Gioconda
Belli (Nicarágua, 1948) é uma das poetas nicaraguenses mais conhecidas dentro e fora de seu país.
Ainda jovem se integrou às fileiras da Frente Sandinista de Libertação Nacional
(FSLN) na luta pela derrubada do governo ditatorial de Somoza. Foi correio
clandestino, transportou armas, viajou pela Europa e América recolhendo
recursos e divulgando a luta sandinista. E, claro, no meio de tudo isso,
escrevia suas poesias. Com o triunfo da Revolução Nicaraguense, em 1979, ocupou
vários cargos dentro do governo revolucionário. Com a posterior burocratização
do partido no poder, Gioconda se afasta da FSLN e passa a criticar duramente
seu “endireitamento”.
De início, a poesia de Belli, produzida
no contexto da revolução nicaraguense, coloca grande ênfase na união dos
nicaragüenses contra a tirania de Somoza, tratando o amor de um casal como metáfora da unidade sociopolítica e de gênero em oposição a tirania. Esse
amor era "arma contra a opressão… o desejo dionisíaco que vence a morte, o
desespero". Belli apresentava, então, a mulher como a entidade destinada
principalmente a dar amor, associada com o sentimental e com o passivo. Ela era
a natureza e a paisagem nicaragüenses, a terra que esperava ser possuída pelo amante-guerrilheiro
(ativo, forte e que domina o espaço público), dicotomia de gênero própria do
universo patriarcal.
Porém,
Belli também já incluía em seus versos elementos inovadores da representação feminina,
fissuras no discurso patriarcal que evidenciavam a negociação que a escritora fazia
entre o tradicional e o novo. Com a
vitória da revolução nicaraguense, essas fissuras vão aos poucos crescendo
e uma nova identidade feminina vai se assumindo como voz dominante em sua poética, ainda que com recaídas
próprias das tensões com o velho discurso. Belli realiza uma corajosa autocrítica
do eu-feminino, reconhece o excessivo idealismo com que encarava as relações
amorosas, passa a questionar abertamente a submissão da mulher e a defender que esta possa estabelecer seus próprios limites, suas
próprias regras, o que realmente quer ou não quer no amor.
Vista
em sua totalidade, a poesia de Belli é um fantástico registro da trajetória do eu-feminino, com seus conflitos e contradições de identidade até uma consciência
feminista. Um retrato bastante genuíno das latinoamericanas-lutadoras do século
XX e começo do XXI, com seus acertos e também com sua incansável negociação com
a opressão tradicional de nossa cultura machista e patriarcal.
Jeff
Vasques
NOVA TESE
FEMINISTA
(Gioconda
Belli, tradução de Jeff Vasques)
Como te dizer
homem
que não te necessito?
Não posso cantar a liberação
feminina
se não te canto
e te convido a descobrir
liberações comigo.
Não me agrada a gente que se
engana
dizendo que o amor não é
necessário
-"tenha medo, eu tremo"
Há tanto novo que aprender,
formosos homens da caverna a
resgatar,
novas maneiras de amar que ainda
não inventamos.
Em nome próprio declaro
que gosto de me saber mulher
frente a um homem que se sabe
homem,
que sei de ciência certa
que o amor
é melhor que as multi-vitaminas,
que o casal humano
é o princípio inevitável da vida,
que por isso não quero jamais
liberar-me do homem;
o amo
com todas suas debilidades
e gosto de compartilhar sua
teimosia
todo este amplo mundo
onde ambos somos imprescindíveis.
Não quero que me acusem de mulher
tradicional
mas podem me acusar
tantas como quantas vezes queiram
de mulher.
REGRAS DO
JOGO PARA OS HOMENS QUE QUEIRAM MULHERES MULHERES
(Gioconda
Belli, tradução de Silvio Diogo)
I
O homem que me amar
deverá saber abrir as cortinas da
pele,
encontrar a profundidade de meus
olhos
e conhecer o que se aninha em
mim,
a andorinha transparente da
ternura.
II
O homem que me amar
não desejará possuir-me como uma
mercadoria,
nem me exibir como troféu de
caça,
saberá estar a meu lado
com o mesmo amor
com o qual estarei ao lado seu.
III
O amor do homem que me amar
será forte como as árvores de
ceibo,
protetor e seguro como elas,
puro como uma manhã de dezembro.
IV
O homem que me amar
não duvidará de meu sorriso
nem temerá a abundância de meu cabelo,
respeitará a tristeza, o silêncio
e com carícias tocará meu ventre
como violão
para que brotem música e alegria
do fundo de meu corpo.V
O homem que me amar
poderá encontrar em mim
a rede onde descansar
do pesado fardo de suas
preocupações,
a amiga com quem compartilhar
seus íntimos segredos,
o lago onde flutuar
sem medo de que a âncora do
compromisso
o impeça de voar quando queira
ser pássaro.
de vir a ser pássaro.
VI
O homem que me amar
fará poesia com sua vida,
fará poesia com sua vida,
construindo cada dia
com o olhar posto no futuro.
VII
Acima de todas as coisas,
o homem que me amar
deverá amar o povo
não como uma palavra abstrata
tirada da manga,
mas como algo real, concreto,
a quem render homenagem com açõese dar a vida, se necessário.
VIII
O homem que me amar
reconhecerá meu rosto na trincheira
joelhos no chão me amaráreconhecerá meu rosto na trincheira
enquanto os dois disparam juntos
contra o inimigo.
IX
O amor de meu homem
não conhecerá o temor da entrega,nem terá medo de se descobrir ante a magia da paixão
em uma praça cheia de multidões.
Poderá gritar - te amo -
ou colocar placas no alto dos edifícios
proclamando seu direito de sentir
o mais lindo e humano dos sentimentos.
X
O amor de meu homem
não fugirá das cozinhas,nem das fraldas do filho,
será como um vento fresco
levando consigo, entre nuvens de sonho e de passado,
as fraquezas que, durante séculos, nos mantiveram separados
como seres de distintas estaturas.
XI
O amor de meu homem
não desejará rotular ou etiquetar,me dará ar, espaço,
alimento para crescer e ser melhor,
como uma Revolução
que faz de cada dia
o começo de uma nova vitória.
NÃO ME ARREPENDO DE NADA
(Gioconda
Belli, tradução base de Silvio Diogo, versão de Jeff Vasques)
Daqui,
da mulher que sou,
às
vezes me entrego a contemplaraquelas que eu podia ter sido;
as mulheres primorosas,
modelo de virtudes,
trabalhadoras
boas esposas
que
minha mãe desejou para mim.
Não
sei por quê
passei
minha vida inteira me rebelandocontra elas
odeio suas ameaças em meu corpo
a
culpa que suas vidas impecáveis
por
um estranho feitiço,me inspiram;
revolto-me
contra seus bons ofícios,
os
prantos noturnos sob o travesseiro,às escondidas do marido
o pudor da nudez, por baixo da passada e engomada
roupa íntima.
Estas
mulheres, no entanto,
olham-me
do interior de seus espelhos,levantam um dedo acusador
e, às vezes, cedo a seus olhares de reprimenda
e gostaria de ter a aceitação universal,
ser a “boa menina”, a “mulher decente”
a impecável Gioconda,
tirar dez em conduta
com o partido, o estado, as amizades,
minha família, meus filhos e todos os demais seres
que, abundantes, povoam este nosso mundo.
Nesta contradição invisível
entre o que deveria ter sido e o que é
travei numerosas batalhas mortais,
batalhas inúteis delas contra mim
- elas contra mim que sou eu mesma -
Com a “psique dolorida” despenteio-me
transgredindo ancestrais programações
desgarrando-me das mulheres internas
que, desde a infância, torcem o rosto para mim
pois não me encaixo no molde perfeito de seus sonhos,
pois me atrevo a ser esta louca falível, terna e vulnerável
que se apaixona feito puta triste
por causas justas, homens bonitos e palavras brincalhonas
pois, já adulta, atrevi-me a viver a infância proibida,
e fiz amor sobre escrivaninhas em horários comerciais
e rompi laços invioláveis e me atrevi a desfrutar
o corpo são e sinuoso com que os genes
de todos os meus ancestrais me dotaram.
Não
culpo ninguém. Melhor, agradeço a eles pelos dons.
Não
me arrependo de nada, como disse Edith Piaf.Porém, nos poços escuros em que me afundo;
nas manhãs em que, ao entreabrir os olhos,
sinto as lágrimas fazerem força
apesar da felicidade
que finalmente conquistei
rompendo estratos e camadas de rocha terciária
e quaternária,
vejo minhas outras mulheres sentadas no vestíbulo
fitando-me com olhos doídos
e me culpe pela felicidade.
Irracionais
boas meninas
rodeiam-me
e desfilam suas canções infantis contra mim;contra esta mulher
feita
plena
esta mulher de peitos em peito
e largos quadris
que, por minha mãe e contra ela,
eu gosto de ser.
11 de julho de 2013
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