Sorriso amarelo

por Barbara Falleiros

Olhando para as fotos, me bateu um desânimo tão grande que eu tive vontade de chorar. Então é isso mesmo, nós não valemos nada. Pensei nas vezes em que já senti sobre a minha pele mãos indesejadas. E me veio novamente aquela repulsa, reação infelizmente familiar a tantas mulheres. A todas as mulheres - ouso dizer - em pelo menos algum momento de suas vidas. Numa dessas vezes, quando eu tinha dez anos, um garoto da escola se divertia em passar a mão na bunda das meninas. Lembro-me bem da sua risada. Eu e as outras garotas não achávamos a menor graça, mas ele continuava. Como nos ensina desde cedo a cultura do estupro, agressão é brincadeira, assédio é humor.

O Pânico é um programa de "humor" fraco e primário que, como de costume na tv brasileira, funciona à base de brincadeiras de mau gosto e de humilhações, reforçando o preconceito e o sexismo desde a concepção de seus "personagens", do homossexual com hemorroidas à mulher planta meramente decorativa. No programa, o grau de importância das participantes mulheres se mede pela quantidade de roupa que vestem: aquela que aparece um pouco mais coberta tem um papel de destaque, embora permaneça sendo a loira burra japonesa gostosa. Nicole Bahls, antiga figurante de biquíni, estava feliz em voltar ao programa com uma promoção: "Não vou ficar mais usando biquíni. (...) Vou ficar sentada junto com os outros humoristas. Estou me sentindo ótima, emocionada com a volta."

Gerald Thomas, embora se veja como grande expoente artístico com carreira internacional - há prova de maior provincianismo do que a idolatria do exterior e o desprezo puro e simples por seu paisinho de quarto mundo, do qual ele mesmo reproduz o pior da cultura sexista? - não passa de um babaca que gosta de chocar e de mostrar o próprio pênis. Freud explica. Vergonhoso nivelamento por baixo esta sua vingança grosseira contra o Pânico, tentando levantar o vestido de Nicole e abrir o zíper da calça do colega repórter.

A grande repercussão do episódio mostra que, pouco a pouco, começa-se a questionar os limites de supostas "brincadeiras" do tipo. Ótimos textos foram publicados sobre o que aconteceu no lançamento do livro do dramaturgo, como o de Nádia Lapa: A cultura do estupro gritando e ninguém ouve. Eu chego tarde para acrescentar algo novo ao debate, mas gostaria apenas de chamar a atenção para o teor das declarações dxs envolvidxs na cena, para o vocabulário, que não é outro que o das justificativas e desculpas comumente usadas em casos de agressões e abusos. É como a cultura do estupro, que discute Nádia Lapa em seu texto e da qual já falamos bastante aqui no blog, se constrói pelo discurso.

As pessoas têm o direito de fazer o que quiserem com o corpo dx outrx? Uma agressão é um direito? Não seria, por acaso, por ele ser homem - por seu corpo não ser imediatamente tido com um bem público - que ele esteja menos sujeito à falta de respeito do que sua colega mulher? E a culpa então recai sobre a própria mulher, cuja beleza atrai e justifica o assédio? Estratégia clássica de minimização do ocorrido: a naturalidade do colega, o "bom humor" de outro expectador da cena, a negação dos fatos pelo diretor do programa...



Lendo na internet discussões sobre os padrões de comportamento de agressores sexuais, li uma frase que *curiosamente* se aplica à situação descrita aqui. Dizia assim: "Um agressor sexual geralmente acredita que ele é melhor que os outros e que não tem que seguir as regras como as pessoas comuns. Geralmente define a si mesmo como forte, superior, independente, auto-suficiente e muito masculino". Bom, na verdade, essa descrição serve para qualquer machão de grande ego por aí (e pouco importa sua orientação sexual). Aqui, Geraldo não só afirma sua superioridade, inatingível face à impunidade reinante no país (e ao falar de impunidade, ele é consciente de que seu ato não constitui uma simples brincadeira), mas se serve também do subterfúgio perverso de culpabilização da vítima. A culpa de ter sido tocada e apalpada é da moça que estava com um vestido curto e um salto alto. Ela estava pedindo, certo? É o comportamento dela que está em questão aqui, não? É uma vadia mesmo, não é? Pelas fotos, não dá pra ver que ela está gostando? O pior é que muita gente continua concordando nesse ponto, de que a mulher que se expõe é responsável, moralmente responsável pelo assédio que pode vir a sofrer:



Nicole Bahls, com sua beleza formatada de Panicat, é ela mesma uma vítima da concepção machista e objetificadora da mulher. E ela mesma ignora que abusos, agressões, ataques, assédios, apalpadas não são uma questão de sexo, mas sim de poder. “Acho que ele é gay assumido. Se fosse homem, com outra intenção... Mas era uma brincadeira. Se fosse um homem, talvez fosse mais agressivo”. Ledo engano. Nenhuma forma de assédio sexual manifesta o impulso incontrolável do desejo masculino pelo corpo feminino, essa é a desculpa para o que não passa de uma afirmação do poder de um sobre x outrx. Que importa que Geraldo sinta ou não desejo pela mulher que ele decidiu tocar e constranger publicamente! Somente o que importa é o consentimento. Nicole concordou em aparecer na tv de biquíni, concordou em tirar fotos para a Playboy, não concordou em que um desconhecido a agarrasse e tentasse levantar seu vestido em um evento diante de expectadores e fotógrafos. Simples assim. Ele não tinha o direito de fazê-lo, assim como os igualmente babacas do Pânico não têm o direito de fazer muito do que fazem.
Só que isso não é humor, não.


Fonte: Nós estamos sujeitos a tudo, diz Bola sobre brincadeiraNicole Bahls sobre ataque de Gerald Thomas: "Fiquei abalada" ; Gerald Thomas responde a críticas.

4 comentários:

  1. Excelente texto, mas tenho uma pequena correção: acho que a frase "she must have had a bahls" é um trocadilho infame com "she must have had a ball" ("ela se divertiu muito") e não "she must have had balls", que insinuaria transsexualidade.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Finalmente, parece que o "gênio Geraldo" se reaproveitou do trocadilho com o sobrenome da moça nesta frase publicada depois do ocorrido, mas que a cena teria partido justamente de uma insinuação da transsexualidade de Nicole. Isto é, duplamente nojento:

      Segundo Thomas, a ideia de provocar a apresentadora partiu do próprio sobrenome de Nicole. “Aí veio essa menina que tem o sobrenome Bahls, que é saco em inglês. Eu fui na brincadeira, achava que era uma brincadeira”, disse. Na cena, ele pediu para descobrir a sexualidade de Nicole. “Deixa eu ver o sexo dela”, disse.

      Excluir
  2. Procurei algumas notícias sobre este assunto e fiquei chocada. As respostas deste calhorda foram horríveis, do tipo "todos queriam fazer o que fiz, agora os hipócritas me julgam...", um nojo. Horrível também a reação das pessoas, tentando justificar se ela estava gostando ou não... Imagine, a mulher trabalhando e ter uma mão enfiada sob sua saia! Sim, seu trabalho é representar a mulher-objeto, mas isso não dá o direito de um nojento pedante lhe passar a mão. Chocante as mulheres acreditarem que os homens as respeitam porque "agem" de outra forma. Concordo totalmente com o post, não é uma questão de beleza ou desejo apenas, mas de poder. Quantas de nós sofremos abusos, violações, cantadas, usando nossos terninhos, camisas compridas, calças de alfaiataria, sendo gordas, magras, altas, baixas? Enfim, não é uma questão de estar disponível, despertar desejo, dar uma brecha. É uma ilusão que querem que acreditemos, que somos a origem dos pecados dos homens. É uma simples submissão.
    Só é triste que a imprensa não dê tanta importância, e pouco se reaja. Isso não foi um estupro, mas foi uma "violência". O otário devia responder a uma ação penal, no mínimo, pra aprender a não ser um idiota machista nojento. Mas é só a opinião de uma mulher, de que vale...

    ResponderExcluir
  3. Parece que no Pânico que foi ao ar no último domingo Nicole disse que 'se fosse na rua ela armava o barraco todo'. É justamente aí o enrosco: provavelmente, ela seria acusada e culpada na rua, tal como na tv.

    ResponderExcluir