um deputado com essas opiniões fortes e ofensivas é uma ameaça constante aos nossos direitos adquiridos. Um exemplo, o cara acha que o desmantelamento da família como instituição e o aumento da homossexualidade é culpa dos direitos que as mulheres adquiriram. Aliás, como diria a Feminista Cansada, ele acha que SE as mulheres exercessem esses direitos, elas ameaçariam aquelas instituições. Vai vendo, até os caras mais conservadores sabem que a gente não tem acesso a todos os direitos que estão no papel.

De toda forma, essa culpabilização da mulher é uma opinião mal formada e mal informada. Primeiro que a estrutura patriarcal de família sempre terá problemas e passará por crises porque é excludente, limitadora e preconceituosa. Se a família do jeito que o patriarcado idealiza não existe, é porque o seu próprio sistema é falho. Outra coisa, a homossexualidade não "aumentou", detesto quando falam isso, como se fosse um problema. O que acontece é que, hoje, as pessoas têm um pouco mais de liberdade sexual. E Feliciano ameaça diretamente esse pouco que, ao mesmo tempo, é muito, do que a gente já conquistou.

Por isso que a opinião dele não é simplesmente uma opinião. Essa pessoa que abre a boca para dizer isso, é a pessoa que pode (sim, tem o poder de) criar e mudar as leis. Perceba e entenda o nosso pânico.



3) Eu sou homem, branco e hétero, Feliciano não me interessa (atinge).

Há. Senta aí, bonito. Xô te contá. Agora, por enquanto, não. Afinal, é mais fácil começar pelas minorias (que apesar do que o Felicianta acha, não significa minoria numérica, tá?). Mas se você gosta do seu direito de ser ateu, agnóstico, católico ou qualquer outra coisa que não evangélico, cuide-se, viu. Se você foi criado por uma mulher que trabalhou fora (e, provavelmente, dentro) para te manter, se você tem uma companheira com quem divide as contas, cuida também, viu. Os direitos ameaçados não te afetam diretamente, mas gente intolerante no poder, de alguma forma e em algum momento, atinge todo mundo. Se não hoje, logo mais.

4) Os  evangélicos não podem ter representação parlamentar?

Uai, poder pode. O que não pode é tentar passar e impor suas crenças para o resto do país. Oferecer a cura gay na igreja não é proibido, embora, pessoalmente, pareça-me absurdo. Agora, transformar a cura gay em lei não pode. Fere diretamente a liberdade de um monte de gente.

É assim: num Estado laico que prega a liberdade religiosa, as crenças ficam nas respectivas casas (igrejas, terreiros, centros, etc.). No Congresso, os pastores não devem ser pastores; nem os padres, padres. Isso porque eles não representam apenas os que votaram neles, ali, eles estão por todo mundo. É pra ser simples, cada um no seu quadrado, e todos se respeitando.

5) E aí, a gente faz o quê?

Muitas coisas. Para começar, a gente se junta aos protestos. Pode parecer que não adianta, mas adianta. Devemos ir às manifestações e assinar as petições. A mentalidade felicianística ameaça não só os direitos dos homossexuais e das mulheres, ameaça o Estado democrático que a gente vem buscando há tempos e queima muito o filme dos cristãos. Então, bora participar.

Para terminar, tenhamos pensamento crítico. Não por nada, não, sem querer ofender, se você tem uma religião que prega violência contra o diferente, talvez seja interessante pensar melhor a respeito. Estudar um pouquinho de história, ver tudo de horrível que esse tipo de pensamento já causou e ainda causa. Mas, assim, de boa, sem querer pregar contra nenhuma religião. Sei lá, me chame de louca, mas Deus, pra mim, é amor.

Tággidi subvertendo!

1

Em nome da mãe

Por Thaís Bueno

Você já parou para pensar em como certos discursos religiosos têm atacado, ao longo dos séculos, não apenas a integridade e a dignidade feminina, mas muitas vezes a própria integridade física da mulher? E, pelo fato de discursos religiosos estarem de certa forma entranhados em quase tudo que fazemos e pensamos (acredito que é impossível escaparmos a tudo o que tange à cultura em que estamos imersos), esses discursos nos afetam mais do que imaginamos. 



E não me refiro aqui a um determinado tipo de violência contra a mulher ou a uma religião específica: há, no mundo todo, uma infinidade de modalidades religiosas que têm como base de suas práticas um certo temor a tudo que se relaciona à natureza feminina (desde os extremismos praticados por religiões islâmicas de países da África subsaariana até os discursos proferidos por religiosos que estão bem perto de nós). E, obviamente, o grau e o tipo de opressão praticada às mulheres também varia bastante. 

Esses fatos são muito bem explicados pela historiadora Anna Gicelle Garcia Alaniz em alguns dos videocasts que ela publica em seu canal no Youtube, o Cantinho da História. Entre outros assuntos, como o advento do nazismo e diferentes concepções de história, Anna se dedica, em dois vídeos, a discutir questões relacionadas ao feminismo: em um deles, ela fala sobre o Dia Internacional da Mulher e, em outro, sobre a opressão feminina operada pelos discursos religiosos. Tratadas a partir do interessante ponto de vista de uma historiadora e baseadas em uma rica e profunda análise desses temas, essas discussões podem nos ajudar muito a entender e ser mais críticos e sensíveis a essas questões. 



Tendo em mente as ideias que Anna traz, principalmente no vídeo relacionado à opressão feminina pelos discursos religiosos, é interessante pensarmos em certos fatos que, apesar de nos parecerem irrelevantes e naturais, são decorrentes de pura construção ideológica. Por exemplo, as palavras e o discurso de um religioso ao realizar um casamento; a forma como o aborto é tratado pelas diferentes religiões; a autoridade conferida às mulheres em certas igrejas; a forma como a natureza do corpo feminino é tratada em determinadas culturas; a constituição familiar; a forma como as religiões instituíram um lugar para mulheres entre suas santas e intercessoras, e como esse lugar lhes é concedido. 


Especificamente nesse último quesito, achei muito interessante um trecho do livro Borderlands/La Frontera – The New Mestiza, em que Glória Anzaldúa conta a história da formação de três figuras míticas mexicanas (a Virgem de Guadalupe, padroeira do México; Malinche, mulher indígena que ficou marcada como traidora na construção do imaginário nacional mexicano; e la Llorona, a mais famosa lenda mexicana, construída a partir do mito da mãe que perde seus filhos e com isso passa a vagar eternamente assombrando crianças "malcriadas"). Essas três figuras mexicanas podem ser um exemplo interessante de como a imagem da mulher (proveniente de diversos domínios da cultura – do imaginário indígena, de mitos e lendas populares ou da própria religião católica) é utilizada pelo discurso religioso como ferramenta ideológica para manipulação e manutenção do poder político e social: 

La gente Chicana tiene tres madres. Todas as três são intercessoras: Guadalupe, a mãe virgem que não nos abandonou, la Chingada (Malinche), a mãe violentada a quem nós abandonamos, e la Llorona, a mãe que procura pelos filhos perdidos e é uma combinação das duas primeiras. A ambiguidade cerca os símbolos dessas três "Nossas Senhoras". Guadalupe foi usada pela igreja para confirmar nossa opressão institucionalizada: para aplacar índios, mexicanos e chicanos. Em parte, a verdadeira identidade de todas as três foi subvertida – a de Guadalupe, para nos tornar dóceis e pacientes; a de la Chingada, para fazer com que nos envergonhemos de nossos ancestrais indígenas; e, de la Llorona, para nos tornar um povo eternamente sofredor. Essa subversão ajudou a fortalecer a dicotomia virgen/puta.


Se você quiser saber mais sobre o mito de la Llorona e de como os discursos religiosos podem influenciar na forma como a mulher é vista e tratada em nossa cultura, sugiro a leitura de “La Llorona: mito e poder no México”, de Rosa Maria Spinoso de Montandon. Disponível aqui.

2

Se a vida fosse um video game...

por Roberta Gregoli


Do site Um dia ainda viro cartunista

...ser homem branco heterossexual de classe AB seria o nível fácil.

A metáfora é de Rachel Saklr. Em contrapartida, ser mulher, negra/indígena de classe D seria a dificuldade máxima.

É claro que é possível ganhar o jogo nos níveis de dificuldade mais elevados: tem gente que é mesmo boa de jogo, há quem tem sorte, há xs que têm inteligência e esforço acima da média. Agora, não dá para medir o todo por essas exceções e sair por aí dizendo que não existe sexismo no Brasil porque temos uma Presidenta ou que não existe racismo porque tenho um amigo negro que faz faculdade pública.

É preciso ter clareza que o jogo é diferente e, enquanto essas pessoas devem, sim, ser celebradas por suas conquistas excepcionais, não deixa de ser muito injusto culpabilizar quem não chega lá. 

O contrário também é verdadeiro: nem todo o homem branco cissexual de classe alta vai ganhar no jogo da vida, mas não dá para ficar chorando as cotas derramadas porque o jogo agora ficou um cadinho mais difícil.


Cotas raciais e de gênero são polêmicas porque alguns simplesmente não conseguem - ou não querem - enxergar a bruta vantagem que têm sobre xs outrxs - vantagem que vem das oportunidades de berço, e até muito antes do nascimento:

Breve história do privilégio

Em outras palavras imagens, se a vida fosse uma corrida, ela seria assim:

E a reação que enfrentamos quotidianamente
por apontar essa bruta injustiça é mesmo essa

As metáforas são várias, mas a do video game é particularmente pertinente porque o mundo dos games é sabidamente sexista. A começar pela representação das mulheres nos jogos, de Lara Croft a qualquer coadjuvante boazuda.



Na vida real, Anita Sarkeesian, do excelente Feminist Frequency, lançou um projeto para analisar a representação das mulheres nos video games e acabou sendo vítima de uma campanha de ódio massiva, que incluia até um jogo interativo em que jogadores eram encorajados a beat the bitch out (espancar a vadia).

Ainda mais perturbador - se é que isso é possível - que essa demonstração abertamente misógina em grande escala foi que os perpetradores constantamente se referiam a essa campanha de assédio e abuso como um jogo. - Anita Sarkeesian
Se a vida é um video game, misóginos são heróis. Era o que faltava. Mas antes fosse só no mundo dos games. O caso recente de dois jogadores de futebol americano que estupraram uma garota de 16 anos em Steubenville (que, apesar do nome, é uma cidade real nos Estados Unidos) resultou em condenação, coisa rara - vide o revoltante caso da banda New Hit em solo nacional. Apesar de terem sido julgados e condenados, o tom da mídia foi de comoção por 'essas jovens estrelas do esporte' que tiveram seu futuro 'arruinado':

Uma paródia de 2011 precede o caso e é assustadoramente parecida 
na sua abordagem distorcida do retrato dos criminosos.
Obrigada à Marylin Lima pela indicação dos links

Não é à toa que vítimas de abuso sexual são geralmente reticentes a vir a público: na cultura do estupro - que são todas as culturas -, é preciso muita consciência para se empoderar. Seja na realidade virtual ou na visceral, infelizmente, não é raro que criminosos sejam tidos como heróis e as vítimas compadeçam. O final feliz fica por conta de Anita Sarkeesian, que, apesar de todo o bullying, assédio e ódio, manteve sua campanha e conseguiu angariar um valor 25 vezes maior do que havia pleiteado inicialmente para o seu projeto. Mesmo no nível difícil, Sarkeesian chegou lá.