por Maria C.
O Ministério Público
Federal e Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero propuseram Ação Civil
Pública em desfavor de Sony Music Ind. Com. Ltda. e Furacão 2000 Produções
Artísticas Ltda, pela propagação e divulgação das músicas “Tapinha” e “Tapa na
Cara”, cujas letras seriam ofensivas à dignidade feminina, banalizariam a
violência contra as mulheres e causariam dano moral difuso às mesmas, motivo
pela qual pediram sua condenação.
O pedido foi julgado
parcialmente favorável em Juízo de primeiro grau. No dia 12.07.13 o Tribunal da
Justiça da 4ª Região reformou a decisão. No acórdão, um dos desembargadores pediu vista dos autos, e em 24
longas páginas, elaborou voto reformando a sentença de primeiro grau e julgando
favoravelmente às gravadoras.
Em resumo, as razões do
voto consistem: na afirmação de que as músicas são do gênero artístico funk e
pagode, e deste modo, falam de realidades distintas e configuram formas de
expressão populares a serem toleradas;
não há prova de que ouvir a música e/ou sua divulgação aumente a violência e a
agressão contra as mulheres (relação de causa e efeito); o direito de expressão
e à livre iniciativa é garantido constitucionalmente, o qual só pode ser
limitado quando verificado perigo concreto aos outros e à sociedade.
O voto apenas demonstra o
óbvio, a concreta institucionalização do papel da mulher enquanto mero objeto,
a supressão de sua tentativa de voz e a triste constatação de que as
iniciativas tomadas são relegadas ao nível da abstração, dedicando os
operadores do direito a manterem o status
quo do patriarcado e nossas eternas algemas.

De início, é óbvio por
demais que uma música, poema, texto ou qualquer coisa, cujo título seja
“Tapinha” ou “Tapa na cara” e afirme e repita “dói, um tapinha não dói [...] um
tapinha eu vou te dar”, e outra “tapa na cara, se você quiser eu vou te dar” em
que o narrador/locutor é um sujeito masculino o qual se dirige na fala a um
sujeito feminino em sua narrativa, contém em si pressuposta a violência, a
aceitação da violência contra as mulheres, sua banalização mais típica.
Está no título, na letra,
na voz. Nada é implícito. É claro que a letra não diz ‘espancar é legal’, isso
não é socialmente aceitável. Aceitável
é “dar uns tapas pra sua patroa saber quem manda, afinal, ‘um tapinha não dói’;
nem um ‘tapa na cara’ mesmo, em se tratando do ambiente doméstico”.
Note-se que a letra, a
música, precisa sempre ser contextualizada para ser salva de qualquer interpretação agressiva contra as mulheres. Disse
o acórdão: “são discursos de atos de amor”. Ah, nós não havíamos entendido...
Afinal, não há uma linha tênue entre a violência gratuita e cultura do estupro.
Quando se diz que “um
tapinha não dói”, ao se diminuir a palavra, “só um tapinha”, torna-se o discurso
tolerável, quase amável. O discurso quase incute uma confusão entre a agressão
e o carinho (essa é a perspectiva do MPF). De outro lado o ‘tapa na
cara’ é dado se é pedido pelo sujeito feminino. Ora, ela apanha porque quer,
porque pede. O sujeito masculino não tem culpa por bater, a culpa é toda da
vítima, do sujeito feminino na fala da música, que pede, que implora pelo ‘tapa
na cara’. Tudo culpa dela. E olhe que em nossa cultura, o ‘tapa na cara’ é a
maior das violências, é uma verdadeira humilhação.
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O discurso, em seu
ambiente de lazer, de descontração, lhe afirma que o carinho e agressão se
confundem, que a violência contra a mulher é irrefletida; e que não há
problema: não dói na primeira situação e na segunda, é culpa dela. Como não sentir, ao ouvir
as músicas, que elas repercutem, tornando a incutir a ideia eterna de que a
mulher deve ser subjugada, dominada, calada?
Tudo isso dado o contexto
atual da violência doméstica, tão alarmante que gerou a Lei Maria da Penha. No
Brasil a cada 4 minutos uma mulher é vítima de violência doméstica, 70% dos
incidentes ocorrem no lar, sendo o marido/companheiro o agressor habitual; em
40% das vezes há lesões graves; e os gastos sociais resultantes representam
10,5% do PIB nacional. O Governo Federal e a sociedade brasileira têm investido
em marketing a fim de coibir e prevenir a violência de gênero e doméstica e
conscientizar as mulheres de seus direitos.
Se a questão são números o
problema é relevante. Ainda assim entendeu-se que não há problema na divulgação
de músicas que falam de bater em mulheres (porque é uma pancada leve, um tapinha,
um tapa na cara), que esta situação tão cotidiana não fere a dignidade humana
feminina, ainda que o ordenamento jurídico tenha criado a Lei Maria da Penha,
em reconhecimento histórico da violência sofrida pelas mulheres e da extrema
necessidade de seu combate.
Infelizmente é um discurso
que se repete em todas as mídias: está instituído há muito tempo e estamos
tentando derrubá-lo com pouquíssimas e pequeníssimas vitórias há poucas dezenas
de anos.
A negativa no julgamento
joga na nossa cara essas obviedades insuportáveis. Juridicamente, até a década
de 1950, as mulheres nem eram consideradas plenamente capazes, sempre sob a
tutela do pai ou do marido. E estamos falando da questão formal, imagine na
realidade, que é sempre mais crua e cruel.
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Banalização? Imagina. |
A verdade é que a
liberdade ainda não chegou para nós. Estamos sendo utópicas em sonhar com
igualdade. Nossa sociedade verdadeiramente não nos reconhece como sujeitos de
direitos, pessoas dotadas de ideais (e ideias), sujeitos investidos de
princípios.
Somos consideradas em
maior grau objetos de direitos, e é por isso que se permite que ideias e
imagens de domínio sobre nossas vidas e nossos corpos se propaguem como sendo normais, cotidianas, ordinárias, comuns, parte da realidade brasileira, de nossa
expressão cultural. Não são. Não para os objetos de dominação.
A liberdade de expressão e
de livre iniciativa das gravadoras foi preservada, sob os ideais da
Constituição. Mas a dignidade humana feminina, concretamente, foi ignorada.
Queremos não apenas ser
declaradas livres e iguais numa lei escrita, mas queremos ser reconhecidas efetivamente como sujeitos
de direitos. Diferente de uma cadeira, não somos objetos.
25 de julho de 2013
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Maria C.,
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Qual era exatamente o objeto da ação civil pública? O que se pedia?
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