Umberto Eco filosofando no feminino

por Tággidi Ribeiro


Publiquei uma série de textos chamada "Filosofia e mulheres", que criticava o prefácio machista do filósofo italiano Franco Volpi para o por demais machista livro "A arte de lidar com as mulheres", do Schopenhauer. Daí achei um texto do Umberto Eco que conta um tanto da mesma história da filosofia feita por mulheres que Volpi contou, mas sem menosprezar nem essa história, nem as mulheres. Vou reproduzir o texto de Eco em dois posts. É essencial.

Filosofar no feminino
Judite decapitando Holofernes, de Artemísia Gentileschi.
A antiga afirmação filosófica pela qual o homem é capaz de pensar o infinito ao passo que a mulher dá sentido ao finito pode ser lida de diversas maneiras: por exemplo, como o homem não sabe fazer filhos, consola-se com os paradoxos de Zenão. Mas, com base em afirmações do gênero, disseminou-se a ideia de que a História (ao menos até o século XX) nos fez conhecer grandes poetisas e exímias narradoras, e cientistas de diversas disciplinas, mas não mulheres filósofas nem mulheres matemáticas.
Em distorções desse tipo fundamentou-se por muito tempo a convicção de que as mulheres não tivessem talento para a pintura, a não ser Rosalba Carriera ou Artemísia Gentileschi, as de sempre. Natural que, enquanto a pintura foi afresco de igrejas, montar num andaime de saias não era coisa decente, nem era ofício de mulher dirigir um ateliê com 30 aprendizes, mas assim que foi possível fazer pintura de cavalete, as mulheres pintoras apareceram. Meio como afirmar que os judeus foram grandes em diversas artes, mas não na pintura, até aparecer Chagall.
Retrato de um homem, de Rosalba Carriera.
É verdade que a cultura judaica era eminentemente auditiva e não visual, e que a divindade não devia ser representada por meio de imagens, mas há uma produção visual de incontestável interesse em muitos manuscritos hebraicos. O problema é que era difícil, nos séculos em que as artes plásticas estavam nas mãos da Igreja, que um judeu fosse estimulado a pintar virgens e crucifixos. Seria como espantar-se por nenhum judeu ter se tornado papa.
As crônicas da Universidade de Bolonha mencionam professoras como Bettisia Gozzadini e Novella d'Andrea, tão bonita, esta, que tinha que dar aula escondida por um véu para não perturbar os estudantes, mas elas não ensinavam filosofia. Nos manuais de filosofia não encontramos mulheres ensinando dialética ou teologia. Heloísa, brilhantíssima e infeliz estudante de Abelardo, teve de se contentar em tornar-se abadessa. 
Hildegarda de Bingen.
Mas a questão das abadessas não deve ser subestimada; a elas se dedicou muitas páginas uma filósofa de nossa época, Maria Teresa Fumagalli. Uma abadessa era uma autoridade espiritual, organizativa e política, e desempenhava funções intelectuais importantes na sociedade medieval. Um bom manual de filosofia tem de enumerar, entre os protagonistas da história do pensamento, grandes místicas como Catarina de Siena, para não falar de Hildegarda de Bingen que, no que tange a visões metafísicas e perspectivas sobre o infinito, até hoje nos dá certo trabalho.    
A objeção de que a mística não é filosofia não se sustenta, porque as histórias da filosofia reservam espaço para grandes místicos como Suso, Tauler ou Eckhart. E dizer que grande parte da mística feminina dava maior destaque ao corpo do que às ideias abstratas seria como dizer que dos manuais de filosofia deve desaparecer, sei lá, Merleau-Ponty.  

3 comentários:

  1. ótima contribuição para uma releitura da história, aos poucos a história das mulheres começa a ser contada!

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  2. Gostei bastante do texto. A participação das mulheres na história tem que ser contada. Hoje mesmo eu estava pensando "todo grande teólogo é homem, cade as mulheres nisso?"
    Só achei que o primeiro quadro dá a ideia de que mulheres são superiores. Temos que lutar pela igualdade e horizontalidade, não pela inversão do poder.

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  3. Chega de só homens criarem a história e contá-la.

    Lindo texto!

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