O esquecimento da mulher na filosofia - Franco Volpi e Schopenhauer

por Tággidi Ribeiro


Atena, deusa da sabedoria.
O prefácio de Franco Volpi ao A arte de lidar com as mulheres, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, é ao fim interessantíssimo. A intenção clara do texto é não só desculpar a misoginia schopenhaueriana, posta na conta do humor ('é só uma piada'), mas também desculpar a misoginia da história e da filosofia ocidentais. Aliás, a palavra correta aqui é justificar, ou seja, demonstrar a justiça (histórica, universal) e legitimar as falas que calavam (ainda calam) a mulher. Contudo, nesse processo, Franco Volpi evidencia aquilo mesmo que o cega ou que ele se recusa a ver: o apagamento sistemático da figura feminina não por alguma sua inferioridade intrínseca, natural, mas dentro da própria construção discursiva dessa inferioridade. Vejamos o que ele nos diz:
6. Seja como for, a tradição do pensamento ocidental, apesar da diversidade das posições, das tendências e das escolas que a constituem, mostra uma surpreendente compactação ao remover, de princípio ou de fato, o sexo feminino, excluindo-o de um papel ativo na filosofia. Se o paralelo não suscitasse hilaridade, e se alguém já não o tivesse proposto, poderíamos arriscar a seguinte tese: assim como Heidegger afirmou que a filosofia ocidental é caracterizada pelo "esquecimento do Ser", poderíamos sustentar que ela é marcada por outro muito mais escandaloso: "o esquecimento da mulher".
O que me chama a atenção nessa fala, fora a questão posta, tanto histórica quanto metafísica, é que o paralelo traçado entre o esquecimento do ser e o da mulher seja, para mim, mulher, trágico, e nele provoque não só o riso, mas a explosão. A misoginia profunda de Franco Volpi tanto ri escandalosamente do esquecimento da mulher quanto esquece a mulher no tempo mesmo em que irrompe: as mulheres jamais seriam suas leitoras? Ou jamais chegariam a compreender, a penetrar esse discurso? Ou seriam obrigadas a capitular diante da verdade? Esta verdade(?):
 7. (...) na República, ele (Platão) reivindicou a igualdade dos direitos para as mulheres, admitindo-as até no estudo da filosofia: infelizmente, o fato é que nessa obra ele ilustrou apenas uma utopia. Já no Timeu, quando expôs a doutrina das metempsicoses, Platão afirmou que as almas são originariamente masculinas: as que vivem indignamente seriam destinadas a reencarnar num corpo feminino e, se novamente se comportassem mal, transmigrariam para o corpo de um animal. Desse modo, ele terminou por atribuir à mulher o estatuto de ser inferior, a meio-caminho entre o homem e o animal.
O homem ocidental clássico tem horror ao animal. Por animal entende aquilo que deixou de ser, aquilo a que se tornou superior e que deve necessariamente dominar. O homem ocidental construiu sua identidade tendo como alter, como outro, não a mulher, mas o animal. A mulher só passa a ser também o outro num momento posterior da dominação do homem sobre a natureza. E para justificar (principal verbo desse post) sua ascensão sobre qualquer ser, o homem imediatamente o associa, o assemelha ao animal. Keith Thomas nos conta, em O homem e o mundo natural, que crianças, jovens, pobres, negros, loucos, povos inteiros e, é claro, mulheres são comparados a animais, sobretudo até o século XIX, quando a biologia ganha o status de conhecimento e os animais têm reconsiderado o seu valor. Mas ainda no século XX o mesmo expediente é usado: antes e durante a Segunda Guerra os judeus são descritos como ratos, para ficar em um só exemplo. 

Quanto às mulheres, seguem animalizadas, ou melhor, seguem carregando a pecha que hoje pesa menos sobre o animal: praticamente todo o discurso midiático e muitas vezes também o biológico gira (propositadamente) em torno do estereótipo da mulher superemotiva, irracional. Seres irracionais não fazem filosofia, lugar primeiro da razão. Aqui o lugar de Franco Volpi.


ps: pincei apenas alguns trechos do prefácio e talvez em algum momento enfoque o texto de Schopenhauer, que segue de algum modo sendo replicado a sério. Veja nesta cena, para mim, tristíssima (min 11:06):


5 comentários:

  1. Sobre o vídeo: concordo que é difícil ser mulher, mas persistir na afirmação de que somos todas um turbilhão irracional movido a hormônios é extremamente reducionista. É verdade que algumas mulheres sofrem de TPM, mas nem todas. Eu não sofro, e daí, não sou mulher? São premissas que nos impõem como verdadeiras e temos que engolir, e isso é ensinado às crianças, que as meninas são teimosas e geniosas e etc., e os meninos, superiores - gentis, etc. Golpe baixo usar a filosofia ocidental tradicionalmente dominadora da mulher para justificar um ponto de vista. Triste que esta seja a visão de formadores de opinião.

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    1. Maria, a ideia da fala contida no vídeo é de uma estreiteza de raciocínio que me deixa algo triste, um tanto com raiva: essa mulher foi criada por um 'deus' (começou a namorar Caetano Veloso aos 13 anos) que sedimentou nela preconceitos que, como testemunha ocular e pensante da revolução sexual e dos movimentos de libertação da mulher, tinha o dever de reduzir a nada. Como alguém cita Simone de Beauvoir para justificar a inferioridade da mulher? Como alguém lê verdadeira a misoginia de Schopenhauer? Quando o mestre não soube ensinar a ler ou, maquiavelicamente, induziu ao erro na leitura...

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  2. Tággidi, já leu este texto? http://www.ebah.com.br/content/ABAAAA63MAH/as-flautistas-as-parteiras-as-guerreiras

    bjo...

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  3. Tággidi, já leu este texto "AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS" da Jeanne Marie? http://www.ebah.com.br/content/ABAAAA63MAH/as-flautistas-as-parteiras-as-guerreiras

    bjo!

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    1. Agora eu li! Obrigada pela indicação, o texto é muito bom. Só acho que a defesa do lugar da mulher (ou a crítica do não lugar da mulher) na filosofia deveria ser mais aguerrida.

      Obrigada pelo comentário e por acompanhar nosso blog!

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