Saiu no Financial Times: slut shaming

por Roberta Gregoli


Deu no Financial Times - moça escreve carta para o jornal pedindo dicas para encontrar marido rico e leva um baita fora do editor:

MARIDO RICO
Saiu no Financial Times (maior jornal sobre economia do mundo)

Contudo, mais inacreditável que o "pedido" da moça, foi a disposição de um rapaz que, muito inspirado, respondeu à mensagem, de forma muito bem fundamentada. Sensacional!! Leiam...

E-mail da MOÇA:

"Sou uma garota linda (maravilhosamente linda) de 25 anos. Sou bem articulada e tenho classe. Estou querendo me casar com alguém que ganhe no mínimo meio milhão de dólares por ano. Tem algum homem que ganhe 500 mil ou mais neste jornal, ou alguma mulher casada com alguém que ganhe isso e que possa me dar algumas dicas? Já namorei homens que ganham por volta de 200 a 250 mil, mas não consigo passar disso. E 250 mil por ano não vão me fazer morar em Central Park West. Conheço uma mulher (da minha aula de ioga) que casou com um banqueiro e vive em Tribeca! E ela não é tão bonita quanto eu, nem é inteligente. Então, o que ela fez que eu não fiz? Qual a estratégia correta? Como eu chego ao nível dela? (Raphaella S.)"


Resposta do editor do jornal:
"Li sua consulta com grande interesse, pensei cuidadosamente no seu caso e fiz uma análise da situação. Primeiramente, eu ganho mais de 500 mil por ano. Portanto, não estou tomando o seu tempo a toa.
Isto posto, considero os fatos da seguinte forma: Visto da perspectiva de um homem como eu (que tenho os requisitos que você procura), o que você oferece é simplesmente um péssimo negócio.
Eis o porquê: deixando as firulas de lado, o que você sugere é uma negociação simples, proposta clara, sem entrelinhas : Você entra com sua beleza física e eu entro com o dinheiro.
Mas tem um problema. Com toda certeza, com o tempo a sua beleza vai diminuir e um dia acabar, ao contrário do meu dinheiro que, com o tempo, continuará aumentando.
Assim, em termos econômicos, você é um ativo sofrendo depreciação e eu sou um ativo rendendo dividendos. E você não somente sofre depreciação, mas sofre uma depreciação progressiva, ou seja, sempre aumenta!
Explicando, você tem 25 anos hoje e deve continuar linda pelos próximos 5 ou 10 anos, mas sempre um pouco menos a cada ano. E no futuro, quando você se comparar com uma foto de hoje, verá que virou um caco.
Isto é, hoje você está em 'alta', na época ideal de ser vendida, mas não de ser comprada.
Usando o linguajar de Wall Street , quem a tiver hoje deve mantê-la como 'trading position' (posição para comercializar) e não como 'buy and hold' (compre e retenha), que é para o quê você se oferece...
Portanto, ainda em termos comerciais, casar (que é um 'buy and hold') com você não é um bom negócio a médio/longo prazo! Mas alugá-la, sim! Assim, em termos sociais, um negócio razoável a se cogitar é namorar.
Cogitar...Mas, já cogitando, e para certificar-me do quão 'articulada, com classe e maravilhosamente linda' seja você, eu, na condição de provável futuro locatário dessa 'máquina', quero tão somente o que é de praxe: fazer um 'test drive' antes de fechar o negócio... podemos marcar?"
(Philip Stephens, associate editor of the Financial Times - USA)"

Vi este texto hoje compartilhado no Facebook, mas pelo visto a anedota é velha. Assim como é velha a premissa na qual se baseia: como diz a Barbara, a gostosona interesseira sendo colocada no seu devido lugar.

O pior é que não saiu no Financial Times. Procurei a referência original e o único texto em inglês que encontrei foi num site brasileiro, de um "orientador profissional" (?). Mas, é claro, a referência (inventada) vem a calhar: a legitimidade de um grande jornal serve para fazer passar um machismo descarado.


Na base do texto está o velho golpe do baú. Casar por dinheiro é, sem dúvida, uma ideia machista, já que sugere que uma mulher não tem capacidade de se fazer na vida, que é consumista e interesseira "por natureza", etc. Mas até que ponto não existe, sim, uma barreira concreta para que as mulheres cheguem ao topo? O teto de vidro é um fenônemo real e observável. Quantas são as mulheres que ganham mais de 500.000 dólares por ano nos Estados Unidos? Das 100 maiores fortunas norte-americanas, só 13% pertencem a mulheres.

E o texto leva a uma pergunta maior, ainda que tangencial: até que ponto a ideia do amor romântico também não serve a um discurso machista? Já vimos como muito do romantismo não passa de criação premeditada e meticulosa para vender. E quanto tempo e energia as mulheres não gastam - energia essa que poderia ser direcionada a outras venturas - na busca obsessiva e socialmente inculcada do par romântico? Quantas mulheres não permanecem em relações abusivas "em nome do amor" ou por medo de serem socialmente taxadas como 'solteironas'? Não digo isso para me juntar ao coro que culpa as mulheres por tudo (isso seria fomentar ódio a mim mesma, pois provavelmente todas as mulheres já passaram por alguma dessas situações pelo menos uma vez na vida), mas para entendermos como o machismo é altamente difundido na nossa cultura.

Mas, voltando ao texto, já disse e volto a afirmar: num mundo de opções limitadas para as mulheres, a beleza física e a sexualidade se tornam ferramentas de empoderamento e ascensão social. Não são maneiras de empoderamento pelas quais nós, feministas, lutamos - ou mesmo admiramos -, mas culpar as mulheres que se utilizam dessas práticas não deixa de ser tão (ou mais) machista quanto as práticas em si. 

No caso da suposta carta, se sentir vingadx pela resposta do editor não passa de slut shaming. Machismo com requintes de sadismo. 

Mesmo que a carta fosse real, a pergunta da moça é parva, mas mais parva ainda é a resposta, que naturaliza e leva às últimas consequências a comodificação do corpo feminino. A resposta do editor justifica essa comodificação através de um discurso técnico legitimado por sua própria (suposta) fortuna, e se aproveita da situação, se colocando como potencial "locatário". E por que ele não é constrangido da mesma maneira que ela por querer uma relação puramente monetária? O cara é comedor/esperto, a mulher é puta, que é provavelmente um dos padrões duplos mais batidos que existem.

O fato de pessoas de outro modo bem-intencionadas acharem graça de uma piada misógina como essa mostra o quanto o machismo está intricado social e culturalmente. Orai e vigiai porque, como sempre dizemos, o problema não é ver machismo em tudo. O problema é não ver.


3 comentários:

  1. É o velho argumento horripilante de que mulher não gosta de homem, mas de dinheiro. E acham lindo repetir isto, como se as mulheres fossem traiçoeiras, interesseiras. Exige-se que o homem seja bem sucedido e que a mulher seja bonita. Mas culpa-se a mulher. Atualmente, nós sentimos uma grande pressão também, por sermos bem sucedidas e ainda bonitas, mas dificilmente os homens são acusados de interesseiros. O padrão duplo. O que me surpreende neste discurso é que se a poesia misógina diz que "beleza é essencial" não seria ela uma premissa necessária? Na resposta do editor em nenhum momento ele diz que é dispensável ou que não lhe interessa a beleza, apenas sugere que poderá ser trocada, renovada por novas belezas. Parece que somos reduzidas a isso na resposta..

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    1. Exato, ele não questiona a premissa machista, só a reforça. Por isso a resposta dele é tão tosca, ou mais, que a pergunta. Mas o pessoal curte porque tem tom de revachismo, o 'ah a interesseira levou um fora'. Slut-shaming puro.

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  2. 5 minutos de pesquisa.
    Não discordo de sua posição. Apenas revelando o que estava ao alcace de vocês.

    http://www.reuters.com/article/2007/10/10/us-newyork-husband-idUSN0941966120071010

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