Viajo entre túneis de sono
como un cão vadio à procura
do dono.
Viajo em barcos fastasma
onde o tempo retrocede em busca
da alma.
Viajo consultando arquivos
e a memória ilumina rostos
redivivos.
Viajo procurando portos
e me encontro no país
dos mortos.
CELA – 6
A hora dos
capuzes negros
é a hora mais negra
dos prisioneiros.
Descer às cegas
pelas cascatas
apalpando paredes
adivinhando fissuras
Pisando superfícies
escorregadias
de sangue
e urina.
Às cegas.
CELA - 23
Eis que me retornam
vestes, sapatos,
óculos, relógios.
Bolsa povoada
de lenços, moedas,
inúteis estojos.
Despojada até aos ossos
não sei o que fazer
de meus despojos.
CONTA CORRENTE
Para Wanda Maria
CRÉDITO DÉBITO
O creditado de mim o que dei
não foi muito. foi pouco
Quatro sentidos o que nasce
e uma visão: a si se opondo:
além do visgo meu sim, meu não
do lucro minha sina
além do oco meu sangue aguado
do homem de medo.
além do soco A palavra e a
do mundo. mordaça.
SALDO
só o domado viver.
Mais nada.
LEGADO
Para Laury Maciel
Recuso-me a herança
deste poço vazio
deste lodo legado
em negligências.
Engulo a seco e calo.
Aposto em cada poema
— único engenho
ainda não vencido.
Proponho rubros jogos
olhos atentos
para o imaginário.
Ases de puro ouro
— naipes que guardo
para meu incêndio.
(texto e seleção por Jeff Vasques)
por Thais Torres
A MULHER (A VIDA SE ESVAI, COMPANHEIRA)
(León Chávez Teixeiro, interpretada por Amparo Ochoa)
Abriu os olhos,
pôs um vestido,
e foi devagar pra cozinha.
Estava escuro e sem fazer ruído,
acendeu a estufa e a rotina.
Sentiu o silêncio como um aperto,
tudo começava no café da manhã.
Dobrou a coluna,
soltou um suspiro,
sentiu ridícula a esperança;
ao mais pequeno se lhe ardeu a pança,
rompeu o silêncio,
soltou um choro.
Serviu o esposo,
vestiu os meninos,
trocou as fraldas,
serviu os pães.
Levou seus filhos pra escola;
pensou no cardápio do dia.
Mediu o dinheiro,
comprou verduras.
Contou as cinzas de sua economia.
Esperou na fila por suas tortillas,
carregou Francisco,
olhou a rua.
Por toda parte havia mulheres,
todas compravam e se moviam;
seguiam ilhadas com seus deveres,
lhe recordavam todas à formigas.
Sentiu de repente que eram amigas,
sentiu que todas eram amigas.
Voltou a sua casa, casa alugada,
viu mais amigas desde a entrada.
Deu a Francisco o que brincar,
varreu o chão,
arrumou as camas.
Se viu no espelho,
olhando o branco dos cabelos,
juntou as coisas
pra cozinhar;
cortou as batatas,
as pôs no fogo
e na manteiga as fez chiar.
Agora o cru se transformava,
estava pronto para se almoçar.
A casa inteira com outro aspecto,
de novo ajeitada pra se usar.
Pôs a mesa,
serviu as crianças,
trocous as fraldas,
cortou os pães,
limpou de novo mesa e cozinha,
deu a Mercedes o remédio;
pediu seu turno nos tanques da lavanderia:
bateu vestidos e calças,
olhou ao sol a roupa estendida,
como se ontem já não o fizera.
A mesma esfregação todos os dias,
caminhando de novo o mesmo trecho,
sentiu a vida como prisão,
lhe escapava tudo que havia feito.
Se ia a vida, se ia pelo buraco
como o sebo, no tanque, pelo ralo.
Trocou palavras com suas vizinhas;
houve sorrisos em formação.
Toda a raça em seu beco,
se arrumando enquanto andavam.
Sempre mulheres, cumprindo oficios
que se entretecem sem ter fim.
Serem costureiras, serem cozinheiras,
camareiras e passadeiras;
serem enfermeiras e lavadeiras,
também garçonetes e educadoras.
Muito diligentes faxineiras,
às famílias deixam prontas,
rumo à escola ou para o trabalho
para que possam checar as listas.
Se dava conta de suas vontades
e do cinema sabia nada.
Para eles a vida sempre séria
se afogando na miséria.
Se vai a vida, se esvai pelo buraco
como o sebo, no tanque, pelo ralo.
Foi direto para seu ninho,
sempre pensando passou a roupa.
O que era rasgado deixou cerzido,
tinha um momento para descansar.
Abriu a porta e entrou o marido
também moído de trabalhar.
Pôs a mesa,
serviu a sopa,
para queixar-se não abriu a boca.
Riram juntos e papearam.
Falaram dos filhos e de dinheiro,
das vizinhas, de alguma dor,
dos caminhões e do patrão.
Lavou a louça,
tirou o lixo,
dormiu os meninos,
trocou as fraldas.
Como ar que entra pela fresta,
os dois brincaram com sua ternura.
E então deu a volta na fechadura;
dormiram cedo todos seus males.
Se vai a vida, se esvai pelo buraco
como o sebo, no tanque, pelo ralo.
Se vai, se esvai, companheira,
como o sebo, no tanque, pelo ralo.
(Tradução de Jeff Vasques)
por Tággidi Ribeiro
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Manifestantes reunidos no Largo da Batata. |
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Contra o Estatuto do Nascituro. |
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Eu que sou palhaço... |
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Manifestante no teto do Congresso, em Brasília. |
Começo o post com duas recomendações: visitem a exposição Elles: mulheres artistas na coleção do Centro Pompidou que está no Centro Cultural Banco do Brasil (de 24/05 a 16/07 no Rio de Janeiro. Depois, em São Paulo) e assistam ao filme Elena que está nos cinemas (inclusive nos de Campinas, o que é uma raridade).
Em nenhum momento a exposição passa a ideia de "arte feita por mulheres", como uma espécie de arte de segunda classe, feita por artistas excluídas que precisam desta exposição para sair do anonimato. Eu temia isso quando li a reportagem de capa da revista Bravo deste mês. Felizmente, o tom é a busca por uma linguagem e expressão feminina do que significa o feminino.
O que me chamou atenção é que essa representação é pautada pela violência. Em uma das salas, já não ouvimos mais a frase angustiada da artista que se machuca porque acredita que a arte deve ser bonita, assim como as artistas. Mas a imagem é ainda pior: uma mulher nua, brinca com um bambolê feito de arame, que corta toda sua pele. Assistem à cena 13 bonecos assombrosos que ali estão "em homenagem à Anistia Internacional". A violência está por toda parte e eu não consegui descrever a sensação que envolve toda a exposição. É preciso visitá-la.
Ganhei uma irmã que eu nunca tinha conhecido com tamanha profundidade. Mas logo percebi que não era real, que ela nunca mais iria voltar. Foi um processo de ganhá-la e perdê-la repetidamente, inúmeras vezes. Algo ao mesmo tempo prazeroso e devastador. É como ver a pessoa, querer tocá-la, para no instante seguinte perceber que ela é um fantasma.
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Amém! by PhD Comics |
PARA UM MELHOR AMOR
(Roque Dalton, El Salvador, 1935-1975)
“O sexo é uma categoria política”
Kate Millet
Ninguém discute que o sexo
é uma categoria no universo dos casais:
daí sua ternura e suas ramas selvagens.
Ninguém discute que o sexo
é uma categoria familiar:
daí os filhos,
as noites em comum
e os dias divididos
(ele, buscando o pão nas ruas,
nas oficinas e nas fábricas;
ela, na retaguarda dos ofícios domésticos,
na estratégia e tática da cozinha
que permitam sobreviver à batalha comum
talvez até o fim do mês.)
Ninguém discute que o sexo
é uma categoria econômica:
basta mencionar a prostituição,
as modas,
as seções das revistas que são para ela
ou são para ele.
Onde começa a confusão
é quando uma mulher diz
que o sexo é uma categoria política.
Porque quando uma mulher diz
que o sexo é uma categoria política
pode começar a deixar de ser mulher em si
para converter-se em mulher para si,
constituir a mulher em mulher
a partir de sua humanidade
e não de seu sexo,
saber que o desodorante mágico com sabor de limão
e o sabão que acaricia voluptuosamente sua pele
são fabricados pela mesma empresa que fabrica o napalm
saber que os labores próprios do lar
são os labores próprios da classe social a que pertence esse lar,
que a diferença de sexos
brilha muito melhor na profunda noite amorosa
quando se conhece todos esses segredos
que nos manteriam mascarados e alheios.

Roque Dalton foi um guerrilheiro el salvadorenho, considerado hoje o poeta maior de seu país e um dos maiores e mais inovadores poetas da américa. Foi assassinado por "companheiros" de sua própria organização de luta, pois seu jeito brincalhão, questionador das ortodoxias e fora dos padões os levaram a acreditar que Dalton era um agente da CIA infiltrado. Kate Millet (EUA, 1934), citada na epígrafe do poema, é uma escritora feminista estadunidense. Sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Columbia, é seu livro mais famoso, intitulado Política Sexual. Publicado em 1970, discorre sobre a política patriarcal de controle da sexualidade feminina nos séculos XIX e XX, analisando literatura, pintura e políticas públicas relacionadas ao controle populacional e à definição do papel da mulher nesse período. Publicou diversos outros livros, mas que não foram traduzidos para o português. Você pode baixar o livro "Política Sexual" de Kate Millet clicando aqui
A Maria C., querida leitora e colaboradora aqui do blog, enviou este Guest Post, que não poderia chegar em tempo mais propício, já que ontem, 5 de junho de 2013, o Estatura do Nascituro foi aprovado pela Comissão de Finanças. Maria é advogada e nos traz uma visão técnica sobre o assunto. Leitura fundamental.


Outra muito boa do Estatuto, com base neste mesmo art. 23 é que, se você estiver grávida, e concomitantemente com alguma doença, e deliberadamente fizer algum tratamento para se salvar, mas que puder trazer riscos para a saúde do feto, responderá uma ação penal certamente! Coisa de cidadãos livres e dignos, com direito à saúde! Acho mais fácil prepararem câmaras de gás, porque haja lenha pra tanta mulher.
por Tággidi Ribeiro

Esteja claro que não defendo que passemos a dispensar ao homem o mesmo ódio que dispensamos às mulheres. Imagina! A ideia do feminismo não é rebaixar o homem à mulher (que, sim, ainda é vista como inferior) e sim elevar a mulher ao homem, igualá-los naquilo o mais importante: o estatuto de ser humano. E é justamente aqui que entram as Nicoles e Sabrinas da vida, as que não se dão ao respeito, as putas (e, por extensão, todas as mulheres) - porque é como se elas precisassem (nós precisássemos) de algumas 'qualidades' para alcançar esse estatuto. Elas não são seres humanos a priori (não nos enganemos - não somos).

Mas, pera lá, se elas estão aí para a manutenção do status quo feminino, dentro de uma divisão de classes, do trabalho e da beleza feita por homens e para homens, porque não deveriam ser, todas, alvo? Simples: porque o alvo deve ser a indústria que as produz, e toda a cultura de uso da mulher - o alvo é sempre o patriarcado.
Para fechar a minha explicação, que começou laaaaá em cima: gosto de Nicoles e Sabrinas porque as vejo não como 'as vagabundas que estão atrás de dinheiro fácil', mas como sujeitos contingenciados pela história, como todos nós: por uma história de milênios de opressão da figura feminina (sobretudo dessa figura associada tão instantaneamente ao sexo); por uma história que sempre 'conspurcou' uma determinada parcela de mulheres para que ocupassem 'o pior lugar', o lugar indefensável, o da mulher 'desonrada', o da prostituta; por uma história de vida que eu não sei qual é, que pode ter sido feliz ou triste, mas na qual certamente também encontram-se os encadeamentos que as levaram a ser 'celebridades' e a ser esse tipo específico de celebridade. O simples fato de permitir ao outro uma história o humaniza - e isso mata em mim o ódio que mataria (ainda que apenas verbalmente) o outro.
Por fim, acho que nós mulheres não podemos nos furtar a pensar o quanto a exacerbação da sexualidade nos corpos de Nicoles e Sabrinas irritam a nossa própria sexualidade. O que quero dizer: assim como muitos homens homofóbicos desejam secretamente os corpos de outros homens, na nossa raiva voltada a esses corpos de mulheres não estaria também o nosso desejo?