No século XVII, um homem chamado James Mattock foi expulso da Primeira Igreja de Boston. Seu crime? Não foi usar um linguajar chulo ou sorrir no Sabbath ou qualquer dessas coisas que poderíamos pensar que os puritanos desaprovariam. Em lugar disso, James Mattock recusou-se a fazer sexo com sua mulher durante dois anos. Embora a comunidade de Mattock claramente visse como imprópria sua abstinência, é bem provável que o sofrimento de sua esposa estivesse em jogo quando a igreja decidiu afastá-lo. Os puritanos acreditavam que o desejo sexual era parte normal e natural da vida humana de homens e mulheres (desde que fosse heterossexual e restrito ao casamento), mas que a mulher queria e precisava de sexo muito mais que o homem. Um homem poderia escolher abrir mão de sexo com relativa facilidade, mas seria muito mais difícil para uma mulher ser privada do ato sexual.
Hoje, contudo, a ideia de que homens são mais interessados em sexo que mulheres é tão forte que parece quase não valer a pena falar sobre ela. Seja por causa do nível de hormônios ou pela "natureza humana", homens precisam fazer sexo, masturbar-se e ver pornografia de um jeito que simplesmente não é necessário para as mulheres, de acordo com o senso comum (e se existem mulheres que acham essas atividades todas muito necessárias, provavelmente elas têm algum problema). Mulheres precisam ser convencidas, persuadidas, mesmo forçadas a se 'entregar', porque a perspectiva de sexo não é atrativa por si só - tal é o estereótipo popular. Sexo, para as mulheres, comumente é alguma coisa não muito gostosa mas necessária que se faz para obter aprovação, suporte financeiro ou manter um relacionamento estável. E desde que as mulheres não são escravas de seus desejos como os homens, elas são responsáveis por assegurar que eles não 'se aproveitem' delas.
A ideia de que os homens são naturalmente mais interessados em sexo que as mulheres é ubíqua, razão pela qual é difícil imaginar que as pessoas alguma vez já pensaram diferente e, mais ainda, que o fizeram durante a maior parte da história do Ocidente: da Grécia Antiga ao começo do século XIX, julgou-se que as mulheres eram os demônios pornográficos e loucos por sexo. Em um mito grego antigo, Zeus e Hera discutem sobre quem tem mais prazer no sexo, se homens ou mulheres. Os deuses pedem ao profeta Tirésias, a quem Hera havia transformado certa vez em mulher, que ponha fim ao debate. O profeta responde: "Se o prazer sexual fosse dividido em dez partes, apenas uma pertenceria ao homem, e nove pertenceriam à mulher". Mais tarde, as mulheres seriam consideradas tentações cuja perfídia herdaram de Eva. Sua intensidade sexual era vista como um sinal de moralidade, razão e intelecto inferiores, e justificava estreito controle por parte de maridos e pais. Os homens, que não eram tão consumidos pela luxúria e que tinham capacidade superior de autocontrole, perfaziam o gênero mais naturalmente adequado a manter posições de poder e influência.
No começo do século XX, o médico e psicólogo Havelock Ellis talvez tenha sido o primeiro a documentar a mudança ideológica que tinha se instaurado recentemente. Em um trabalho de 1903, Estudos em Psicologia do Sexo, ele cita uma extensa lista de fontes históricas antigas e modernas que iam da Europa à Grécia (sic), do Oriente Médio à China, todas muito próximas quanto à ideia do desejo sexual feminino dominante. No século XVII, por exemplo, Francisco Plazzonus chegou à conclusão de que o parto muito dificilmente seria valorizado pelas mulheres se o prazer delas no sexo não fosse muito maior que o dos homens. Montaigne, Ellis aponta, considerou as mulheres "incomparavelmente mais aptas e mais ardentes no amor do que os homens, e que essa arte elas sempre conhecem mais a fundo que eles e podem ensiná-los, pois é uma disciplina que nasce em suas veias". Mas nem a época de Ellis havia sido tomada inteiramente pela ideia de que mulheres são desprovidas de desejo sexual. Contemporâneo de Ellis, o ginecologista austríaco Enoch Heinrich Kisch foi longe a ponto de afirmar que "O impulso sexual é tão poderoso nas mulheres que em certos períodos de sua vida essa primitiva força domina toda a sua natureza."
Os tempos estavam claramente mudando, contudo. Em 1891, H. Fehling tentou desbancar a sabedoria popular: "É de todo falsa a ideia de que as moças tenham tão forte o desejo pelo sexo oposto quanto os rapazes... O surgimento de um viés sexual no amor de uma jovem é patológico." Em 1896, Bernhard Windscheid postulou: "Na mulher normal, especialmente a de alta classe social, o instinto sexual é adquirido, não inato; quando é inato ou despertado autonomamente, é uma anormalidade. Como as mulheres não conhecem esse instinto antes do casamento, elas não podem perdê-lo, uma vez que não há ocasião na vida para aprendê-lo."
E então, o que aconteceu?
Obviamente, ideias sobre gênero e sexualidade não são as mesmas em todo lugar, e em cada lugar e tempo há sempre contestação e visões diferentes. A história de como esse estereótipo - de que mulheres têm mais desejo sexual que os homens - foi invertido não é simples de traçar, não se deu de forma regular ou aconteceu de uma vez só. A historiadora Nancy Cott aponta o crescimento do protestantismo evangélico como catalisador dessa mudança, pelo menos na Nova Inglaterra. Ministros protestantes cujas congregações estavam crescendo, compostas agora sobretudo por mulheres brancas de classe média, provavelmente acharam razoável retratar suas fiéis como seres morais que estavam especialmente preparadas para responder ao chamado da religião, em vez de pintá-las como sedutoras indignas, de destino selado no Éden.
As mulheres tanto gostaram desse novo retrato como ajudaram a construí-lo. Era um caminho para um certo nível de igualdade com o homem, e mesmo superioridade. Por meio do evangelho, as mulheres cristãs eram "exaltadas acima da natureza humana, elevadas aos anjos", como diz o livro "A fêmea amiga, ou os deveres das virgens cristãs", de 1809. A ênfase na pureza sexual presente no título do livro revela que, se as mulheres fossem agora os novos símbolos da devoção religiosa protestante, deveriam sacrificar a recognição de seus desejos sexuais. Embora até mesmo os puritanos acreditassem ser perfeitamente aceitável tanto para homens quanto para mulheres desejar o prazer sexual (restrito ao casamento), as mulheres poderiam agora admitir querer sexo com o propósito de estabelecer vínculos com o marido ou para satisfazer seu instinto maternal. De acordo com Cott: "A falta de desejo sexual foi o outro lado da moeda paga, por assim dizer, pelas mulheres, no reconhecimento de sua igualdade moral". (Alyssa Goldstein)
Claramente, não, o que se pode concluir pelo que se conhece da obra e da postura pública de Emicida, que não apresentam traços de apologia ao machismo. Isso pode ser fortalecido pelo texto de sua defesa contra as críticas recebidas, em que se coloca do mesmo lado das feministas (texto aqui). Isso, claro, não exime Emicida de machismo nesta canção, pois ele pode, mesmo sem intenção, ter construído uma canção machista, ou seja, que fortalece e incentiva ações machistas.

O interessante é discutir o primeiro argumento. Pra isso precisamos antes responder se é possível retratar a sociedade (ou ficcionalizar algum aspecto seu) sem "sujar as mãos", ou seja, de forma "isenta", "neutra", sem posicionar-se. Acredito que um "retrato" nunca é bem um retrato: a metáfora é enganadora, já que nem em uma foto se tem isenção de posição, intenção, foco. Uma reprodução "neutra" é uma forma camuflada de reproduzir o modus operandi dominante na sociedade que, sabemos, favorece alguns em detrimento de outros (no caso, o machismo é dominante e favorece homens). Portanto, ou você está fortalecendo o machismo ou o atacando. Ou você está fortalecendo a ordem-conservadora-dominante estabelecida ou está a atacando. Isso nem sempre é fácil de avaliar e distinguir em obras artísticas, principalmente em obras mais complexas (a escritora Hilda Hilst foi, e ainda é, criticada indevidamente por seus textos pornográficos, acusada, por exemplo, de incentivar a pedofilia em "O Caderno Rosa de Lori Lamby").
Emicida parece tentar se apoiar na idéia de que sua canção "Trepadeira" é uma ficção que retrata uma situação comum... tenta fortalecer ainda mais seu argumento quando diz que a história retratada pela "Trepadeira" está equilibrada com o retrato do "Vacilão", feito em outra música, onde um homem é criticado por ter "vacilado" com sua namorada que o abandona, e sofre por isso. Assim teria mostrado os dois lados da moeda. Difícil falar em dois lados, quando um deles, o da mulher, é claramente massacrado. Aliás, se seguirmos o que o próprio Emicida sugere, de narrativas complementares-opostas, teríamos em "Vacilão" o homem-errado ("vacilão"), a mulher-certa; logo, em "Trepadeira", o homem-certo, a mulher-errada ("trepadeira, biscate"), o que reforça a associação machista de que a mulher não deve ser dona do seu corpo, mas submissa. Buenas, se comparamos as letras de "Trepadeira" e "Vacilão" (clique aqui para ler a letra) vemos que apenas em "Trepadeira" aparece a violência contra uma das partes (no caso, contra a mulher). Se Emicida respondesse a isso dizendo que assim é porque assim ocorre na sociedade; que está apenas retratando como um homem e uma mulher reagem a uma situação semelhante, estaria assumindo a idéia furada já abordada acima do "retrato neutro" e, assim, estaria naturalizando a violência contra a mulher. Uma outra possibilidade de resposta é a de que haveria uma crítica embutida à postura do narrador-personagem em "Trepadeira".

bobão-chorão-ciumento que não consegue lidar com uma mulher que faz o que quer com seu corpo. Logo, a canção estaria depreciando figuras como a dele. Acho, claro, uma leitura possível, apesar de pouco provável pela forma como a narrativa é construída... pra mim, entre negativas e positivas, o narrador claramente ganha a parada, há uma empatia criada que leva o ouvinte (homens e mulheres criad@s em uma cultura machista e sem questionamento crítico sobre o tema) a ficar do lado do narrador-personagem e entender como "justa" ou "justificável" a sua intenção de violência contra a mulher ("é, ela merece mesmo uma surra", "biscate"). Logo, pra mim, a música é sim machista e, Emicida, o vacilão da vez. Isso não significa que toda a obra do Emicida seja machista, nem que ele seja um apologista do machismo. Importante acompanharmos como ele reage às críticas apontadas e como isso repercute em sua postura e obra daqui em diante.
Aliás, é importante salientar que, em termos de música machista, Emicida tem razão ao dizer que existem outros importantes e fundamentais alvos que precisam receber a devida crítica: grupos musicais que se constróem fundamentados no machismo e que são impulsionados, justamente por isso, por grandes gravadoras e atingem milhões de pessoas. O fato de haver outros alvos-machistas, talvez maiores e mais importantes na luta feminista, não implica que não se deva criticar o Emicida ou qualquer outro que fizer música machista, seja Lupcínio Rodrigues (em "Braza": "Toda vez que eu chego em casa, desce logo uma explosão/ Ciúme de mim, não acredito!/ Pois meu bem, não é com grito que se prende um coração/ Desculpe a minha pergunta, mas quem tanta asneira junta lhe ensinou a me falar/ Seu professor bem podia ensinar que não devia deste modo me tratar. Isso é um soco, não é nem um tapa..."), seja João Bosco e Aldir Blanc (em "Gol Anulado": "Quando você gritou 'Mengo', no segundo gol do Zico tirei sem pensar o cinto e bati até cansar"). Liberdade poética, lamento informar, tem sim limites (e há tantos outros, limites conservadores e machistas a se quebrar!)

Pra fechar, um poema muito bom que foi publicado no "Feminismo sem demagogia" (clique aqui) em resposta ao poema de defesa que o Emicida vem declamando antes de cantar a música "Trepadeira" em seus shows. No poema, Emicida vai mostrando como defende a mulher em outras canções e como acredita que as mulheres devem ser livres pra serem o que quiserem, inclusive "trepadeiras". Eis aqui a resposta poética e política de uma mulher:
Ouvi teu poema com som de canção
Mas esta melodia não alivia meu coração
Não adianta dizer que disse outrora
Se o que me maltrata é o que cantas agora.
Eu, assim como todas as mulheres, como você diz
Mereço respeito, mereço uma vida feliz
Por que cantastes então censurando nossa liberdade
Vestindo de macho recalcado seu personagem?
Por que cantas que merecemos apanhar ? Me diz?
Por que cantas que merecemos ser envenenadas?
Por que cantas que a mulher livre merece ser depreciada?
Por que cantas se não acredita nesta moral infeliz?
Não me venha com poeminha cheio de demagogia,
Discurso bonito? Qualquer um pode fazer sobre a laje fria.
O homem que nos romanceia, é o mesmo que nos mata,
Queremos respeito, não suas rimas dissimuladas.
Disseste que tens o direito de cantar sobre o quiser…
Cantas! Grite ao mundo todo teu direito de oprimir!
Deslize em suas melodias a opressão contra a mulher,
Só não tente com hipocrisia do que cantas se redimir.
(Texto de Jeff Vasques)
Neste contexto de enormes desigualdades e intensa revolta popular, os governos colombianos (Ayala, Uribe e, agora, Santos) vêm reprimindo duramente qualquer manifestação de pensamento crítico; criminalizando as liberdades de expressão, manifestação e livre organização e reduzindo as FARC a um grupo “narco-terrorista”, ignorando suas reivindicações políticas. Tudo isso com enorme apoio militar dos EUA (Plano Colômbia) que tem interesse geopolítico e econômico na região.
Os números indicam um novo recorde macabro na América: a “democracia” colombiana tem destruído mais vidas que as ditaduras do Chile e da Argentina juntas (as duas mais sangrentas da América!).

Espero que o livro de Angye Gaona inaugure essa comunhão de revoltas!
Jefferson Vasques - Poeta, militante e tradutor deste livro
A fuga
Perde a casa,
salte do leito,
enche os bolsos de fugas,
olha passar pelas janelas
tua conta pendente de paisagens intocadas.
Encontra, de madrugada,
o grito interior do distante;
ou de tarde,
a bola de lodo no peito:
acumulação malsã de famílias enoveladas
que te deram em uso seus nomes,
agora gastos, errantes.
Marcha até o tédio, sangue meu.
Não queiras pisar o povo fértil que te chama a sua memória
só até perder-se mais,
perder-se melhor onde prefiras:
no oceano de graças deslumbrantes e profundas,
no deserto letárgico e eqüidistante de casa,
na montanha fecunda onde se multiplicam os caminhos.
Pisa aqui e ali até agonizar.
Volta a partir quando te tomem por louca
e tentem te enviar de barco a outro porto
ou te tratem como mercadoria que se perde nos bazares
de quem ninguém sabe de onde seu brilho ou avaria.
Entre tanto, estará teu povo fértil
crescendo abundante como terra descansada,
esperando ver florescer tua vara
e teu fazer.
Tecido brando
Calma e tino te digo, peito brando.
Não queiras conter toda a água dos mares.
Toma uns litros de ondas bravas,
de espuma fera.
Deixa que se encrespe dentro de ti,
cavalo afrontado,
mas não domes esta água
que o tempo a requer viva
e pungente.
Respira e prepara-te, peito brando.
Não queiras conter todo o ar dos abismos,
toma só o de tua pequena inspiração,
o acaricie por instantes,
o sussurre como se ao último alento
e o deixe livre ir ali,
onde tu também querias:
vasto, imenso, indistinto.
Sopra forte o que guardas.
Não recolhas mais lágrimas, peito brando.
E se um menino preso chora, dirás,
e se um homem é torturado, dirás.
Que não é tempo de guardar a ira, te digo.
É momento de forjar e fazer luzir
o fio.
Caminho
O caminho entrou pela janela
como um ramo que a tormenta afugenta.
Chovia.
Agudos nomes caíam gravemente,
desde cima entoados,
chamados a rodar pelas calçadas.
As casas se tornaram caminhos
ou foram atravessadas por eles.
A lucidez se apoderou das casas.
Os habitantes buscaram os terraços,
ascenderam e alçaram suas frontes com fervor
para o raio que revelou o caminho,
por um instante.
por Tággidi Ribeiro
As feministas elegeram há certo tempo a heroína Hipácia, que, na Alexandria do século V, era mestre de filosofia platônica e de matemática. Hipácia se tornou um símbolo, mas infelizmente de suas obras restou apenas a lenda, pois se perderam, e perdeu-se a ela também, literalmente partida em pedaços por uma horda de cristãos enfurecidos, segundo alguns historiadores, açulados por aquele Cirilo de Alexandria que, embora não por esse motivo, mais tarde foi santificado. Mas Hipácia seria a única?
Saiu na França um livrinho, Histoire des femmes philosophes (ed. Arléa). Se nos perguntarmos quem seria o autor, Gilles Ménage, descobriremos que vivia no século XVII, era um latinista, preceptor de Madame Sévigné e de Madame de Lafayette e que seu livro, publicado em 1690, intitulava-se Mulierum philosopharum historia. Longe de Hipácia ser a única: embora seja dedicado principalmente à idade clássica, o livro de Ménage apresenta-nos uma série de figuras apaixonantes. Diotima, a Socrática; Arete, a Cirenaica; Nicarete, a Megárica; Hipárquia, a Cínica; Teodora, a Peripatética; Leôncia, a Epicúrea; Temistocleia, a Pitagórica.
Folheando os textos antigos e as obras dos pais da Igreja, Ménage havia encontrado citações de nada menos que 65 filósofas, ainda que entendesse filosofia em sentido bem amplo. Se calcularmos que na sociedade grega a mulher era confinada às paredes domésticas; que os filósofos, antes que com moçoilas, preferiam entreter-se com mancebos; e que, para desfrutar de notoriedade pública a mulher tinha de ser cortesã, compreende-se o esforço que hão de ter feito aquelas pensadoras para se afirmarem.
Aspásia ainda é recordada como cortesã, por mais qualidade que tivesse, esquecendo-se de que era versada em retórica e filosofia e que (Plutarco é testemunha) Sócrates a frequentava com interesse. Fui folhear ao menos três enciclopédias filosóficas atuais, e desses nomes (exceção feita a Hipácia) não encontrei sequer o rastro. Não que não tenham existido mulheres que filosofavam. É que os filósofos preferiram esquecê-las, quem sabe depois de terem se apropriado de suas ideias.
(Revista Entrelivros, fevereiro de 2006)
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Acho que a suposição de Eco bem pode estar certa. |
NASCI ANTES DO TEMPO
Tudo o que criei ou defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por quê?
Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
fulano nasceu antes do tempo.
Guardei.
Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
nasci antes do tempo.
Alguém me retrucou:
você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.

E fecho o "Versos e Subversas" desta semana com uma historinha pessoal: certa vez, em minhas viagens pelo Goiás, sentou-se ao meu lado no ônibus um pedreiro que havia morado em Goiás Velho. Papo vai, papo vem, menciono o nome de Coralina (estava indo visitar sua casa) e ele me diz, pra minha surpresa, que a conhecia, que quando menino vendia cajus pelas ruas e sempre batia à porta de Cora, que fazia doces e compotas com as frutas. Ele me disse, emocionado, que muitas vezes, precisando de dinheiro, levava para Cora bacias com cajus ainda verdes e, Cora, bonita como ela só, sempre sorria e fingia não perceber. Um viva a essa linda e lutadora mulher, Cora Coralina!
Aproveitando o texto da semana passada sobre a luta contra a "dependência afetiva" a que a mulher é """educada""", trago uma música muito interessante do Dylan e que fica ainda mais interessante na voz de Joan Baez (pela qual sou completamente apaixonado, me permitam a declaração).
Joan Chandos Baez nasceu em 9 de janeiro de 1941, em Staten Island, Nova Iorque, Estados Unidos. É considerada uma das maiores cantoras folk do mundo. Ativista, é também considerada uma das pessoas chave do movimento de protesto dos anos 60, ao lado de Bob Dylan, com quem foi "casada". Ambos participaram da marcha ao lado de Martin Luther King em Washington, 1963. Seus grandes sucessos foram compostos por Dylan especialmente para ela, desde 1961. Dona de uma voz poderosa, doce e extremamente afinada, seus sucessos sempre foram voltados para as canções politizadas. Nos anos 60 começou a misturar ritmos e sons latinos ao seu trabalho. Filha de mexicanos, Joan sempre se interessou pela musicalidade dos ritmos folclóricos da América Latina, chegando a participar de concertos e discos com Mercedes Sosa.
NÃO SOU EU, BABY
(Bob Dylan, na voz de Joan Baez)
Vá embora pela minha janela
Vá embora na velocidade que você quiser
Não sou quem você quer, baby
Não sou quem você precisa.
Você diz que está procurando por alguém
Que nunca seja fraco, mas sempre forte
Para proteger e defender você
Sempre que você esteja errada ou certa
Alguém para abrir toda e qualquer porta.
Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.
Vá calmamente do abismo, baby
Vá calmamente pelo chão
Não sou quem você quer, baby
Eu vou sempre te decepcionar.
Você diz que está procurando por alguém
Que prometa nunca partir
Alguém que feche seus próprio olhos por você
Alguém que feche seu coração
Alguém que morra por você e mais.
Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.
Vá fundir-se novamente à noite, baby,
Tudo aqui dentro é feito de pedra.
Não há nada se movendo aqui
E, mesmo assim, eu não estou sozinho.
Você diz que está procurando por alguém
Que vá te segurar cada vez que você cair,
Que vá te dar flores constantemente
E que virá sempre que você chamar,
Um amor pra sua vida e nada mais.
Refrão:
Mas não sou eu, baby
Não, não, não, não sou eu, baby
Não sou eu quem você está procurando.
It Ain’t Me, Babe
(Bob Dylan)
Go ’way from my window
Leave at your own chosen speed
I’m not the one you want, babe
I’m not the one you need
You say you’re lookin’ for someone
Never weak but always strong
To protect you an’ defend you
Whether you are right or wrong
Someone to open each and every door
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe
Go lightly from the ledge, babe
Go lightly on the ground
I’m not the one you want, babe
I will only let you down
You say you’re lookin’ for someone
Who will promise never to part
Someone to close his eyes for you
Someone to close his heart
Someone who will die for you an’ more
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe
Go melt back into the night, babe
Everything inside is made of stone
There’s nothing in here moving
An’ anyway I’m not alone
You say you’re lookin’ for someone
Who’ll pick you up each time you fall
To gather flowers constantly
An’ to come each time you call
A lover for your life an’ nothing more
But it ain’t me, babe
No, no, no, it ain’t me, babe
It ain’t me you’re lookin’ for, babe
(texto e tradução de Jeff Vasques)
Hoje, no Versos e Subversas, faço o cruzamento de poesias de duas grandes intelectuais e artistas (Rosário Castellanos e Idea Vilariño) para discutir um pouco da """educação""" afetiva das mulheres, a construção e imposição de sua dependência emocional e sua vulnerabilidade ao amor fatalista.
MEDITAÇÃO NO UMBRAL
(Rosário Castellanos, México, 1926-1974)
Não, não é a solução
atirar-se debaixo de um trem como a Ana de Tolstoy
nem consumir o arsênico de Madame Bovary
nem aguardar na planície solitária de Ávila a visita
do anjo com a flecha
antes de amarrar o manto à cabeça
e começar a atuar.
Nem concluir as leis geométricas, contando
as vigas da cela de castigo
como o fez Sor Juana. Não é a solução
escrever, enquanto chegam as visitas,
na sala de estar da família Austen
nem fechar-se no ático
de alguma residência da Nova Inglaterra
e sonhar, com a Bíblia dos Dickinson,
debaixo de uma almofada de solteira.
Deve haver outro modo que não se chame
Safoni Mesalina nem María Egipcíaca
nem Madalena nem Clemencia Isaura.
Outro modo de ser humano e livre.
Outro modo de ser.
Neste primeiro poema, Rosário Castellanos busca repetidamente negar a vida de submissão e de condeanação trágica a que estão submetidas as mulheres: seja pela opressão social direta dos homens sobre sua liberdade de ação seja pelas saídas desesperadas a que se lançam as mulheres dominadas por amores fatais. Ela nega as figuras típicas da subjetividade feminina na literatura e também um ou outro caso real, como a de Sor Juana, religiosa católica e poetisa, considerada a primeira feminista das Américas. São meditações que Rosário realiza sobre o destino das mulheres, seu fim, sobre o tipo de vida e morte que, em geral, têm ("meditação no umbral") e dialoga com sua própria experiência concreta: é público seu enorme sofrimento decorrente de suas relações amorosas conflituosas com o "don juan" Ricardo Guerra, que a mal tratava e a traiu diversas vezes. Essa situação conduziu Rosário à depressão, à hospitais psiquiátricos e tentativas de suicídio. É justamente contra este fim trágico, e que parece inevitável às mulheres, que se rebela Rosário.
(Idea Vilariño, Uruguai, 1920-2009)
Hoje que o tempo já passou,
hoje que já passou a vida,
hoje que me rio se penso,
hoje que esqueci aqueles dias,
não sei porque me desperto
algumas noites vazias
ouvindo uma voz que canta
e que, talvez, é a minha.
Quisera morrer — agora— de amor,
para que soubesses
como e quanto te queria,
quisera morrer, quisera… de amor,
para que soubesses…
Algumas noites de paz,
— se é que as há todavia—
passando como sem mim
por essas ruas vazias,
entre a sombra estreita
e um triste odor de glicínias,
escuto uma voz que canta
e que, talvez, é a minha.
Quisera morrer — agora — de amor,
para que soubesses
como e quanto te quería;
quisera morrer, quisera… de amor, para que soubesses…
Idea Vilariño, neste outro poema, expõe a típica imagem do ser "morto de amor" ou que deseja "morrer de amor": a incompletude e o vazio de sua vida sem o homem amado e a anulação de sua subjetividade evidente pelo desejo de morte. Assim como no caso de Rosário, é público o relacionamento conturbado de Idea com o grande escritor uruguai Carlos Onetti... Idea sempre o amou incondicionalmente e por isso sofreu terrivelmente, já que Onetti parecia oscilar em seus interesses com Idea, desenvolvendo um jogo de aproximações e desprezo regular. Idea se questionava por que sempre voltava a Onetti, o "burro, cachorro, besta" a quem dedicou todos seus poemas de amor. Por que o procurava mesmo depois das mais terríveis brigas? Idea, aparentemente, nunca conseguiu dar uma resposta clara a essa pergunta. Ironicamente, foi através de seus poemas de amor que, em geral, retratam seu sofrimento e anulação, que Vilariño se tornou conhecida. Impressionante ver como mesmo a raiva não tem lugar em seus poemas, a não ser uma raiva "fria", que se mostra indiretamente como no poema abaixo no desejo de morte do amante.
TE ESTOU CHAMANDO
(Idea Vilariño, Uruguai, 1920-2009)
Amor
desde a sombra
desde a dor
amor
te estou chamando
desde o poço asfixiante das recordações
sem nada que me sirva nem te espere.
Te estou chamando
amor
como ao destino
como ao sonho
à paz
te estou chamando
com a voz
com o corpo
com a vida
com tudo o que tenho
e que não tenho
com desesperação
com sede
com pranto
como se fosses ar
e eu me afogasse
como se fosses luz
e eu morresse.
Desde uma noite cega
desde o olvido
desde horas fechadas
no solo
sem lágrimas nem amor
te estou chamando
como a morte
amor
como a morte.
Tanto Rosário como Idea foram das maiores intelectuais de seu tempo, mulheres engajadas e lutadoras e que, mesmo assim, enfrentaram enormes conflitos internos, profundas contradições em suas relações afetivas. Isto porque uma sociedade machista as educou (e ainda educa as mulheres) para a dependência afetiva, para a aceitação do amor fatal como modelo, para a anulação de sua subjetividade, para que esta se veja como frágil, incapaz ou pouco capaz de realizar diversas atividades "próprias" dos homens, emocionalmente devotadas a um só grande amor (a um só grande homem) e, portanto, tendendo a estabelecer uma relação com o sexo menos livre. Não é preciso pensar muito pra perceber que isso forja uma mulher com baixa auto-estima, totalmente ou em-grande-medida incapaz de estar sozinha e de fazer escolhas mais livres acerca de seus amores e relacionamentos.
Essa é a contradição profunda que as duas poetas enfrentaram com as armas de que dispunham: sua arte e sua luta concreta para transformar a sociedade. Acredito que ao espelhar em poesia seus sentimentos de submissão ou de amor trágico buscavam, de alguma forma, romper com esse ciclo, seja pelo questionamento direto (como em Rosário, ainda que sem encontrar possibilidades claras de saída), seja pela exposição nua e crua, mas profundamente elaborada, de seu sofrimento (como nos poemas de Idea). Dar palavras a esses sentimentos, transformar a opressão em poesia já é enfrentar a opressão íntima (socialmente construída), é se ver no espelho e permitir que outras também se vejam. E isso não é pouco. Mais do que expor as "fragilidades" de duas poetas, o intuito deste post, pelo contrário, é evidenciar a grandeza de suas lutas, a força de Rosário Castellanos e Idea Vilariño.
A luta feminista é profunda: deve não só enfrentar os casos mais cotidianos (e por isso mesmo terríveis) de violência contra as mulheres, mas também os aprisionamentos mais sutis da afetividade e da sexualidade feminina, libertando não só as mulheres de sua condicionada "fragilidade" e dependência afetiva, mas também auxiliando os homens a se libertarem de seu canalhesco don juanismo.
(Texto e traduções de Jeff Vasques)
Filosofar no feminino
A antiga afirmação filosófica pela qual o homem é capaz de pensar o infinito ao passo que a mulher dá sentido ao finito pode ser lida de diversas maneiras: por exemplo, como o homem não sabe fazer filhos, consola-se com os paradoxos de Zenão. Mas, com base em afirmações do gênero, disseminou-se a ideia de que a História (ao menos até o século XX) nos fez conhecer grandes poetisas e exímias narradoras, e cientistas de diversas disciplinas, mas não mulheres filósofas nem mulheres matemáticas.
Judite decapitando Holofernes, de Artemísia Gentileschi.
Em distorções desse tipo fundamentou-se por muito tempo a convicção de que as mulheres não tivessem talento para a pintura, a não ser Rosalba Carriera ou Artemísia Gentileschi, as de sempre. Natural que, enquanto a pintura foi afresco de igrejas, montar num andaime de saias não era coisa decente, nem era ofício de mulher dirigir um ateliê com 30 aprendizes, mas assim que foi possível fazer pintura de cavalete, as mulheres pintoras apareceram. Meio como afirmar que os judeus foram grandes em diversas artes, mas não na pintura, até aparecer Chagall.
É verdade que a cultura judaica era eminentemente auditiva e não visual, e que a divindade não devia ser representada por meio de imagens, mas há uma produção visual de incontestável interesse em muitos manuscritos hebraicos. O problema é que era difícil, nos séculos em que as artes plásticas estavam nas mãos da Igreja, que um judeu fosse estimulado a pintar virgens e crucifixos. Seria como espantar-se por nenhum judeu ter se tornado papa.
Retrato de um homem, de Rosalba Carriera.
As crônicas da Universidade de Bolonha mencionam professoras como Bettisia Gozzadini e Novella d'Andrea, tão bonita, esta, que tinha que dar aula escondida por um véu para não perturbar os estudantes, mas elas não ensinavam filosofia. Nos manuais de filosofia não encontramos mulheres ensinando dialética ou teologia. Heloísa, brilhantíssima e infeliz estudante de Abelardo, teve de se contentar em tornar-se abadessa.
Mas a questão das abadessas não deve ser subestimada; a elas se dedicou muitas páginas uma filósofa de nossa época, Maria Teresa Fumagalli. Uma abadessa era uma autoridade espiritual, organizativa e política, e desempenhava funções intelectuais importantes na sociedade medieval. Um bom manual de filosofia tem de enumerar, entre os protagonistas da história do pensamento, grandes místicas como Catarina de Siena, para não falar de Hildegarda de Bingen que, no que tange a visões metafísicas e perspectivas sobre o infinito, até hoje nos dá certo trabalho.
Hildegarda de Bingen.
A objeção de que a mística não é filosofia não se sustenta, porque as histórias da filosofia reservam espaço para grandes místicos como Suso, Tauler ou Eckhart. E dizer que grande parte da mística feminina dava maior destaque ao corpo do que às ideias abstratas seria como dizer que dos manuais de filosofia deve desaparecer, sei lá, Merleau-Ponty.