Nas fronteiras do feminismo, só o que existe são nuances e articulações

Por Thaís Bueno

Muitxs sabem e muitxs falam das dificuldades pelas quais passa uma mulher que quer ser várias ao mesmo tempo, sendo apenas uma. Ela quer ser mulher, quer ser estudante, quer ser funcionária, quer ser mãe, quer ser esposa, quer ser uma pessoa que rala para pagar as suas contas, quer ser amiga, quer ser brasileira, quer ser latino-americana, quer ser cética.

Acredite em mim: gerenciar tudo isso custa tempo e articulação. Porque, por exemplo, para ser uma boa amiga, é preciso ter tempo para dedicar às amigas. Esse tempo precisa ser habilidosamente medido para não prejudicar o tempo dedicado ao marido, ou aos estudos, ou ao trabalho, ou à família, ou à leitura pessoal. Eu conheço algumas mulheres, as quais posso contar nos dedos das mãos, que sabem fazer isso muito bem. E as admiro, não por conseguirem fazer tanta coisa ou por carregarem a imagem da super-mulher, mas por conseguirem, na mistura de todas essas nuances que as compõem, serem pessoas dignas, admiráveis e generosas

Eu nunca consegui compartimentar ou separar as nuances que me compõem. Obviamente, tenho uma boa percepção delas, sei o que é que afeta minha postura como mãe e o que pode influenciar minha relação conjugal; sei dizer o que está bom ou ruim em minha carreira acadêmica e em meus trabalhos. Mas não é possível separar uma nuance da outra, pelo simples fato de que não sou um boneco lego, com várias peças de montar e desmontar. Não. Em mim, a mulher não se esquece, pelo fato de ter nascido mulher, de sua condição social, da cor de sua pele, de suas relações culturais, afetivas e políticas.

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Há três dias meu marido me chamou para ver esta foto, com certo espanto: 



Apresento-lhes a Barbie Mexico. Produto original (é de se questionar o peso da palavra “original” aqui) da Mattel, gigante do setor de brinquedos, esta Barbie Mexico faz parte da coleção Barbie Dolls of the World (Bonecas Barbie do Mundo). Claro, nós sabemos que, assim como a Coca-Cola e o McDonalds para quem não simpatiza com o capitalismo, a Barbie, para qualquer pessoa que seja a favor de igualdade de gênero, representa tudo o que está errado no mundo hoje em dia. Sim, a Barbie é símbolo de um modelo falido, em que as garotas brincam de boneca, vestem rosa, têm cabelos perfeitos, medidas nada realistas e um Bob de plástico sempre ao seu lado. Longe de ser uma boneca com a qual uma criança pode simular uma realidade diferente e ter sua criatividade estimulada, a Barbie é uma boneca-modelo, uma mera reprodução dos valores de nossa sociedade capitalista

Mas todas essas são coisas que muitxs de nós sabemos. Nesta imagem da Barbie Mexico, há muitos outros problemas que, mesmo para algumas mentes esclarecidas, passam despercebidos. Neste momento, eu gostaria de perguntar a você, que lê este post: quais outros problemas você vê nesta foto, além da visão em rosa que impera no conjunto e fere nossos olhos? Claro, os traços faciais produzidos na boneca, idênticos aos da Barbie caucasiana, são óbvios e dispensam comentário. Violência cultural, óbvia e descarada.

Tudo bem, falemos do cachorrinho no colo de la Barbie. Trata-se de um chihuahua, que não por acaso é o nome de um estado mexicano. E, embora a suposta raiz mexicana desse bichinho não seja comprovada, é óbvio que a Barbie Mexico precisa ter um desses cachorrinhos de colo, afinal, é o que todos os mexicanos fazem. Todos eles têm um chihuahua, assim como todos os brasileiros amam samba, carnaval e futebol. Não sei como não colocaram um sombrero na cabeça da boneca e uma garrafa de tequila em uma das mãos – ah, mas aí nossa boneca não seria sofisticada; afinal, ainda estamos falando da Barbie. 

No entanto, há algo a mais nessa foto, algo muito mais violento que o cachorro, o vestido ou os traços da boneca. Há na imagem do kit um documento de brinquedo. Ou seja, esta Barbie, modelo da mulher ocidental capitalista, é uma documentada. Não é uma undocumented, uma mera wetback, uma cucaracha, uma alien que atravessa deserto, rio e patrulha de fronteira com artilharia pesada para correr atrás do “sonho americano”, do “american way of life” que a nossa Barbie caucasiana ajuda a construir. Não, a Barbie Mexico é uma moça direita, que trabalha e ganha seu dinheiro de forma justa, e que com ele compra a liberdade de se mover para onde quiser, de viajar quando quiser pelos EUA pelo mundo. Ela tem o direito de ir e vir com tranquilidade. 

É de se perguntar qual é o efeito de uma boneca dessas sobre a vida de uma criança, de uma garota mexicana cuja família não tem boas condições financeiras (ou seja, a grande maioria no México). Ou mesmo sobre a vida de uma mulher que tenha se arriscado a cruzar a famosa fronteira entre o México e os EUA, independentemente daquilo que a tenha motivado. Ou, ainda, sobre a vida de umas das milhares de mulheres que já tentaram cruzar a fronteira e foram assassinadas. É de se perguntar se essas mulheres ainda querem ser Barbies, se ainda querem um Bob ao seu lado, se ainda querem ter uma casa dos sonhos (mais uma explosão rosa me veio à mente agora). Eu gostaria de saber se, para essas mulheres que já tiveram que cruzar a fronteira, qualquer fronteira, seja ela política, cultural, de gênero, raça, sexo ou credo (ou a falta dele), é possível pertencer a uma condição social e cultural injusta e ainda se preocupar em ter um chihuahua e um vestido rosa; ou se é possível separar sua condição de mulher de sua condição social. Se é possível separar sua etnia de suas crenças e ideologias, tal como acontece com o lego. 



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Mais um indício de que todas essas nuances que nos compõem acabam se misturando e modificando umas às outras: enquanto estou escrevendo para este blog feminista, ou seja, afirmando minha condição feminina, acabo me lembrando de minha própria vida intelectual e de minhas experiências na academia. Desta forma,  trago dois textos da chicana (denominação atribuída estadunidenses de ascendência mexicana) Glória Anzaldúa, escritora feminista sobre a qual escrevi em meu primeiro post aqui no Subvertidas, e que eu escolhi para fechar minha despedida a este blog, de que eu tanto gosto. O primeiro texto é um poema, emocionante, sobre a experiência de viver na fronteira e internalizá-la, em vários aspectos. O segundo é um trecho de uma entrevista, em que Anzaldúa comenta sobre uma experiência de incursão no movimento feminista dos Estados Unidos

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El otro Mexico
(Gloria Anzaldúa)

Vento balançando minhas mangas
pés afundando na areia
eu fico no limite onde a terra toca o mar
onde os dois se sobrepõem
um encontro gentil
em outros tempos e espaços, um choque violento.

Através da fronteira do México
   silhueta dura de casas com vísceras ao oceano
       penhascos dissolvem-se ao mar
          ondas prateadas e marmoreadas com espuma
               abrindo um buraco sob a cerca que forma a fronteira.
             
              Miro el mar atacar
           la cerca en
Border Field Park
        con sus buchones de agua
     uma ressureição pascoalina
do sangue escuro que corre em minhas veias.

Oigo el llorido del mar, el respiro del aire,
   meu coração palpita com as ondas do mar.
      Na neblina cinzenta do sol
        o grito estridente e esfomeado das gaivotas,
          o aroma cítrico do mar infiltrando-se em mim.
     
     Eu atravesso pela      fenda da cerca
                     até o outro lado.
     Sob meus dedos, sinto o arame impregnado de areia
             com uma ferrugem de 139 anos
              de hálito salgado do mar.

Sob o céu de ferro
crianças mexicanas chutam suas soccer balls para o outro lado,
correm atrás dela, entrando nos EUA.
           
               Eu aperto com minhas mãos a cortina de ferro –
         cerca que é elo da cadeia, coroada com arame farpado e enrolado –
    ondulando com o mar, onde Tijuana toca San Diego
            estendendo-se sobre montanhas
                                    e planícies
                                                 e desertos,
esta “Tortilla Curtain” transforma-se no Río Grande
              escorrendo pelas terras planas
                    do Magic Valley of South Texas
              abrindo e esvaziando sua boca no Golfo.

Ferida aberta de 1.950 milhas
      dividindo um pueblo, uma cultura,
      percorrendo toda a extensão do meu corpo,
            fincando a cerca em minha carne
                   divide-me    divide-me
                      me raja   me raja
                      
                        Esta é minha casa.
                    essa sutil borda feita de
                          arame farpado.
          
             Mas a pele da terra não tem emendas.
             O mar não pode ser vedado,
             el mar não para nas fronteiras.
     Para mostrar ao branco o que ela achou de sua
                           arrogância,
                   Yemayá soprou e derrubou aquela cerca de arame.
                   
                     Esta terra foi uma vez mexicana,
                         foi sempre indígena
                            e é.
                       E de novo será.

Yo soy um puente tendido
           del mundo gabacho al del mojado,
lo pasado me estira pa´ ‘trás
           y lo presente pa’ ‘delante,
Que La Virgen de Guadalupe me cuide
Ay ay ay, soy mexicana de este lado.


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Trecho de entrevista de Gloria Anzaldúa (em: Borderlands/La Frontera – The New Mestiza):

Quando me mudei para São Francisco, (...) eu entrei para o Feminist Writers Guild. (...) Então, descobri que essa pequena comunidade de escritoras feministas de São Francisco, Oakland e Berkeley excluía abertamente as mulheres negras e chicanas. A maioria das mulheres brancas que eu conhecia faziam parte da organização. (...) Nós nos encontrávamos a cada duas semanas, e aí todas falavam de seus problemas enquanto brancas e suas experiências enquanto brancas. Quando era minha vez de falar, era quase como se elas pusessem palavras em minha boca. Elas me interrompiam enquanto eu ainda estava falando ou, após eu terminar, elas interpretavam o que eu tinha acabado de dizer, de acordo com seus pensamentos e suas ideias. Elas achavam que todas as mulheres sofriam o mesmo tipo de opressão, e tentavam me forçar a aceitar a imagem que tinham de mim e de minhas experiências. Elas não queriam se abrir à minha própria forma de me apresentar e aceitar que talvez eu fosse diferente daquilo que elas achavam que eu fosse, até aquele momento. Portanto, a mensagem do livro This Bridge Called My Back é que o gênero não é a única forma de opressão. Há também classe, raça, orientação religiosa; há coisas relacionadas à geração e a idade, as questões físicas etc. Quer dizer, de certa forma, essa mulheres eram geniais. Elas eram brancas e muitas delas eram muito generosas. Mas elas também eram cegas, no sentido de não conseguirem enxergar as múltiplas opressões que sofremos. Elas não entendiam tudo pelo qual nós estávamos passando. Elas queriam falar por nós porque elas tinham uma concepção de feminismo, e queriam aplicá-la a todas as culturas. This Bridge Called My Back foi, portanto, minha resposta contra aquele feminismo do tipo “Somos todas mulheres então todas vocês estão incluídas e nós somos todas iguais”. Elas achavam que nós não pertencíamos a nenhuma cultura pelo fato de sermos feministas; que não tínhamos qualquer outra cultura. Mas elas nunca deixaram sua branquidade em casa. A branquidade daquelas mulheres estava em tudo o que elas diziam. Apesar disso, elas queriam que eu desistisse de minha chicanidade e me tornasse uma delas; elas queriam que eu deixasse minha raça na porta de entrada
 
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Dedico este post às quatro mulheres, subvertidas e subversivas, que tão generosamente me permitiram trazer minhas palavras para este blog: Bárbara, Mazu, Roberta e Tággidi. Muito obrigada, meninas.

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