Papa, afásicos, agnósicos e essa juventude

por Tággidi Ribeiro

"Não tenho ouro nem prata, mas trago o que de mais precioso me foi dado: Jesus Cristo."
As palavras que me servem de epígrafe são do Papa Francisco, em seu primeiro discurso ao povo brasileiro. Não sei que aconteceu a vocês quando as leram ou viram/ouviram, mas eu ri. Depois, fiquei com raiva, indignada: como tinha coragem de usar 'essas' palavras?! 

Meu riso me lembrou de Oliver Sacks em um de seus contos não-ficcionais, de cuja história é possível depreender que o riso que irrompe em meio à fala do outro pode ser uma mostra de que alguma parte de nós não acredita nessa fala; também, portanto, de que alguma parte do outro pode estar mesmo mentindo. Ademais, no mesmo conto, vemos até que ponto a escolha das palavras pode ser importante para estabelecer o sentimento de verdade em relação a um discurso.

Assim, em 'O discurso do Presidente', presente na coletânea O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Sacks refere a reação de um grupo de afásicos ao discurso de seu Presidente: uma gargalhada estrondosa. Oliver Sacks logo explica que muitos afásicos, incapazes de compreenderem as palavras em si, têm intensificadas as capacidades de reconhecer o tom e a intenção da fala, além do 'ar afetado' e de 'qualquer falsidade ou improbidade na aparência ou postura do corpo' do outro, do que resulta ser praticamente impossível enganar um afásico. Daí a gargalhada daquele grupo: o Presidente mentia. 

Um distúrbio cerebral oposto à afasia, contudo, tampouco pôde encobrir a tentativa de manipulação do discurso do Presidente. Na mesma ala dos afásicos, uma paciente com agnosia tonal, na qual preserva-se a compreensão das palavras mas perde-se o senso de 'tom, timbre, sentimento e caráter' da fala, foi taxativa ao afirmar sobre o discursante: "Seu uso das palavras é inadequado. Ou ele tem deficiência cerebral, ou alguma coisa a esconder." 

Assim, entre o riso e o incômodo, eu e outros tantos 'normais', como se somando alguma afasia e agnosia, declaramos mentiroso o discurso do Papa Francisco, na escolha das palavras e no tom de voz baixo, no ritmo pausado, calmo, na dicção clara, na postura comedida. O paradoxo entre sua fala e o que ostenta não deixa, para nós, margem alguma a dúvidas. Estas reações pincei do Facebook: 
Discurso do Pontífice: "não tenho ouro nem prata".
Não sei de vocês, mas adoro gente que tem bom humor...
Um buffet simples na recepção (água, café e biscoitos) para o Papa, custeado com os recursos do Estado, pelo módico valor de R$ 1300,00 por pessoa, totalizando R$ 850.000,00. ‪#‎dormeBrasil  
Até um tumblr foi criado para zombar da imagem de figura humilde que o Papa tenta vender ao mundo: http://papahumildao.tumblr.com/page/2 

Ocorre que milhões de outros normais, ajudados, diria Sacks (e aqui eu o parafraseio), pelo desejo de serem enganados, de fato se deixaram enredar. "E tão astutamente foram combinados o uso enganoso da palavra com o tom enganoso, que só os que tinham dano cerebral ficaram ilesos, não foram logrados."

A Juventude

Há dentre esses milhões de normais enredados pelo Papa, milhões de jovens. Brasileiros que ontem estavam empunhando cartazes nas manifestações, protestando contra a corrupção, contra a impunidade e a violência; contra a desigualdade social, por saúde e educação. Esses jovens, desconfiados dos políticos e da política, mas crentes em deus e na Igreja Católica, parecem viver em outro mundo: eles nunca leram sobre os escândalos de pedofilia dentro da ICAR, jamais punidos? Nunca leram sobre as denúncias de lavagem de dinheiro, nem sobre como a Igreja enriqueceu vendendo o reino dos céus? Não percebem que há algo de muito errado entre o valor de R$ 118 milhões gastos em uma única visita e a fala 'não tenho ouro, nem prata'? Nunca ouviram falar da deseducação promovida pela ICAR com o fito de tornar o mundo ainda mais preconceituoso e desordenado? 

A humanidade está ameaçada pelos homossexuais; aborto é assassinato; é pecado usar camisinha e tomar anticoncepcionais, mesmo em países onde o número de casos de AIDS é espantoso: a Igreja Católica é esse crime, essa mentira - com um pouco mais de perspicácia, podemos lê-lo na própria cartilha distribuída aos jovens da JMJ. Com que desonestidade, contudo, o "kit peregrino" promove a desinformação, e com que docilidade o rebanho jovem se deixa estar, sem ao menos querer pensar e de fato buscar compreender em que contexto se inserem todas essas questões e com que seriedade devem ser discutidas e transformadas em politicas públicas.

Penso nas jovens mulheres, nas adolescentes e crianças que rezam alegres por uma igreja que as desrespeita fundamentalmente. Já pensaram, essas meninas, nos médicos e na mãe da menina de 9 anos, excomungados pela ICAR por terem permitido que ela abortasse o fruto de um estupro, em uma gravidez de alto risco? (Mas o estuprador pedófilo, padrasto da menina, não foi excomungado.) 

Penso nas corajosas mulheres de peitos nus que foram protestar por um Estado laico. Penso nas Católicas pelo Direito de Decidir. Penso no Estatuto do Nascituro, no PLC 122, no PL 60/99. Algum dos jovens da JMJ conhecerá de fato, sem preconceito, sem ideias rasas, algum desses tópicos? Terá respondido ao menos um 'sim' a alguma dentre tantas perguntas?

Uma juventude ignorante, que se recusa a saber, que escolhe não saber, é o verdadeiro mal. E, como em outros momentos da história, pode novamente agora contribuir com sua força, energia e estupidez para piorar o mundo.

ps: Jesus renegaria essa Igreja, esses mercadores do Templo.
ps2: links nas palavras em vermelho. 



5 comentários:

  1. Ótimo post! Bem oportuno...

    Outra coisa me incomoda: as juventudes católicas, evangélicas e religiosas em geral. Não há qualquer tentativa ou pensamento contra a ordem instituída, mas só uma reafirmação das ordens da Igreja: não transe, não conteste, não olhe, não pense.

    O mais engraçado é que muitas vezes isso é feito utilizando as formas do discurso que a Igreja condena. Vi esses dias uma dancinha coreografada de católicos utilizando a melodia de um funk. Padres bonitões cantam músicas sertanejas com letras falando de religião. Há até raves religiosas! Me parece que a Igreja tenta atrair os jovens dando a eles a música da moda que eles querem, mas sem jamis promover qualquer espécie de contestação típica (e bem vinda) da juventude.

    E aí eu penso: o Bach compunha música religiosa também... Mas é um pouquiiiiinho diferente das versões católicas do funk da moda.

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    1. é realmente um 'pouquinho' diferente o Bach da música que se faz hoje na Igreja... hehehe.

      é muito interessante isso, porque as Igrejas se utilizam da cultura de massas para 'conquistar' seus fiéis e, como a sensualidade é abundante na cultura de massas, acaba servindo como forma de propaganda nas Igrejas também: daí os padres bonitões - a Igreja mexe com a libido, propositalmente confundida com a fé, de seus seguidores. ao mesmo tempo, o sexo que não é para fins de reprodução, é condenado. e, ao mesmo tempo, há sex shop gospel, filme pornô gospel, católicos vendem livros pornô, o vaticano baixa vídeos pornô... quer dizer, não há preocupação com a coerência: as Igrejas lançam o maior número de iscas, quanto mais peixes pegarem, melhor...

      no mais, Thaís, é bem o que você falou: as Igrejas são não o lugar da dúvida, mas do dogma.

      obrigada pelo comentário e pelo elogio!

      um abraço!

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  2. Adorei! A figura do papa é uma máxima contraditória. A contradição, a falta de lógica e equidade é o que mais me chama atenção. A revolução filosófica do novo evangelho pregava a caridade, a humildade, o acolhimento, de todos: doentes, prostitutas, imaginem só, para a sociedade da época. É tão incongruente a tentativa de separar agora os "dignos" dos "não-dignos" e de expressa e taxativamente rejeitar determinados grupos, excluir direitos de uns em detrimento de outros. O pior é que justamente os que deveriam acolher e se dizer humildes (os pregadores dos evangelhos, os religiosos cristãos) são os atuantes da discriminação, os ditadores dos dogmas.

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  3. Adorei! A figura do papa é uma máxima contraditória. A contradição, a falta de lógica e equidade é o que mais me chama atenção. A revolução filosófica do novo evangelho pregava a caridade, a humildade, o acolhimento, de todos: doentes, prostitutas, imaginem só, para a sociedade da época. É tão incongruente a tentativa de separar agora os "dignos" dos "não-dignos" e de expressa e taxativamente rejeitar determinados grupos, excluir direitos de uns em detrimento de outros. O pior é que justamente os que deveriam acolher e se dizer humildes (os pregadores dos evangelhos, os religiosos cristãos) são os atuantes da discriminação, os ditadores dos dogmas.

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  4. Faltou fotos dos santo católicos sendo quebrados e de como um crucifixo pode ser utilizado de forma irreverente e criativa. Faltou mostrar como o feminismo da marcha das vadias é tolerante e muito bem esclarecido.

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