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Julian Assange e a cultura do estupro


por Roberta Gregoli

Há algumas semanas, Julian Assange, fundador da Wikileaks, voltou ao holofote da mídia por procurar asilo político na Embaixada do Equador em Londres, numa tentativa desesperada de evitar a extradição para a Suécia, onde é acusado de estupro. A figura de Assange é muito sedutora por encarnar ideais nobres como a liberdade de expressão e dar asas à imaginação dos mais dados a sentimentos anti-americanos e a teorias da conspiração. Mas, para falar sobre as acusações da Suécia, temos que deixar tudo isso de lado. Essas acusações nada tem a ver com a persona pública de Assange, o que ele significa ou seus méritos e desméritos políticos. 

Muito se fala do que estaria por trás dessas acusações, incluindo a suposta participação da CIA em planos secretos de extraditá-lo para os Estados Unidos. Um assunto sobre o qual menos se fala é o crime em questão: estupro. E isso tem a ver com a cultura do estupro (algo começamos a discutir um pouco na semana passada) e o caso de Assange é realmente emblemático.

A primeira reação que ouço com relação a esse caso é o desmerecimento do crime. Como se estupro fosse um delitozinho qualquer que alguém tira da manga quando quer derrubar uma pessoa importante. Ou uma tentativa desesperada de alguma vadia (porque, como já vimos, culpar a mulher é lugar comum) de chamar atenção. Vale lembrar, então, que Assange foi acusado por duas mulheres diferentes, cujos nomes não foram divulgados e hoje vivem escondidas

Daí vem o Presidente do Equador fazer um grande desfavor ao continente e dizer que, na América Latina, o que Assange fez não seria considerado crime. Essa fala me incomodou profundamente porque reforça - e oficializa - a banalização do estupro entre os latino-americanos, mas, na verdade, é um posicionamento comum com relação ao caso. O deputado britânico George Galloway disse que se trata meramente de um caso de "falta de etiqueta sexual" (veja aqui em português) e um dos mitos correntes relacionados ao caso é que as acusações não constituiriam crime na lei britânica. Ou seja, mude o país, mude o oficial, o denominador comum é o desmerecimento da violência sexual.

Este artigo fornece os detalhes das acusações contra Assange e aí fica claro o que esses oficiais custam a entender: a violência sexual, como diz a Lola, não se trata apenas de sexo à força num beco escuro, com muita violência. Acordar com um homem fazendo sexo com você, como declara uma das vítimas - mesmo que você tenha dado para ele na noite anterior -, é, sim, estupro. Ter um cara sem roupa se esfregando contra você contra a sua vontade, como declara a outra vítima, também é violência sexual. 


Não é à toa que o processo está sendo movido na Suécia, um dos países de maior igualdade de gênero no mundo. Não que isso queira dizer que eles "procurem pelo em ovo" ou "façam tempestade em copo d'água", mas sim que essas mulheres foram levadas a sério, enquanto em muitos outros lugares (pelo como podemos supôr com base nas falas dos oficiais do Equador e do Reino Unido) elas teriam sido desmerecidas, ridicularizadas e, provavelmente, as queixas nunca teria sido levadas adiante.

O ponto em questão não é os feitos políticos de Assange nem perseguição política, e sim estupro. Ninguém está pedindo que Assange seja punido, extraditado para os Estados Unidos ou que responda por outros crimes, apenas que seja julgado por estas acusações específicas. Assange tem os melhores advogados e teve mais oportunidades de recorrer ao mandato judicial de sua prisão (incluindo um processo que chegou até a Suprema Corte) do que qualquer outro réu na história britânica. E como diz esta ótima crítica, não podemos nos esquecer que as vítimas de violência sexual também têm direitos. Não é chegada a hora de Assange responder pelas acusações contra ele?

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Stand-up comedy ou Stand up for your rights?


por Mazu

Eu pessoalmente não gosto de stand-up, com preconceito ou sem, com pimenta ou com sal, não gosto. É pessoal. Contudo, divido minha vida com alguém que gosta e acabei assistindo um desses shows na TV. A gente já falou muito de humor aqui mesmo assim, fiquei pensando numa outra coisa. O que significa transformar coisa grave que acontece no cotidiano em piada? Tipo política, problema social, discriminação e preconceito, como isso tudo vira piada?

No caso em especial, o humorista encenava um trombadinha assaltando em inglês no Rio, isso porque as Olimpíadas estão chegando e todo mundo lá está aprendendo pelo menos um pouquinho do idioma para receber os turistas. Ele dizia como uma voz que imitava a de uma criança: gimme your wallet, you lose, playboy. E a platéia morria de rir.

O riso pode ser uma espécie de catarse, segundo alguns especialistas, alguma coisa incomoda e aí alguém fala e demonstra que sente também e o riso vem, meio que de alívio, tipo no caso da pergunta da Tia feita pela adolescente no Programa Livre. E aí, você pode usar a piada para dizer o que você sente e expressar realmente sua visão sobre alguém, tipo na parte em que o mentiroso diz o que ele acha realmente do seu chefe.

Mas, no caso da piada do trombadinha é um pouco mais grave. Acho que demonstra certo conformismo - aquilo do que se ri, uma criança assaltando alguém, assim como a mulher que apanha, ou os políticos corruptos, é parte da nossa vida. E, aparentemente, a gente está de boa com isso. A gente faz piada e ri para não chorar, sei lá. 

Aí, eu tive uma ideia meio Loyola Brandão de criar uma stand-up ao contrário, imagina só uma mulher espancada fazendo piada sobre a vida, ou uma criança agredida e abandonada ou um paciente terminal de câncer:

Oi, sou fulana. Uma coisa que vocês devem saber a meu respeito é que eu apanho todo dia do meu marido. O pior dia é segunda, agora eu gosto mesmo é de quarta, porque é dia de futebol e ele se esquece de mim.

Acho que causaria desconforto né? Eu espero. Mas e se fosse na terceira pessoa, imagina uns dos Rafas Bestas da vida dizendo:

Mulher de malandro gosta mesmo é de quarta-feira, que quarta tem futebol e aí ela não apanha.

Acho que é isso a chave para o riso, não é com você, não é de verdade, aí pode rir. Mas olha, se para haver riso precisa haver identificação (por isso que dominar outro idioma não significa entender piadas de outras culturas), se a gente ri, a gente se identifica.

Eu já fui assaltada por uma criança no Braz em São Paulo, foi uma das coisas mais tristes que me aconteceu. Já me passaram a mão no metrô, que também foi uma das piores coisas que me aconteceu. Eu queria mesmo que falar isso sério não causasse desconforto e sim debate, ação e mudança! E que falar disso brincando não fosse essa catarse besta, fosse só o que é mesmo, piada ruim, sem graça.
Ele é um comediante brilhante no quesito não fazer rir

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Femen Brazil e os perigos da incoerência


por Barbara Falleiros

"Sei que não vou ficar nessa posição de organizadora do Femen para sempre. Eu quero ter meu marido, minha família, minha carreira..."

É assim que Sara Winter responde à pergunta de Marília Gabriela sobre como imagina seu futuro: deixando o ativismo direto para cumprir um papel convencional no núcleo familiar. É bem verdade que ela espera continuar trabalhando nos bastidores da organização. Ou então, gostaria de ser correspondente em áreas de conflito, já que "gosta de tiros, essas coisas"! ...E você, o que gostaria de ser quando crescer?

Nascido na Ucrânia, o grupo Femen tem conseguido grande destaque na mídia por conta de suas ações diretas, nas quais as integrantes manifestam com os seios à mostra, usando coroas de flores na cabeça e carregando cartazes com mensagens de protesto. A nudez é reivindicada como forma de provocação e como afirmação do controle sobre o próprio corpo, mas também como estratégia para que as ativistas sejam ouvidas - ou, ao menos, vistas...

E porque loira pelada de fato dá ibope, eis que Sara Winter, primeira integrante e porta-voz do recém-fundado Femen Brazil, passa a aparecer aqui e ali na televisão, no jornal, dando entrevistas. E a gente vê, com aquela dor no coração, que as "neofeministas" saíram no Fantástico e na Veja. Dor no coração porque é difícil enxergar a mensagem, o discurso da representante brasileira é raso, confuso, imaturo. E, num caso como este, a falta de clareza é uma porta aberta a deturpações de todo tipo.

Então o pessoal, que já vai ficando desconfiado, começa a cavar na internet o passado da tal Sara Winter. À cruz de ferro que ela tem tatuada no peito - junto à qual está o desenho de uma cereja, "para deixar mais feminino", segundo ela - soma-se o seu envolvimento com grupos e bandas skinheads, o seu pseudônimo que coincide com o nome de uma nazista inglesa, sua antiga admiração por Plínio Salgado, suas críticas à nudez das meninas da Marcha das Vadias... A interessada ora desmente, ora joga a carta do "erro de juventude", "as pessoas têm o direito de mudar de opinião". Claro que sim! Mas então é preciso ser capaz de elaborar e adotar um posicionamento ideológico coerente.

Os que já têm uma preferência pelas teorias da conspiração passam a desconfiar do movimento como um todo, da suposta xenofobia das ucranianas e de seu anti-islamismo exacerbado. Não sei ainda o que dizer sobre isso. De início, não consegui ver Sara como uma neonazista sagaz disfarçada de neofeminista para distorcer as reinvidicações históricas. Para mim, ela estava mais para uma garota perdida, deslumbrada com a causa da vez. Só não podemos esquecer que os perdidos também são potencialmente perigosos.

O processo de recrutamento do Femen Brazil é, diga-se de passagem, muito duvidoso. Grupo hierarquizado, liderança, processo seletivo com foto de topless e ritual de iniciação. O fato de Sara referir-se às integrantes como soldados ("Nós somos soldados, lutadoras" - na entrevista à Marília Gabriela) é um indício ainda maior do tipo de ideologia que parece orientar sua luta. Depois das críticas por ter qualificado o movimento de apolítico, o que é uma contradição em termos, o Femen Brazil passou a definir-se como apartidário. Mas as imprecisões permanecem, na página Facebook do grupo, onde lemos: “O Femen Brazil busca combater formas de tratamento desigual independente do sistema ou posicionamento político envolvido”. 

Marília Gabriela e a pele de pêssego de Sara Winter
Concordo com a Lola, de pouco adianta crucificar uma jovem de 20 anos. Mas o fato é que as inconsistências são flagrantes e que, mesmo se formos muito condescendentes, é no mínimo um profundo desrespeito aos combates feministas cavar um espaço na mídia sem ter grande coisa a dizer, ou pior, pra dizer bobagem. Está certo que este tipo de mídia consegue por si mesma estragar qualquer discussão – e é este seu objetivo. Você escuta a Marília Gabriela dizer que Sara não fez feio na Ucrânia porque também é linda e que tem uma pele ótima, e a primeira reação é procurar uma janela por onde se jogar. E quando Sara elogia a genética ucraniana que faz homens e mulheres “tão lindos que dá até raiva”, você se diz que, meu deus, no fim das contas a ideologia ariana está bem ali.

No final da entrevista, Gabi faz aquele jogo rápido, em que se deve responder com a primeira palavra que vem à cabeça:
Corpo de mulher? Sara responde: “Beleza”
Corpo de homem? Ela diz, depois de hesitar:  “Força”
A persistência dos estereóripos sexistas: forte como o papai, bonita como a mamãe!

Preciso dizer mais?
 
Uma última observação apenas. Se enfatizei aqui os deslizes da representante brasileira do movimento, as contradições parecem manifestar-se também do lado ucraniano. A revista Veja publicou uma entrevista com a ativista Inna Shevchenko. É claro que nunca saberemos o que Inna disse de fato, mas o que se lê nas entrelinhas das respostas publicadas é um discurso em conformidade com a ideologia que deveria combater.
«Sempre dizem que o movimento é apenas para mulheres jovens, bonitas e loiras. Como se nenhuma outra garota pudesse participar. Isso é uma visão errada, porque cada mulher que faz topless por algo em que acredita fica bonita »

O que me causa estranhamento nesta resposta é o fato de assumir-se que a legitimidade feminina deva passar pela beleza: através do seu engajamento, até as feias ficam bonitas. O comentário diz respeito à beleza física. Mas porque diabos é necessário que a mulher fique, de uma forma ou de outra, bonita? Por que a beleza é um critério definidor?


Suponhamos que Inna não quisesse dizer isso e que o jornalista da Veja tenha feito uma edição tendenciosa, ou que minha leitura seja equivocada. Mas aí você entra na lojinha virtual do movimento e descobre que elas vendem por 70 dólares quadros carimbados com os seios – seios que procuram “dessexualizar” – e que você pode pedir sua obra “autografada”. Como assim?


"You can order a personal stamp breast activist with an autograph"
Achei estranho. Alguém me explica?

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Uma teoria do estupro


por Tággidi Ribeiro

Pode ser constrangedor admitir isso, mas tendemos a julgar que o estupro é natural, ou seja, nasceu com a nossa espécie, e hoje só é reprimido porque, até que enfim, o homem evoluiu. A imagem símbolo desse pensamento é a do homem coberto por peles segurando o tacape que usou para abater a mulher que agora ele arrasta pelos cabelos. Desde sempre, portanto, nos diz essa imagem, teria o homem usado da força para conseguir uma mulher, para conseguir copular. Qualquer dancinha de acasalamento devia ser o suprassumo do romantismo nessa época.

Pois bem, há várias pesquisas que apontam para essa ideia - os homens seriam mais violentos e mais libidinosos que as mulheres, sobretudo por produzir de 20 a 30 vezes mais testosterona que elas. Diz-se também que a natureza dos homens não seria "boa", como a dos macacos (seus parentes mais próximos), mas cruel, sanguinária, egoísta e superssexualizada. Também, desde que temos registros escritos, a mulher foi considerada pelo homem sua propriedade, o que faz alguns cientistas afirmarem que sempre foi assim.

Bem, eu suponho que o estupro seja ancestral (natural, portanto), tendo acontecido em algum 'ponto' da evolução - assim como a violência e o prazer sexual; assim como o carinho e o afeto. Para mim, porém, é praticamente impossível admitir a hipótese de que o estupro tenha sido prática corrente, indispensável para a cópula, dentro de um bando de hominídeos que, assim como o restante dos animais, precisava sobreviver. Não há registro de cópula, pelo menos entre mamíferos, que se dê através de violência. Se machos e fêmeas estão no cio, eles copulam - simples assim. Por que razão na espécie humana seria diferente?

Eu tendo a pensar que nessa resposta entraria a falácia de que mulheres tem bem menos desejo sexual que homens. Para conseguir sexo, portanto, seria necessária a violência. Mas se estamos falando de cópula e não de sexo, o grande argumento masculino para a naturalização da violência sexual perde o sentido, já que, como todos os outros mamíferos, quereriam as fêmeas acasalar para poder preservar a espécie. Por outro lado, sabemos que, fora o fato de que desejo sexual varia de pessoa para pessoa, o desejo nas mulheres na verdade foi reprimido durante milênios. Não podemos usar o comportamento de nossas mulheres atavicamente culpadas para explicar o comportamento da fêmea ancestral, sobre a qual não recaiu a mão pesada da religião. Pode muito bem ser que esta fêmea, assim como as fêmeas bonobo, evolutivamente próximas de nós, estivesse disposta ao ato sexual sem fim de reprodução.

Por que, então, teriam os homens começado a estuprar mulheres, num cenário em que provavelmente tanto a cópula quanto o sexo eram consentidos? Creio que, novamente, o mundo animal pode nos dar alguma chave elucidativa. Estupros, sobretudo cometidos por mamíferos não humanos, são raridade, mas existem. Na natureza, parecem nunca estar associados a prazer sexual; em apenas uma espécie de inseto, está associado à cópula e, no geral, os estupros estão associados a domínio de território (caso haja guerra ou disputa) e à manutenção do poder. Portanto, a tese de Susan Brownmiller, de que estupro tem relação com poder e não com sexo, parece se verificar inclusive na natureza. 

Por fim, minha hipótese é a de que o estupro passa a ser sistematizado somente quando os nossos ancestrais formam o sentido da propriedade, associado à ideia de inferioridade da mulher. Mas ainda aqui, creio, os estupros eram praticados nas guerras, nunca dentro da tribo. O estupro generalizado contemporâneo é fruto da demonização do sexo e da cisão da mulher em santa e puta - portanto, é fruto das principais religiões do nosso mundo. Ao demonizar o sexo, a santificação da mulher se dá por sua 'pureza', a virgindade passa a ser seu grande valor. Se um homem estupra a virgem, ela perde aquilo que lhe é mais valioso. Por outro lado, o homem sente desejo sexual pela mulher - é ela que o leva à tentação, à perdição. Por isso, é culpada de seu próprio estupro. E se a mulher não é mais virgem, não tem valor (é uma puta), sendo portanto lícito estuprá-la.

O estupro, tal qual o conhecemos hoje, é o crime mais antinatural que cometemos. A imagem do homem com o tacape arrastando 'sua' mulher é invenção contemporânea que tenta naturalizar a violência sexual para homens sem deus. Mas os deuses criados pelos homens são ainda quem manda nos estupros pelo mundo afora, por terem deixado tão entranhada a ideia de que a mulher é propriedade do marido e de que vale pela sua pureza sexual. Se nos podemos comparar com outros animais (sobretudo primatas) para inferir nosso comportamento sexual pré-histórico, devemos tomar a violência sexual como rara e relacionada à disputa de poder. Se não nos podemos comparar com os demais bichos, então só podemos teorizar sobre o que conhecemos de nossa história, e aí o lugar da mulher, dado milenarmente pela religião no arquétipo da Eva traiçoeira e responsável pela danação do homem, vai nortear nossa visão sobre a violência perpetrada por homens contra mulheres.

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Misoginia


por Roberta Gregoli

A ignorância inflamada pelo medo é igual a ódio
É muito difícil falar sobre misoginia sem correr o risco de ser interpretada como reprodutora de um discurso de vitimização, mas resolvi escrever mesmo assim por dois motivos: primeiro pela quantidade de amig@s, inclusive pessoas com alto nível de escolarização, que simplesmente não conhecem a palavra. Segundo porque esta semana recebemos nosso primeiro comentário abertamente ofensivo (já devidamente apagado). Até então havíamos recebido alguns comentários de crítica, que mantivemos publicados porque acreditamos no debate aberto desde que construtivo, o que não foi o caso do comentário referido, que era puramente agressivo e sem a possibilidade de qualquer debate.

Vamos, então, acertar nossos termos: misoginia é o ódio às mulheres. Simples assim. Dependendo da sua formação, pode parecer estranho que alguém possa simplesmente odiar mulheres, assim, de maneira genérica e sem mais. Eu mesma não entendo crimes de ódio, me parece uma coisa absolutamente alienígena. Mas, infelizmente, isso não quer dizer que eles não existam. Veja, por exemplo, os mascus sanctos e suas ameaças macabras e violentas

E há um claro componente de ódio nos casos de violência contra as mulheres, para além do machismo, que, por ser uma teoria de inferioridade, é o que permite que um homem se sinta no direito de agredir uma mulher, como se ela fosse de sua posse. Já escrevi sobre "humor" machista e, das categorias que criei, a terceira tem um claro elemento de misoginia também. Veja a ilustração dada pela imagem ao lado.

Gosto muito da figura no começo deste post porque ela contém os elementos básicos do ódio: o medo e a ignorância. Acredito de verdade que o medo seja o principal combustível para qualquer manifestação de ódio. Os motivos do medo podem ser os mais diversos: questões pessoais (os mascus que se dizem mal amados), sentimento de ameaça por ter os privilégios questionados e até medos inconscientes que eu deixo para Freud explicar.

O fato é que houve um estudo fascinante feito na Universidade de Georgia relacionando homofobia e desejo homossexual. Traduzo aqui o resumo:

Está a homofobia relacionada com excitação homossexual?
 Henry E. Adams, Lester W. Wright, Jr., and Bethany A. Lohr
Universidade da Georgia, EUA

@s autor@s investigaram o papel da excitação homossexual em homens exclusivamente heterossexuais que admitiram afeto negativo com relação a indivíduos homossexuais. Os participantes consistiram de dois grupos: um de homens homofóbicos (n = 35) e um de homens não-homofóbicos (n = 29), divididos com base no resultado apresentado por eles no Índice de Homofobia (W. W. Hudson & W. A. Ricketts, 1980). Ambos os grupos foram então expostos a estímulos eróticos de conteúdo sexual explícito através de vídeos heterossexuais, homossexuais masculinos e lésbicos, e a circunferência peniana dos sujeitos foi monitorada. Eles também completaram o Questionário de Agressividade (A. H. Buss & M. Perry, 1992). Ambos os grupos apresentaram aumento na circunferência peniana em resposta aos vídeos heterossexuais e homossexuais femininos. Apenas os homens homofóbicos apresentaram ereção em resposta ao estímulo homossexual masculino. Os grupos não divergiram em relação à agressividade. A homofobia está aparentemente associada à excitação homossexual, a qual o indivíduo homofóbico nega ou não está ciente.

Não é preciso dizer mais nada. Só fica a pergunta: e os misóginos, têm medo de que?

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História da Maria da Penha - Sobre a coragem e a força


por Mazu

Com esse negócio de agressor ter de pagar benefício previdenciário da mulher agredida, o que foi - além de super legal - uma iniciativa conjunto do Ministério da Previdência e da Secretaria de Políticas para Mulheres, a Sra. Maria da Penha esteve muito por aqui (na Esplanada) esses dias. E nesse agito todo eu fiquei sabendo muita coisa sobre ela que eu não sabia, vou dividir com vocês, um pouco da história dela que está na Wikipédia, por sinal:

Maria da Penha Maia Fernandes (Fortaleza, Ceará, 1945) é uma biofarmacêutica brasileira que lutou para que seu agressor viesse a ser condenado. Com 67 anos e três filhas, hoje ela é líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres, vítima emblemática da violência doméstica.
Em 7 de agosto de 2006, foi sancionada pelo presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva a Lei Maria da Penha, na qual há aumento no rigor das punições às agressões contra a mulher, quando ocorridas no ambiente doméstico ou familiar.
Em 1983, seu marido, o professor colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, tentou matá-la duas vezes. Na primeira vez atirou simulando um assalto, e na segunda tentou eletrocutá-la. Por conta das agressões sofridas, Penha ficou paraplégica. Nove anos depois, seu agressor foi condenado a oito anos de prisão. Por meio de recursos jurídicos, ficou preso por dois anos. Solto em 2002, hoje está livre.
O episódio chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e foi considerado, pela primeira vez na história, um crime de violência doméstica. Hoje, Penha é coordenadora de estudos da Associação de Estudos, Pesquisas e Publicações da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (APAVV), no Ceará. Ela esteve presente à cerimônia da sanção da lei brasileira que leva seu nome, junto aos demais ministros e representantes do movimento feminista.
A nova lei reconhece a gravidade dos casos de violência doméstica e retira dos juizados especiais criminais (que julgam crimes de menor potencial ofensivo) a competência para julgá-los. Em artigo publicado em 2003, a advogada Carmem Campos apontava os vários déficits desta prática jurídica, que, na maioria dos casos, gerava arquivamento massivo dos processos, insatisfação das vítimas e banalização da violência doméstica.

Cartilha explica os direitos previdenciários
das mulheres vítimas de violência
É uma história phoda né? Eu realmente não consigo usar outro termo. Na semana passada, em que a lei Maria da Penha fez seis anos, muito eventos aconteceram, muitos números foram publicados. Um desses eventos foi o lançamento da Cartilha do INSS sobre a violência doméstica e seu impacto no sistema previdenciário. Durante a solenidade do lançamento, um grupo de teatro formado por policiais civis aqui do DF apresentaram uma peça sobre violência doméstica  “Bye bye Baby e outras mulheres”, dirigida por Lívia Fernandez, que retrata a história da relação conflituosa do casal Baby e Arlindo. Ela tenta manter o casamento mesmo sofrendo ameaças e ofensas do marido (Roberto Homem). As colegas que foram ao evento e assistiram à peça disseram que a angústia no rosto da Maria da Penha durante a apresentação era visível. Não é para menos.

Uma das coisas mais notáveis na peça, contudo, é o final: depois de encenar as agressões sofridas por uma mulher, a peça termina de um jeito muito peculiar. Os atores interrompem a peça e chamam alguém da platéia para fazer o papel da agredida e dar um final para a história.

Por que isso é tão digno de nota? Perceba, um dos grandes problemas na aplicação da lei (o que gerou até uma modificação nos requisitos de queixa e denúncia recentemente) é o fato de as mulheres desistirem de prosseguir com a queixa. É super fácil dizer o que é o certo e o que deve ser feito quando não é com você. Mas, o que você faria, até onde iria nossa coragem se o problema fosse real, acontecesse conosco. Dizer que denunciaria, que bateria de volta, que terminaria o relacionamento, todo mundo diz, dizer é super fácil.

Tenho uma colega de trabalho, com a mesma idade que eu, 30, mesma formação, mesmo estilo, tatuada, contemporânea, leitora de livros legais, "ouvidora" de música massa. Essa colega teve uns problemas no relacionamento e resolveu pedir um tempo pro cara. Acordou com o então marido com uma faca na garganta dela, no meio da madrugada. Essa moça quase que não denuncia, mas denunciou. Dia desses me contou que de cansaço, desânimo, tristeza desistiu da queixa e manteve só as medidas protetivas.

Depois dessa história e tantas outras que a gente ouve, eu fiz as contas, muitas mulheres são e foram agredidas, mas a gente tem poucas Marias da Penha por aí.

O quanto de coragem ela precisou e de onde a coragem veio para ela? Queria prestar essa homenagem porque essa coragem da Maria Penha mudou tanta coisa para as mulheres agredidas no Brasil e acho que posso dizer que teve repercussão internacional.

Por outro lado, quando a coragem falta, o quanto nossos direitos ficam estagnados e são esquecidos.

O presidente do INSS, Mauro Hauschild, o ministro da Previdência, Garibaldi Alves Filho, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, a fundadora do Instituto Maria da Penha, Maria da Penha Maia Fernandes, a vice-presidente do Instituto Maria da Penha, Regina Célia Almeida Silva Barbosa e o procurador do INSS, Alessandro Stefanutto. Foto: Nicolas Gomes

Lênin, em 1901, escreveu uma coisa muito legal sobre ideologia e espontaneidade. Ele disse que tudo que não servia a ideologia socialista, servia à ideologia burguesa e que esperar um despertar espontâneo do proletariado era problemático porque isso significava permitir a subordinação, a escravização dos operários pela burguesia. Dando um passo bem largo na analogia, a gente pode aplicar isso para o machismo e toda forma de opressão. Na nossa sociedade não fazer nada, não dizer nada sobre o machismo é trabalhar em favor dele. Uma mulher oprimida, ou qualquer oprimid@, tem uma dificuldade bem maior e óbvia de se colocar, se defender. A gente também não pode contar que os opressores tenham crises súbitas de consciência.

E é por essas e por outras que a coragem das mulheres que reagem e reagiram deve ser celebrada e servir de exemplo.


Então é isso, companheirada, coragem! Quando a gente fica quieta ou finge que não vê a gente perde muito no regresso, no esquecimento, nesse machismo contemporâneo maquiado que se alimenta do nosso silêncio.

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A Islândia e a crise: a hora das mulheres?


por Barbara Falleiros
 
Quando li, aos 10 anos, a Viagem ao centro da Terra de Júlio Verne, a Islândia tornou-se para mim a terra misteriosa por excelência. Eu a imaginava toda envolta em brumas e fumaça de vulcão. E quando, anos mais tarde, conheci uma garota islandesa de nome impronunciável, grande, forte e loira, com o cabelo dividido em duas tranças - como se tivesse desembarcado momentos antes de um barco viking - esta imagem só foi reforçada.

Minha Islândia imaginária

Senhoras protestam contra a crise econômica

Mais recentemente descobri uma outra Islândia, ancorada na realidade, cuja população soube reagir aos efeitos da crise de 2008, recusando o pagamento da dívida, provocando a prisão de banqueiros, a queda do governo e a redação de uma nova constituição. Os mais entusiastas lembraram que o país teve a primeira democracia do mundo, com o Estado Livre da Islândia (de 930 à 1262) - mas tenho uma leve desconfiança em relação ao anacronismo do conceito... Seja como for, o país é atualmente o segundo no índice de democracia, pouco atrás da Noruega.

Curiosamente, foi numa dessas revistas femininas de cabelereiro - que, na França, vez ou outra se esforçam para discutir problemáticas feministas (e então colocam lado a lado as seções "Emagrecimento" e "A palavra às mulheres") - que li sobre Thóra Arnórsdóttir, candidata às eleições presidenciais na Islândia. Atenção spoiler! As eleições já passaram (30 de junho) e o presidente em exercício foi reeleito para seu quinto mandato.

Mas na imprensa francesa só dava ela!

Carla grávida, Sarkozy e Berlusconi 
Fiquei pensando no contraste. De um lado, na França, tivemos Carla Bruni, já famosa antes de se tornar primeira-dama. Famosa pela sua música, mas também pelo seu corpo e pela lista dos homens com quem se relacionou. Ela passou da esquerda para a direita, deixou a carreira de cantora em ponto morto durante o mandato do marido e, grávida, refugiou-se numa discrição altamente calculada. Do outro lado, Thóra, candidata também famosa em seu país (jornalista televisiva), carismática, inteligente. Lançou sua campanha à presidência já quase prestes a dar a luz, e logo voltou, com um bebê de 15 dias no carrinho ou no colo do marido. Marido este que, diga-se de passagem, cuida dos seis filhos do casal... Em uma matéria sobre a candidata, a revista feminina do jornal francês conservador Le Figaro apostou - o que não nos surpreende - no estereótipo maternal, com o título Thóra, mãe da Islândia, insistindo portanto nesta que se acredita ser a função primordial e inalienável da mulher (parece-me que este estereótipo também foi usado no período da campanha da Dilma, não é?).

 
Thóra durante a campanha, em sua casa, com o marido e o bebê recém-nascido
Mas se a imagem de Thóra encantou sobretudo os meios menos conservadores, é porque esta, ao conciliar um número importante de papéis, parecia encarnar com perfeição um ideal de mulher moderna: mãe, mas com uma carreira sólida, bonita, ativa e inteligente, simples, forte, com opiniões próprias...

Assim como a Islândia enevoada da minha infância, a figura de Thóra revestiu-se de uma fina camada de idealização. Mas para além de Thóra, devemos lembrar que a Islândia foi o primeiro país do mundo a eleger uma mulher presidente da República: Vigdís Finnbogadóttir ocupou este cargo de 1980 à 1996, quando cedeu seu lugar ao atual presidente. Além disso, a Islândia possui atualmente a primeira chefe de governo declaradamente homossexual, a primeira-ministra Johanna Sigurdardóttir. Esta casou-se com sua companheira no primeiro dia de vigência da lei a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo - e, detalhe - lei que teve aprovação unânime no Parlamento. Desde março deste ano, Svana Helen Björnsdóttir preside a Federação das Empresas Islandesas e, last but not least, Agnes Sigurdardóttir tornou-se em abril a primeira bispa mulher da Igreja protestante do país.

A bispa Agnes Sigurdardóttir
A crise parece ter tido como consequência positiva a abertura de portas para mulheres em cargos importantes de comando. "É chegada a hora das mulheres!", teria dito a bispa. Esperamos que sim. E eu continuo a sonhar com esta pequena ilha longínqua.

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Os judeus ultraortodoxos e o apartheid de gênero


por Tággidi Ribeiro

A notícia não é tão nova, mas não ganhou muito destaque da mídia, então achei bom falar sobre ela aqui. Infelizmente, fanatismo religioso é quase que correlato de violência e discriminação contra a mulher e é isso que se pode ver também em Israel.

No fim do ano passado, uma menina de oito anos virou símbolo da segregação que homens judeus ultraortodoxos impõem às mulheres em seu próprio país. De família ortodoxa, Naama Margolis era uma das meninas constantemente hostilizadas quando ia para a escola, por usar roupas consideradas imorais. A menina era chamada de prostituta, recebia cusparadas e às vezes lhe jogavam pedras.

Naama, de 8 anos, 'prostituta vestida com roupas imorais'
Quando finalmente a história de Naama veio à tona, é que o ocidente ficou sabendo como as mulheres são tratadas nos bairros povoados pelos ultraortodoxos. É um verdadeiro apartheid de gênero: homens e mulheres andam em lados opostos da rua; nos ônibus as mulheres devem se sentar atrás dos homens; nos hospitais e nos bancos há filas para um e outro gênero.

Por causa dos protestos de judeus moderados contra a segregação e a hostilização de mulheres, o governo israelita decidiu retirar as placas que indicavam a homens e mulheres em qual calçada andar. Os  ultraortodoxos reagiram atirando pedras e lixo contra os policiais em serviço.
 
Mesmo sem a resolução permanente do conflito, a resposta de Israel foi louvável. O primeiro-ministro declarou ser Israel um estado democrático, ocidental e liberal, onde a violência contra a mulher não seria tolerada. Gostaríamos de ouvir o mesmo de muitos governos pelo mundo.

Homens e mulheres protestam em Israel

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Publicidade machista


por Roberta Gregoli
Se fica estranho é padrão duplo
Como uma dessas coincidências incríveis, encontrei no final de semana um amigo mexicano que conheci em Oxford. Contei para ele sobre o caso aberrante da propaganda da Nova Schin, que além de ser machista não se retrata e ignora (pior, apaga) os protestos do pessoal no Facebook.


Em resposta, meu amigo disse que ficou surpreendido quando aterrissou no Brasil, vindo direto da Inglaterra, ao ver os outdoors cheios de mulheres seminuas. Ele disse que se sentiu no México. E realmente é um grande costraste com a Inglaterra. Outra coisa que ele apontou que achei interessante foi a virtual inexistência de outdoors no mesmo estilo de homens.

As Subvertidas já haviam notado esse padrão duplo em conversa particular e ficamos muito chateadas que o vídeo abaixo nunca tenha sido vinculado no Brasil (especial para a Tággidi):


Conseguimos que a Prudence retirasse sua propaganda do ar e se desculpasse em público, mas casos parecidos não param de pipocar. A Nova Schin é totalmente reacionária, não se retrata, finge que não é com eles e o CONAR apoia.


E não para por aí. A nova propaganda do Fiat Punto que traz mulheres seminuas protestando. Além de usar o corpo das mulheres, eles têm a audácia de ridicularizar protestos em que as mulheres de fato tiram a roupa por uma causa mais válida do que vender um carro a preço super inflado.

Tem também a do desodorante Axe, prometendo que é só misturar dois tipos de Axe para "acumular mulheres", como se mulheres fossem coisas que se pode acumular.


Sinto que há uma mudança de consciência e que órgãos como o CONAR (apesar de ineficaz em alguns casos), a SEPM e outros estão aí para ouvirem essas críticas. Mudar uma cultura não é fácil e leva tempo, o importante é continuarmos denunciando,



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Quem fui, quem me tornei - Como envelhecer mulher


por Barbara Falleiros

Nossas mães sabiam envelhecer... elas aceitavam bravamente e ingenuamente os cabelos brancos e as rugas; elas substituíam a beleza pelo espírito, a juventude pela graça, a galanteria pelo bom humor, o amor pela amizade.” (Alexandre Dumas filho, Un père prodigue, 1859)

O último post da Tággidi (este mesmo) levantou a questão do envelhecimento e da nossa construção de um lugar no mundo. Que perspectiva angustiante é esta diante da qual se veem tantas mulheres que, privadas então da capacidade de dar a luz e de provocar o desejo no outro, têm sua identidade esvaziada à medida em que as rugas aumentam. Quem ser quando não se é mais “mãe” e “mulher” (quero dizer, quando esta identificação não mais se produz)?

François Villon, grande poeta francês do final da Idade Média, desenvolve o tema da decrepitude na Balada da Bela Armeira, ecoando os lamentos de todas “estas pobres mulheres que estão velhas”. A bela armeira relembra seus amores passados e chora a perda da sua beleza à qual homem nenhum anteriormente resistira. O sentimento de decadência é a tal ponto intenso que conduz à tentação do suicídio. Não há possibilidade de existência na suposta ausência de um poder de sedução.

Ah, velhice, vil, traiçoeira,
Por que tão cedo já me abate?
O que me impede, a mão certeira,
Que de um só golpe eu me mate?

Segue, com extrema força, a imagem desta velha que se observa, nua, e lamenta profundamente o seu estado: “Quelle fus, quelle devenue!” – “Quem fui, quem me tornei!

Quando à nudez sou recolhida
E me vejo tão transformada,
Pobre, seca, magra, encolhida,
 A Bela Armeira, ilustração de Joseph Hémard, Paris, 1921
De fúria fico transtornada.

(...)
Fronte em ruga, cabelos gris,
Sobrancelhas baixas, destintos
Olhos de outro mirar feliz
Que venceram os mais distintos;
Nariz curvo, de belo extinto,
E as orelhas murchas, pendentes;
Rosto frouxo, morto, retinto,
Queixo em pregas, lábios cadentes.

Eis que a beleza humana afunda!
Braços curtos, mãos contraídas,
E espáduas viram corcundas.
Mamas, como? Estão retraídas;
O recanto? Fiu! Quanto às coxas...
Coxas não, coxinhas cozidas
Mosqueadas como salsichas.

Apesar da descrição (tragi)cômica das velhas pernas, manchadas e pintadinhas como linguiças, a constatação é dura: “les vieilles n’ont ne cours në estre / ne que monnoye qu’on descrye” – isto é, as velhas perdem todo seu valor, como moedas retiradas de circulação.

Mas a memória da juventude de cada uma das pobres mulheres que escutam os lamentos da bela armeira parece acalmar sua fúria inicial e conduzir à resignação: “ainsi en prent à maint et maintes” – o tempo, inexorável, não poupa ninguém, destruindo tanto homens quanto mulheres.

A dependência do olhar do outro (do homem) na construção da identidade feminina contrapõe-se então, no final do poema, à imagem de uma pequena comunidade de mulheres, agachadas em torno do fogo.

O bom tempo, assim, lamentemos,
Entre nós, tão pobres velhotas,
E em roda, agachadas fiquemos,
Empilhadas como pelotas,
Junto a esse fogo de gravetos,
Aqui aceso e logo extinto.
Onde os encantos tão facetos?
É o fado a todos indistinto. [1]

Desta imagem de precariedade ressai uma profunda melancolia, característica da época – a Idade Média que se termina – e da poética de Villon. Mas ao pensarmos nessas mulheres juntas, não seria este um caminho possível na busca de um sentido na vida daquelas que, ao envelhecerem, são confrontadas à solidão? Substituir o amor pela amizade?

Projeto arquitetônico da Casa das Baba yagas
Penso, na verdade, no projeto de uma comunidade de senhoras em Montreuil, na periferia de Paris, a Maison des Babayagas, do nome da velha bruxa do folclore eslavo. O projeto – utopista e militante – dessas senhoras feministas é manter uma casa autogerida, com atividades esportivas e terapêuticas, uma casa solidária, preservando a identidade de cada moradora, uma prática cidadã, com abertura à vida política, social e cultural, e uma prática ecológica, com uma gestão rigorosa da água, da energia e do lixo. Depois de 17 anos lutando por este projeto, a militante Thérèse Clerc espera que a casa, que acolherá 21 idosas, além de contar com 4 alojamentos para mais jovens e uma Universidade dos saberes dos velhos no andar térreo, seja inaugurada ainda este ano.

Como envelhecer? Ajudar-se na luta contra a dependência, cultivar a autonomia, estabelecer laços e trabalhar por um ideal. Eis uma primeira resposta.

Thérèse Clerc, idealizadora do projeto da Casa das Baba yagas
Para que a velhice não seja uma irrisória paródia de nossa existência anterior, só há uma solução: continuar a perseguir fins que deem sentido à nossa vida.
(Simone de Beauvoir, A Velhice, 1970)


[1] François Villon, Poesia, trad. Sebastião Uchoa Leite, EDUSP, 2000.

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Fertilidade e valor da vida da mulher


por Tággidi Ribeiro

Só mesmo escrevendo um texto para um blog feminista a gente aprende certas coisas. Vou contar para vocês, então, o que eu aprendi esses dias sobre fertilidade e infertilidade. Só pra contextualizar, eu não saberia nada novo não fosse uma amiga ter mencionado discussão sobre um tal prazo de validade da mulher. É... pois é. Pra piorar a história, no dia seguinte leio uma reportagem f*d*p* relacionada ao tema, que você pode conferir aqui.

Bem, em primeiro lugar, todo mundo sabe que 'mulher não é produto pra ter prazo de validade', como disse minha amiga. Ou não? De qualquer forma, o ideário machista que emerge quando alguém tem a coragem de materializar esse tipo de expressão é o de que uma mulher é:

1) uma existência cujo sentido é a maternidade;
2) uma existência cujo sentido é ser sexualmente atrativa para os homens;
3) uma existência cujo sentido se perde após os 35 anos.

Olha, eu realmente não sei, mulheres, mas se eu fosse um homem e me dissessem que a minha vida só vale até os 45 anos porque meu sêmen envelhece, o que pode causar certas doenças nos filhos que eu venha a ter, sinceramente, eu ficaria irado ou simplesmente descartaria a questão. Porque eu, como homem, sei que a validade da minha existência não se resume a ter ou não filhos saudáveis e muito menos a ter ou não filhos - quer dizer, mesmo que eu nunca tenha um filho, minha vida tem sentido, o mesmo frágil e efêmero para todo ser humano.
 
 Eu não sou um homem, mas eu já sei que minha vida tem sentido mesmo que eu nunca tenha um filho. Eu já sei que eu sou um ser humano tanto quanto.

Sendo homem, eu também ficaria p* da vida caso me dissessem que já não valho mais nada por não ser sexualmente atraente. Quer dizer, como alguém pode pensar que a vida de um homem não vale porque ninguém (em 7 bilhões de pessoas) quer fazer sexo com ele? Como alguém pode mesmo pensar que um homem de qualquer idade não seja sexualmente atraente? Teria que ser alguém insano ou picareta pra pensar esse tipo de coisa.

Eu sou uma mulher, e eu já sei que minha vida tem sentido mesmo que nenhum homem queira se deitar comigo. A minha consciência me diz que a vida dos seres humanos (e eu sou um ser humano, repito) não comporta a limitação do sentido. Vale a vida d@ eremita, também vale a d@ popstar.

E fora ter de dizer o óbvio sobre o sentido da vida humana e ter de reafirmar que mulheres são seres humanos, por escrever nesse blog aprendi, como disse, sobre fertilidade e infertilidade. Algumas informações interessantes:

1) os seres humanos são das espécies menos férteis do reino animal. Temos apenas 20 a 25% de chance de gerar um novo embrião a cada nova relação sexual. 
2) para suspeitar de problemas de infertilidade, um casal de até 35 anos deve tentar engravidar durante 12 meses (é isso mesmo, 1 ano).
3) homens e mulheres envelhecem. Quanto mais velhos, mais chances de não ter filhos ou de ter filhos não saudáveis, mesmo que o parceiro seja jovem.

Depois de escarafunchar o assunto, me peguei pensando (não sei se corretamente) que as pessoas deviam se preocupar menos talvez com a capacidade de ter filho (já somos 7 BILHÕES, adotem) e mais com saber envelhecer (vivemos/envelhecemos cada vez mais).  Vivemos tanto hoje que é visível a nossa falta de lugar no mundo. Esse lugar precisamos conceber e construir.

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Vai encarar?


por Roberta Gregoli

Mulheres no esporte geram um monte de discussões interessantes e com as Olimpíadas elas entram no holofote. Aproveitemos!

Primeiro, em competições esportivas deste nível fica claro o quão defasada é a essencialização da feminilidade. Todo esse papo de que as mulheres são 'naturalmente' mais fracas e frágeis. Neste texto o autor defende que o conceito de força também é cultural, já que os homens são, desde pequenos, muito mais estimulados nesse sentido que as mulheres. Ele também apresenta os vários componentes do conceito genérico força e usa dados do exército norte-americano para mostrar como isso é relativo, inclusive que 10% das mulheres têm mais capacidade de levantar peso do que os 10% dos homens de menor desempenho. Por fim, ele diz que, comparado com outras espécies próximas de nós, homens e mulheres têm relativamente pouca diferença de tamanho. Orangotangos e gorilas machos, por exemplo, têm mais menos o dobro de tamanho das fêmeas. Os seja, ideias de fraqueza e delicadeza também são culturalmente construídas e reforçadas.

Veja, por exemplo, esta reportagem sobre a judoca Suelen Altheman. A força de Suelen é algo tão ameaçador que a jornalista não se contém em mobilizar todos, todos os estereótipos para defender o que parece ser a tese central da matéria: Suelen é feminina (= mulher). Afinal, ela é vaidosa, é casada, faz dieta e... .... ... gosta de cozinhar. Uma baita injustiça com a Suelen que, em vez de ser celebrada por ser extremamente competente, forte e promissora, vira praticamente uma Amélia. E coitado do marido, que é "obrigado a seguir as regras alimentícias da mulher".

Mas isso é só o começo. Pelo menos o artigo é celebratório, ainda que de forma totalmente distorcida. O pior foi o caso de Zoe Smith, halterofilista britânica, que recebeu um monte de críticas machistas no Twitter por "não ser muito feminina".

Reproduzo aqui a resposta que ela deu em seu blog, na tradução do Coletivo de Mulheres PUC-Rio (acesse o texto original em inglês aqui):

"Uma ofensa óbvia quando falamos de levantamento de peso feminino é 'como é pouco feminino, garotas não devem ser fortes e ter músculos, isso é errado'. E talvez estejam certos... na era vitoriana. Imaginar que as pessoas ainda pensam assim é ridículo, estamos em 2012! Isso pode soar como uma generalização, mas a maioria das pessoas que pensam assim parecem chauvinistas, caras cabeça-dura que se sentem fracos pelo fato de que nós, três garotas pequenas e muito femininas, somos mais fortes do que eles. Simples assim. Eu discuti com um cara que disse que "nós provavelmente somos todas lésbicas e nos parecemos com homens", apenas para explicar o fato de que sua opinião não é válida porque ele é um idiota. Ele veio com a resposta original que eu deveria voltar para a cozinha. Eu ri.

Como a Hannah disse anteriormente, nós não levantamos pesos para parecermos gostosas, especialmente para agradar homens assim. O que os faz pensar que nós ao menos QUEREMOS que nos achem atraentes? Se você achar, muito obrigada, estamos lisonjeadas. Mas se não, por que você realmente precisa dizer isso e o que faz você pensar que nós, pessoalmente, nos importamos se você nos acha atraentes?

O que você quer que façamos? Vamos parar de levantar peso, alterar a nossa dieta para nos livrar completamente de nossos músculos "viris" e nos tornarmos donas de casa na esperança de que um dia você nos olhe de uma forma mais favorável e nós possamos realmente ter uma chance com você?! Porque você é claramente o tipo mais gentil e mais atraente de homem que enfeita a Terra com a sua presença.


Ah, mas espera, você não é. Isso pode ser chocante para você, mas nós realmente preferimentos ser atraentes para pessoas que não têm mente fechada e são ignorantes. Loucura, hã? Nós, como qualquer mulher com um pingo de auto-confiança, preferimos homens confiantes o suficiente neles mesmos para não se sentirem menos homens pelo fato de que nós não somos fracas e frágeis."

Como o nome de um blog que eu adoro, Suelen e Zoe são mulheres que honram o rolê. E os incomodados que se mudem... de planeta.