Lavando a roupa suja (sem pagar por isso)

por Thais Torres, a mais nova Subvertida :)

Estava eu lendo um caderno especial da Folha De São Paulo, publicado neste domingo, sobre a nova lei que regula o trabalho das domésticas. Não tenho empregada, nem tenho a intenção de pagar alguém para limpar a minha própria casa. Sinceramente, não vejo necessidade. Meu objetivo era achar algum texto que complementasse uma proposta de redação que estou fazendo sobre o assunto.

A vida do professor no Brasil tem muitos desafios e discutir assuntos que envolvam os direitos daqueles que trabalham e que se subordinam às ordens da família dos alunos é um deles. Na tentativa de cumprir essa e outras tarefas, há insatisfações das mais diversas ordens, mas uma me incomoda em particular: a crueldade com que jovens de 17, 18, 20 anos, no máximo, olham para pobreza que caracteriza o país e o total desinteresse deles em mudar essa realidade.


Enfim, estou me desviando do assunto. Na leitura do referido caderno da Folha, encontrei um artigo, pretensamente divertido e descolado, chamado 'Empregada pra quê?'. Escrito pelo ilustre desconhecido Sandro Macedo, é de um machismo atroz. Não pude deixar de me lembrar de um post (ótimo) da Bárbara Falleiros, aqui nesse blog, sobre a associação entre mulheres e a responsabilidade de limpar a casa.

O texto de Macedo começa bem. Assim o autor se define: 

Felizmente, ou não, faço parte de uma turma que não tem uma empregada. Aliás, minha família nunca teve empregada. Se puxar pela memória, vou me lembrar de mim mesmo enxugando a louça, sem direito a mesada, num exercício a seis mãos (a irmã lavava e o caçula guardava).

Pensei comigo: bacana! Pode servir para discutir com os alunos a cultura escravocrata do brasileiro, acostumado a ser servido o tempo todo e incapaz de lavar o próprio prato de comida. Engano meu. O argumento central para que ele não tenha empregada doméstica não é esse. Pelo contrário, o horror e a desconfiança dele em relação aos pobres são tamanhos, que ele se recusa até a ser servido por eles:


Mas só de escutar os amigos reclamando ("Ela não sabe lavar", "Mudou tudo de lugar", "Comeu o alfajor argentino") dá um desânimo.


Logo em seguida, ele dá “dicas” para evitar a empregada doméstica em casa. Algumas pouco higiênicas (“O copo de cerveja de ontem, por exemplo, é o copo de hoje. Se você for moderninho e quiser tomar uma IPA ou uma stout, melhor ainda. Pode misturar aromas”), outras até engraçadas (“Primeira dica: a cama. Para que arrumar de manhã o que será bagunçado à noite?”).



As mais interessantes são as que envolvem uma espécie de mentira que ele prega na mãe e na namorada para ter a casa limpa. O foco do texto não parece ser outro senão ensinar o leitor, um “macho-cristão-ocidental-solteiro” como ele, a conseguir ter serviços de empregadas domésticas, sem precisar pagar por isso, já que elas têm carinho e amor por ele.



A primeira a ser usada é a namorada. A dica é um primor: ajuda até a fingir romantismo, quem sabe, o leitor “macho-cristão-ocidental-solteiro” não consegue usar a mulher para a sua segunda função mais comum, aquela que ele não mencionou no texto:


No dia em que quiser trocar a cama, chame a namorada para dormir lá e faça tudo a dois. Vai parecer romântico.

A segunda a servir de empregada é a mãe. Mas cuidado, leitor! Não vá exagerar! É preciso lembrar que ela não é a sua empregada mais. Ela já foi, mas isso passou. Agora você tem mais de 18 anos, mora sozinho e é um macho solteiro. Não seja infantil!

E importante: a cada 15 dias, convide sua mãe para fazer uma visita. Use a camisa amarrotada. Mãe que é mãe não consegue ver o filho todo desarrumado.

Roupa passada e até uma minifaxina são quase garantidos. Mas, lembre-se, ela não é sua empregada. Ela já fez tudo isso para você até os 18.

Preciso interpretar o machismo da frase “Mãe que é mãe não consegue ver o filho todo desarrumado”? E, a pergunta que não quer calar, “Filho que é filho” convida a mãe para uma visita apenas para ter suas camisas passadas?

Os absurdos não param por aí. A mãe é uma empregada muito mais barata. Não precisa de salário, muito menos dessas bobagens como direito a descanso, férias e hora extra que andam exigindo por aí... Basta pagar um almoço que fica tudo resolvido.

E, se você levá-la para almoçar em seguida, todo mundo vai ficar feliz e agradecido. E sua roupa vai ficar com o cheiro que você gosta.

Podem se passar anos sem que essa lógica seja quebrada... ou até você se casar.

O texto é idiota, é claro. Mas não deixa de ser sintomático o recado – claríssimo e límpido como a mãe e a namorada do autor da crônica devem deixar as roupas de cama dele: empregadas domésticas roubam nossos alfajores importados e, por esse motivo não devemos contratá-las. Além disso, é desnecessário pagar alguém para arrumar sua casa, se você tem uma mãe que faz isso para você até os 18 anos – e quinzenalmente depois disso. Isso até você casar, é claro. Depois disso, fique tranquilo: suas namoradas cumprirão a função que sua mãe exercia. Você não ficará um único instante desamparado.

O texto termina com uma indicação: a série Downton Abbey, que está passando no GNT. Assista, leitor-machão-solteiro, para matar as saudades do tempo em que “subalternos até se estapeavam para poder ajudar o patrão a colocar a luva, com direito a livro de ponto”. Bons tempos aqueles, não é?

Não consigo deixar de também dar a minha dica para o autor do texto e para os leitores que concordam com ele. Recebi a brincadeira abaixo esta semana, publicada por amigos do Facebook:


Procurando por imagens para ilustrar o que escrevi aqui, encontrei essa outra obra-prima na abordagem deste assunto:


O post fica sem a ilustração que eu queria, portanto, pois ao digitar no Google “Machão + limpeza”, não encontrei uma única imagem de um homem de vassoura na mão. Mas o cartoon anterior me parece mais ilustrativo para compreender a relação entre essas duas palavras.


4 comentários:

  1. Texto perfeito, se falarmos do machismo.

    Mas se o assunto for preconceito e desinformação, um deles é que se pode usar livremente qualquer imagem do Google. O Google não desenha, nem fotografa. Quem faz isso são as pessoas. Então, se for pretende usar um cartoon mais ilustrativo, chame um cartoonista pra trabalhar ou peça os direitos de imagem, muitos deles cedem sem ônus.

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  2. Quanta pretensão! Será que esses machões realmente acreditam que todas as mulheres são iguais e tomaram a injeção "dona-de-casol"? E se a namorada tiver uma certa paciência no comecinho, e depois colocar o folgado pra trabalhar, afinal, foram-se os tempos que alguém tinha peninha de marmanjo! Não é lá nenhuma novidade.

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  3. A PEC das Domésticas trouxe mesmo à tona o racismo, machismo e as desigualdades de classe que estruturam nosso Brasilzao. E como apareceu o tema da tirinha, aproveito pra divulgar duas do blog da querida "crocomila": uma sobre a pec e outra sobre "a limpeza da casa" http://crocomila.blogspot.fr/2013/03/pec-das-domesticas-novo-drama-da-novela.html
    http://crocomila.blogspot.fr/2012/12/paradoxos-machistas-limpeza-da-casa.html

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  4. Eu só não entendo a insistência da autora do artigo em frisar o "cristão-ocidental". Existe algum problema com o cristianismo e a ocidentalidade? Será que o machão-islamico-oriental é melhor que isso?

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