por Roberta Gregoli
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Feliciano é só a ponta do iceberg |
Não, Marco Feliciano ainda não renunciou à Presidência da Comissão de Direitos Humanos (CDHM) da Câmara. Digo 'ainda' porque o cerco está cada vez mais fechado, com manifestações da sociedade civil, artistas, políticos, ONGs e até funcionárixs da Câmara, e parece só questão de tempo até que Feliciano caia. Ênfase no 'parece', pois, onde se nomeia alguém respondendo a um processo por homofobia para presidir uma comissão de direitos humanos, tudo pode acontecer.
A atuação da sociedade civil tem sido exemplar e demonstra vividamente sua capacidade de organização, apesar do que proclamam xs resignadxs em tom blasé. No entanto, apesar da abundância de informações, é raro encontrar uma análise de maior profundidade sobre o tema. A maioria dos textos batem na já conhecida tecla da incongruência do pastor para o cargo - não que isso deva ser tomado levemente, mas o fato é que, ainda que Feliciano caia, os problemas relacionados à CDHM não estarão resolvidos.
Feliciano é sintoma, não causa. E sintoma não somente dos posicionamentos reacionários e retrógrados de uma parcela da população como também do achatamento da discussão. Como temos observado, centralizar o debate num único indivíduo é um poderoso mecanismo de canalização da ação social, mas é também inevitavelmente reducionista.
A Maíra já começou a questionar os diversos fatores envolvidos e eu quero continuar avançando a discussão para além da demonização de uma única figura, que não passa da ponta de um iceberg sobre o qual muito pouco se fala.
Primeiramente, se Feliciano sair, o prospecto imediato está longe de otimista. A Vice-Presidente da Comissão responde a diversos processos no STF bem como todxs xs outrxs possíveis substitxs. E todxs são do Partido Social Cristão (PSC). Líderes religiosos não representam uma ameaça aos direitos humanos necessariamente, como lembrado pelo próprio Marco Feliciano ao se comparar, num delírio de grandeza, a Martir Luther King Jr. O problema é a sobre-representação de um partido, sobretudo de um partido religioso, se o princípio for o da laicidade do Estado. Como explica Domingos Dutra:
E essenciais na vida da democracia. Nesse sentido, o slogan "Feliciano não me representa" é brilhante porque contesta a validade democrática da eleição pro forma que levou Marco Feliciano à Presidência da Comissão.
Apesar de ter quem diga que a CDHM 'caiu' nas mãos do PSC, ela é uma comissão estratégica para o partido, pois é potencial veículo para mudanças que são difíceis para alguns evangélicos engolir. Além do crescente apoio popular à PEC do casamento igualitário e da recente ampliação dos direitos reprodutivos das mulheres para abranger a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, este mês o Conselho Federal de Medicina, em resolução inédita, apoiou a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. Ainda que caminhemos em direção ao Estado laico com vagar, a bancada evangélica tem lá suas razões para se preocupar.
O que escapa ao sensacionalismo da maioria das notícias sobre o assunto é que os cargos nas comissões da Câmara são concedidos por meio de acordos prévios, ou seja, barganhas políticas. É por isso que existe um fundo de verdade na acusação que Feliciano fez à Veja, dizendo que a renúncia de Domingos Dutra (antecessor do PT na Presidência da CDHM) foi um teatro. Tendo visto o vídeo da renúncia e o histórico de Dutra, é pouco provável que sua comoção tenha sido encenada, mas quando Feliciano declara que "foi um acordo partidário" e "acordo partidário não se quebra nessa Casa", ele tampouco está mentindo.
Feliciano é sintoma, não causa. E sintoma não somente dos posicionamentos reacionários e retrógrados de uma parcela da população como também do achatamento da discussão. Como temos observado, centralizar o debate num único indivíduo é um poderoso mecanismo de canalização da ação social, mas é também inevitavelmente reducionista.
A Maíra já começou a questionar os diversos fatores envolvidos e eu quero continuar avançando a discussão para além da demonização de uma única figura, que não passa da ponta de um iceberg sobre o qual muito pouco se fala.
Primeiramente, se Feliciano sair, o prospecto imediato está longe de otimista. A Vice-Presidente da Comissão responde a diversos processos no STF bem como todxs xs outrxs possíveis substitxs. E todxs são do Partido Social Cristão (PSC). Líderes religiosos não representam uma ameaça aos direitos humanos necessariamente, como lembrado pelo próprio Marco Feliciano ao se comparar, num delírio de grandeza, a Martir Luther King Jr. O problema é a sobre-representação de um partido, sobretudo de um partido religioso, se o princípio for o da laicidade do Estado. Como explica Domingos Dutra:
O PSC, que tem 17 deputados na Câmara, tem oito deputados na comissão, entre titulares e suplentes. O PT, que tem 90 deputados, tem quatro deputados na comissão. Na hora que a comissão é de um só partido acabou a diversidade, acabou a pluralidade, que são essenciais na vida desta comissão.
E essenciais na vida da democracia. Nesse sentido, o slogan "Feliciano não me representa" é brilhante porque contesta a validade democrática da eleição pro forma que levou Marco Feliciano à Presidência da Comissão.
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Veja os dados aqui |
Apesar de ter quem diga que a CDHM 'caiu' nas mãos do PSC, ela é uma comissão estratégica para o partido, pois é potencial veículo para mudanças que são difíceis para alguns evangélicos engolir. Além do crescente apoio popular à PEC do casamento igualitário e da recente ampliação dos direitos reprodutivos das mulheres para abranger a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, este mês o Conselho Federal de Medicina, em resolução inédita, apoiou a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. Ainda que caminhemos em direção ao Estado laico com vagar, a bancada evangélica tem lá suas razões para se preocupar.
O que escapa ao sensacionalismo da maioria das notícias sobre o assunto é que os cargos nas comissões da Câmara são concedidos por meio de acordos prévios, ou seja, barganhas políticas. É por isso que existe um fundo de verdade na acusação que Feliciano fez à Veja, dizendo que a renúncia de Domingos Dutra (antecessor do PT na Presidência da CDHM) foi um teatro. Tendo visto o vídeo da renúncia e o histórico de Dutra, é pouco provável que sua comoção tenha sido encenada, mas quando Feliciano declara que "foi um acordo partidário" e "acordo partidário não se quebra nessa Casa", ele tampouco está mentindo.

É preciso que isso seja enfatizado, até mesmo para cobrar do PMDB a responsabilidade que lhe cabe e exigir prestação de contas: Por que o PMDB abriu mão dessas vagas? Afinal, não fosse essa jogada inicial, não haveria polêmica para início de conversa.
Outro nome que salta aos olhos na lista dos membros da Comissão é o de Jair Bolsonaro, suplente de uma vaga em aberto (se é que isso faz sentido). Então fica claro que o buraco é muito mais embaixo: não só temos um Presidente que é acusado de discurso de ódio contra minorias, mas também um membro que é abertamente a favor do uso de tortura. Uma comissão de direitos humanos composta por homofóbicos, misóginos, racistas e torturadores é muito mais que ironia, é circo tragicômico.
Uma segunda pergunta pertinente é com relação ao PT, que, afinal, estava ocupando a Presidência da CDHM e tem outras iniciativas, como a Comissão da Verdade, intimamente ligadas à questão dos direitos humanos: Por que aceitar a barganha de cargo?
Domingos Dutra responde:
[N]a bancada do PT, o líder escolheu outras comissões que na avaliação do partido, eram mais importantes que a de Direitos Humanos. O PT não quis esta Comissão, o que foi um erro. E as consequências estão aí. Por outro lado, a liderança do PMDB também agiu. O deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi o grande arquiteto desse resultado
[Declaração de Dutra na melhor reportagem que li sobre o assunto]
A renúncia de Domingos Dutra, então, pode ser vista como um ato de repúdio não somente à nomeação de Feliciano e ao fato da votação ter se dado de portas fechadas, mas também ao acordo partidário que desencadeou esse desfecho. Dutra, aliás, está migrando para a Rede de Marina Silva, justamente por não concordar com as alianças do PT no Maranhão.
Com base nessa sucessão de equívocos que resultou no circo que agora vemos, a articulação da sociedade civil tem que se focar numa demanda mais ampla, pela total reformulação da Comissão. A exigência tem que ser a de uma nova composição, excluindo totalmente figuras com histórico contrário à dignidade da pessoa humana, como Feliciano e Bolsonaro, e atentando para a proporcionalidade partidária e de interesses, de maneira que exista representatividade de fato. Aí sim, poderemos chamá-la de democrática.
O poder da sociedade civil está comprovado, mas, para garantir que essa incrível série de manifestações não passe de um modismo passageiro e infecundo, é preciso levar em conta o panorama no qual a CDHM está inserida. Somente a partir de um debate mais profundo será possível engendrar mudanças de real impacto, para que os direitos humanos sejam tratados com a seriedade que merecem, num país que claramente ainda não superou sua recente história de autoritarismo e violência - história da qual a atual Comissão de Direitos Humanos é reprodução e reprodutora.
O poder da sociedade civil está comprovado, mas, para garantir que essa incrível série de manifestações não passe de um modismo passageiro e infecundo, é preciso levar em conta o panorama no qual a CDHM está inserida. Somente a partir de um debate mais profundo será possível engendrar mudanças de real impacto, para que os direitos humanos sejam tratados com a seriedade que merecem, num país que claramente ainda não superou sua recente história de autoritarismo e violência - história da qual a atual Comissão de Direitos Humanos é reprodução e reprodutora.
Agradecimentos à Priscilla Santos pelo debate animado que resultou em importantes contribuições para este texto.
27 de março de 2013
Categorias
ativismo político,
autoritarismo,
política,
Roberta
Pode ir parando tudo aí... É norma constitucional para todos os entes federativos a representação partidária proporcional na formação das comissões (art. 58, 1º, CF). Diz que é "assegurada", então é uma garantia política, que justamente garante a representatividade e o pluralismo, óbvio, óbvio ululante. Entendo que houve barganha e troca de votos e etc. como sempre, mas isso não justifica a desproporção, que isso?! Merecemos uma explicação, e mais que isso, uma urgente reformulação. O problema é tão grave que não foi apenas de ordem material, mas até formal. É muita petulância.
ResponderExcluirComo é bom ter conhecimento técnico: procurei informações sobre as regras e leis referentes à formação de comissões na rede e não encontrei. Obrigada, Maria!
ExcluirCom maiores detalhes está no Regimento interno da Câmara, onde a regra se repete no art. 23, com toda regulamentação. http://www.camara.gov.br/internet/legislacao/regimento_interno/RIpdf/RegInterno.pdf
ResponderExcluirImagine!
Simplesmente o texto mais informativo que li sobre o caso até agora. Parabéns, Rô! Ampliar o debate e o entendimento sobre a questão é mais que necessário para uma ação mais efetiva da sociedade civil.
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