Você é gordx e a culpa é sua

por Barbara Falleiros

Quantidade de açúcar nas bebidas industrializadas
Nas cidades, as crianças de hoje não brincam na rua (perigosa demais, inadaptada) e passam a maior parte de seu tempo livre na frente do computador ou da televisão. Para os adultos, sair caminhando a pé ou de bicicleta são práticas que lutam para serem reabilitadas e assim, entre comodidade, segurança e falta de alternativas, não são poucos os que entram no carro até para ir à padaria. Tudo nos empurra para uma vida sedentária. A rotina pesada de trabalho e a falta de tempo encorajam o consumo de alimentos processados. Comida rápida, engolida por robôs eficientes. Se há um lugar em que a depressão me invade sem qualquer possibilidade de resistência são as praças de alimentação dos shoppings. Da luz pálida ao sorriso dos atendentes, tudo é irreal no templo do consumismo. Refrigerante no lugar de água, refrigerante na mamadeira, porções de porcariada cada vez maiores. "Amo muito tudo isso" - martelam na sua cabeça. Como de costume, os mais pobres são os primeiros a serem atingidos. Parece que no Brasil tomate agora é caviar. Crise passageira, que seja, mas frutas e legumes são artigos de luxo. Produtos orgânicos, então, é coisa de gente muito fina. E quem não pode ter sua própria horta (viva a horta urbana!) que encha o bucho de batatinha chips, bolacha recheada, coca-cola, miojo e salsicha. Desde pequenininhx.

No Brasil, um levantamento realizado em 2008/2009 mostrou que 50% dos homens e 48% das mulheres se encontram com excesso de peso, sendo que 12,5% dos homens e 16,9% das mulheres apresentam obesidadeUma em cada três crianças brasileiras de 5 a 9 anos está acima do peso recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Há um excelente documentário, Muito além do peso (assistam! é longo, mas vale a pena), que mostra as relações nefastas entre a publicidade de alimentos destinados às crianças e a obesidade infantil. Porém... no início deste ano o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), vetou a lei que tentava proibir a propaganda de alimentos infantis não saudáveis na televisão. Vetou. Anotaram?

Tudo isso para chegar a uma conclusão lógica e evidente: gordos e gordas, a culpa é de vocês. Não é lobby não, que história é essa? Não tem epidemia nenhuma e isso de predisposição genética é balela. Você é gordx porque quer! Mas pode não ser, você pode ser feliz em outro corpo comprando revista, remédio, produto. Mas ser gordo e feliz, isso é impossível.

...A gordofobia é para mim uma das mais grotescas formas de discriminação, e olha que a concorrência é rude. Nega a responsabilidade do nosso vender-comprar-vender way of life, dos padrões ditados por ele, culpabiliza a pessoa que sofre. Não levem a mal a comparação, que para mim é pertinente: ninguém jamais diria a uma pessoa com câncer "Nossa, você poderia dar um jeito nessa careca para ficar mais bonita! Você deveria fazer alguma coisa, se cuidar, ter mais força de vontade". Mas a/o obesa/o é sempre culpabilizado, mesmo quando se trata de um problema de saúde. Porque gordx é relaxadx, né? É culpa dele/a ser feio/a, largado/a, não se cuidar.

Vale lembrar

Gord@ é doente. Ou não.

Primeiramente, há pessoas que sofrem de obesidade e que estão, de fato, doentes. Se estão doentes, deveriam ser cuidadas por profissionais respeitosos. Aí está a primeira dificuldade. Quem já se esqueceu da conduta irresponsável e antiética do médico de Salvador que receitou "cadealina", ou cadeados na porta da geladeira, para uma paciente com problemas no fígado, que desejava emagrecer? A quem a/o obesa/o pode recorrer quando é estigmatizada/o pelo próprio profissional de saúde, que repassa ao paciente toda a responsabilidade por sua doença? A pessoa obesa tem todos seus passos controlados por uma patrulha desconhecida: se come demais e se continua sedentária, todos dizem "bem feito", se come de menos e tenta se exercitar, é "ridícula".

A discriminação no olhar. Projeto Wait Watchers da fotógrafa Haley Morris-Cafiero
Segundo ponto: por que é que pessoas doentes deveriam se sentir feias? Na verdade, escrevo este texto pensando em um post que vi outro dia, a respeito de um fotógrafo que retratou mulheres obesas. Como toda forma de expressão artística, a fotografia tem uma finalidade estética, e é aí que a coisa complica. Como é que o cara ousa criar beleza com modelos obesas? Não pode! E a desculpa muito sabida que encontraram para recusar toda beleza fora do padrão é... a saúde! Porque apreciar ou mesmo conceber que um/a obeso/a possa ser belo/a significa incentivá-lo na sua doença, lógico. E fiquem sabendo que isso é imoral. Ah, discriminação disfarçada de politicamente correto! A reação das pessoas é tão imediata que a autora do post em questão foi obrigada a fazer um adendo:

"*UPDATE: Nós do Hypeness não incentivamos a obesidade pois ela é uma doença e não é saudável. Os aplausos aqui foram para a atitude inovadora do fotógrafo de quebrar paradigmas e retratar uma realidade que existe, mesmo que a mídia e a sociedade deteste admiti-lo."

Espero que aqui no blog não precisemos desse adendo. E que a beleza dessas imagens possa ser apreciada sem hipocrisia.





Mas é sempre preciso lembrar que existem pessoas que são gordas e que não estão doentes. Porque a família é gorda, porque gosta de comer, porque com o passar do tempo o corpo foi acumulando mais "substância", porque é assim e ponto. Tem gente que é mais alta, tem gente mais baixa, forte, fraca, pouco importa! O inaceitável é que a/o gorda/o seja bombardeada/o pela "boa intenção" de conhecidos e desconhecidos que são como felicianos em pele de presidente da CDHC. Reproduzo aqui o trecho de um post da Lola que, ela mesma uma mulher gorda, pode falar da sua própria experiência:

Toda vez que falo sobre aceitação do corpo aqui no blog, vem um batalhão dizer que só é gorda quem quer. Ou seja, já associam gordura com falta de caráter, ou, pelo menos, falta de determinação. O fato de 99% das dietas falharem (a pessoa até perde quilos mas acaba recuperando tudo e mais um pouco depois) não mostra o óbvio – que dietas o funcionam. Mostra que as gordas é que não funcionam porque são umas desleixadas. Elas simplesmente não fazem o esforço. Esforço que, pra muita gente, equivale a viver pra isso. Eu fiz reeducação alimentar uns quatro anos atrás, durante quase um ano, e até gostei. Cheguei a perder oito quilos. Mas eu vivia pra aquilo. Não havia um só momento que eu não pensava em comida, em quilos, em calorias, em ginástica.

E alguém vai ter a coragem de me dizer que isso é libertador? Contra essa história de que se deve acabar com a autoestima da pessoa gorda para não "incentivá-la" a continuar cultivando esse "terrível defeito físico e de caráter", ela diz:

Mas aprenda o quê, may I ask? Que ela é gorda? Juro que ela já tinha se dado conta. Que ela é horrível por ser gorda [quer dizer, que a pessoa é tida como horrível por ser gorda]? Vai por mim: ela sabe disso desde criancinha. Que precisa emagrecer? Ela passou a vida toda tentando. Gente, a verdade é uma só: se ofender gordas fizesse que perdêssemos peso, não haveria uma só gorda no mundo. Todas nós já fomos insultadas. Todas nós já tentamos emagrecer, e a maioria vai tentar até morrer.
Então é isso. Para terminar contra os bullyings, fica o vídeo e o discurso dessa jornalista americana, em resposta à carta "bem intencionada" de um homem preocupado com o exemplo que ela, gorda, passava para seu público :



"Você não está me dizendo nada que eu não saiba [sobre a minha aparência], mas você não me conhece e não sabe nada sobre mim. Eu sou muito mais do que um número na balança."

Entendeu?
 


Um comentário:

  1. O documentário é sensacional. Eu que me julgava "informada" sobre alimentação, pois vivo brigando com meu peso e minha aparência, não tinha ideia da real quantidade (em tamanho) da gordura contida nos salgadinhos, e do açúcar do refri.
    Dei uma lida nos comentários sobre as fotos... Algumas pessoas criticam apenas a imagem. Chocante são as pessoas que questionam o quesito "saúde" dizendo que o fotógrafo está incitando a obesidade e a doença das pessoas. Será que realmente acreditam que as modelos são saudáveis? Que o padrão de beleza das mulheres pirulito que nos são expostas diariamente é o padrão real de saúde? Os comentários dão a entender que sim, que aquelas modelos esquálidas que aparecem fazendo exercícios na "Boa Forma" (como se pudessem ficar em pé) correspondem à saúde. Inquestionável.

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