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O esquecimento da mulher na filosofia - Franco Volpi e Schopenhauer

por Tággidi Ribeiro


Atena, deusa da sabedoria.
O prefácio de Franco Volpi ao A arte de lidar com as mulheres, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, é ao fim interessantíssimo. A intenção clara do texto é não só desculpar a misoginia schopenhaueriana, posta na conta do humor ('é só uma piada'), mas também desculpar a misoginia da história e da filosofia ocidentais. Aliás, a palavra correta aqui é justificar, ou seja, demonstrar a justiça (histórica, universal) e legitimar as falas que calavam (ainda calam) a mulher. Contudo, nesse processo, Franco Volpi evidencia aquilo mesmo que o cega ou que ele se recusa a ver: o apagamento sistemático da figura feminina não por alguma sua inferioridade intrínseca, natural, mas dentro da própria construção discursiva dessa inferioridade. Vejamos o que ele nos diz:
6. Seja como for, a tradição do pensamento ocidental, apesar da diversidade das posições, das tendências e das escolas que a constituem, mostra uma surpreendente compactação ao remover, de princípio ou de fato, o sexo feminino, excluindo-o de um papel ativo na filosofia. Se o paralelo não suscitasse hilaridade, e se alguém já não o tivesse proposto, poderíamos arriscar a seguinte tese: assim como Heidegger afirmou que a filosofia ocidental é caracterizada pelo "esquecimento do Ser", poderíamos sustentar que ela é marcada por outro muito mais escandaloso: "o esquecimento da mulher".
O que me chama a atenção nessa fala, fora a questão posta, tanto histórica quanto metafísica, é que o paralelo traçado entre o esquecimento do ser e o da mulher seja, para mim, mulher, trágico, e nele provoque não só o riso, mas a explosão. A misoginia profunda de Franco Volpi tanto ri escandalosamente do esquecimento da mulher quanto esquece a mulher no tempo mesmo em que irrompe: as mulheres jamais seriam suas leitoras? Ou jamais chegariam a compreender, a penetrar esse discurso? Ou seriam obrigadas a capitular diante da verdade? Esta verdade(?):
 7. (...) na República, ele (Platão) reivindicou a igualdade dos direitos para as mulheres, admitindo-as até no estudo da filosofia: infelizmente, o fato é que nessa obra ele ilustrou apenas uma utopia. Já no Timeu, quando expôs a doutrina das metempsicoses, Platão afirmou que as almas são originariamente masculinas: as que vivem indignamente seriam destinadas a reencarnar num corpo feminino e, se novamente se comportassem mal, transmigrariam para o corpo de um animal. Desse modo, ele terminou por atribuir à mulher o estatuto de ser inferior, a meio-caminho entre o homem e o animal.
O homem ocidental clássico tem horror ao animal. Por animal entende aquilo que deixou de ser, aquilo a que se tornou superior e que deve necessariamente dominar. O homem ocidental construiu sua identidade tendo como alter, como outro, não a mulher, mas o animal. A mulher só passa a ser também o outro num momento posterior da dominação do homem sobre a natureza. E para justificar (principal verbo desse post) sua ascensão sobre qualquer ser, o homem imediatamente o associa, o assemelha ao animal. Keith Thomas nos conta, em O homem e o mundo natural, que crianças, jovens, pobres, negros, loucos, povos inteiros e, é claro, mulheres são comparados a animais, sobretudo até o século XIX, quando a biologia ganha o status de conhecimento e os animais têm reconsiderado o seu valor. Mas ainda no século XX o mesmo expediente é usado: antes e durante a Segunda Guerra os judeus são descritos como ratos, para ficar em um só exemplo. 

Quanto às mulheres, seguem animalizadas, ou melhor, seguem carregando a pecha que hoje pesa menos sobre o animal: praticamente todo o discurso midiático e muitas vezes também o biológico gira (propositadamente) em torno do estereótipo da mulher superemotiva, irracional. Seres irracionais não fazem filosofia, lugar primeiro da razão. Aqui o lugar de Franco Volpi.


ps: pincei apenas alguns trechos do prefácio e talvez em algum momento enfoque o texto de Schopenhauer, que segue de algum modo sendo replicado a sério. Veja nesta cena, para mim, tristíssima (min 11:06):


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Uma Sociedade - VIrginia Woolf - Parte Final

por Mazu

Primeiramente, aos seguidores, minha sinceras desculpas pelo sumiço bem no meio da nossa novela feminista. Teve gripe, intoxicação alimentar, visita dos pais, foi uma loucura. Prometo que não sumo mais assim, no meio de uma história.

Então, vamos lá, de volta com Virginia Woolf. A primeira parte do conto Uma Sociedade pode ser lida aqui.

E a segunda parte abaixo, clique em Mais informações para que o texto todo seja mostrado:


No meio de um relato que me interessava e me prendia mais que qualquer coisa que já tinha ouvido antes, ela deu o resmungo mais esquisito, meio choroso
"Castidade! Castidade! Aonde foi parar minha castidade!" ela lamentou. "Ai, ajuda! O vidro de perfume!"

Não tinha nada na sala além de um vidro de mostarda, que eu estava prestes a dar para ela quando ela recuperou a compostura.

"Você devia ter pensado nisso há três meses atrás" disse severamente.

"Verdade," ela respondeu. "Mas ficar pensando nisso agora não vai fazer bem nenhum. Falando nisso, que infelicidade minha mãe ter me colocado o nome de Castalia."

"Ah, Castalia, sua mãe", comecei a dizer quando ela pegou o pote de mostarda.
 "Não, não, não", ela disse, balançando a cabeça. "Se você fosse casta teria gritado ao me ver em vez de ter corrido até mim e me abraçado. Não, Cassandra. Nenhuma de nós é casta". Assim, continuamos conversando.

Enquanto isso, a sala foi enchendo, já que era o dia marcado para discutir o resultado das nossas observações. Pareceu-me que todo mundo se sentiu como eu me senti a respeito da Castalia. Beijaram-na e disseram como estavam felizes de vê-la novamente. Finalmente, quando estavam todas confortáveis, Jane levantou-se e disse que era hora de começar. Ela começou dizendo que já estávamos fazendo perguntas por mais de cinco anos e que, apesar disso, seríamos obrigadas a considerar os resultados inconclusos. Nesse momento, Castalia me cutucou e disse que não estava muito certa disso. Então, ela se levantou e interrompeu Jane, que estava no meio da frase, dizendo:

"Antes de você dizer mais alguma coisa, gostaria de saber se devo ficar no recinto". Então adicionou, "já que, devo confessar, sou uma mulher impura".

Todo mundo olhou para ela com espanto.

"Você está grávida?" perguntou Jane.

Ela assentiu com a cabeça.

Foi extraordinário perceber as diferentes expressões em seus rostos. Um zunido tomou conta da sala, do qual pude distinguir as palavras "impura", "Bebê", "Castalia" e outras coisas do tipo. Jane, que estava particularmente movida, perguntou:

"Ela deve ir? Ela é impura?"

Foi um rugido tão grande que deve ter sido possível escutar lá de fora. "Não! Não! Não! Deixem-na ficar! Impura? Bobagem!" Ainda assim, percebi que algumas das novinhas, as de dezenove ou vinte anos, mantiveram-se caladas como se oprimidas pela timidez. 

Então, nós a rodeamos e começamos a fazer perguntas e, por fim, uma das novinhas, que se mantinha no fundo, aproximou-se e disse a Castalia: "O que vem a ser castidade, então? Quero dizer, é bom, ruim ou simplesmente não significa nada? Ela respondeu tão baixo que não pude ouvir o que disse.

Alguém disse: "fiquei chocada por uns dez minutos".

"Na minha opinião", disse Poll, que estava ficando rabugenta de tanto ler na Biblioteca de Londres, "castidade não é nada mais que ignorância, o mais vergonhoso estado de espírito. Devíamos admitir apenas as não-castas na nossa sociedade. Eu voto que Castalia seja nossa Presidenta". Isso foi debatido violentamente.

"É injusto rotular mulheres pela castidade, seja pela presença ou ausência dela", disse Poll. "Algumas de nós não tivemos oportunidade. Além do mais, não acho que a própria Cassy vá dizer que fez o que fez por puro amor ao conhecimento".

"Ele tem vinte e um e é lindo de morrer", disse Cassy, com um gesto encantador.

"Eu voto", afirmou Helen, "que ninguém tenha permissão de falar em castidade ou falta de castidade, a não ser as que estiverem apaixonadas".

"Ora bolas", disse Judith, que esteve pesquisando assuntos científicos, "Não estou apaixonada e não vejo a hora de explicar minhas medidas para dispensar prostitutas e fertilizar virgens por lei do Parlamento".

Continuou falando de uma invenção sua que deveria ser construída nas estações de trem e em outros lugares públicos, invenção essa que, por uma pequena taxa, protegeria a saúde da nação, acomodaria seus filhos e aliviaria suas filhas. Pelo jeito, ela tinha inventado um método de preservar, em tubos lacrados, os germes dos Lordes Chanceleres do futuro ou, nas palavras dela, "poetas, pintores ou músicos", ela continuou, "supondo, obviamente, que tais espécies não estejam extintas e que as mulheres ainda se interessem em ter filhos".

"Mas é claro que queremos ter filhos!" disse Castalia toda impaciente.

Jane bateu na mesa. "Esse é justamente o ponto que viemos discutir", disse. "Faz cinco anos que estamos tentando definir se continuamos ou não com a raça humana. A Castalia antecipou a nossa decisão. Fica para o restante de nós nos decidirmos".

Então, em sequência, nossas mensageiras se levantaram e apresentaram seus relatos. As maravilhas da civilização excediam muito nossas expectativas, e, conforme descobríamos que os homens voavam, falavam uns com outros atravessando distâncias, penetravam os mistérios de um átomo e abraçavam o universo em suas especulações, um murmúrio de admiração nos escapava dos lábios.

"Estamos orgulhosas", dissemos, "que nossas mães tenham sacrificado suas juventudes por uma causa assim!" Castalia, quem estava ouvindo atentamente, parecia mais orgulhosa que o resto de nós. Então, Jane nos lembrou que tínhamos ainda muito que aprender, e Castalia pediu que fizéssemos rápido. Continuamos analisando uma vastidão de dados estatísticos. Descobrimos que a Inglaterra tinha uma população de muitos milhões e que alguma percentagem desse número passava fome constantemente e estava na prisão; que o tamanho médio da família de um trabalhador é tal e que um número muito grande de mulheres morria de moléstias causadas pelo parto. Foram lidos relatórios de visitas a fábricas, oficinas, favelas e estaleiros. Foram dadas descrições da Bolsa de Valores, de uma grande casa de negócios da cidade e de uma repartição do governo. As colônias britânicas foram, então, discutidas, e alguns relatos nos foram dados sobre a Índia, a África e a Irlanda.

Estava sentada ao lado de Castalia e percebi sua inquietude. "Não devíamos nos precipitar com conclusão nenhuma agora", ela disse. "Aparentemente, a civilização é bem mais complexa do que imaginávamos, não seria melhor nos limitarmos à nossa questão original? Concordamos que o objetivo da vida era produzir boas pessoas e bons livros. Até agora, só falamos de aviões, fábricas e dinheiro. Vamos falar sobre os homens mesmo e sua arte, já que esse é o centro da questão".

Assim, as que foram jantar fora se apresentaram com grandes folhas de papel contendo as respostas para várias questões. Tais questões foram estruturadas depois de muita consideração. Um homem bom, conforme concordamos, deve, a qualquer custo, ser honesto, apaixonado e espiritual. Mas a única forma de descobrir se um homem possuía ou não essas características era fazendo perguntas, geralmente, começando de uma distância remota do centro da questão. Kensington é um lugar bom para se viver? Onde seu filho está sendo educado, e sua filha? Agora, diga-me, quanto você paga pelos seus cigarros? Falando nisso, Sir Joseph é um barão ou apenas um cavalheiro? Normalmente, descobríamos mais coisas com perguntas triviais desse tipo do que com aquelas mais diretas. "Aceitei meu título de nobreza", afirmou Lord Bunkum, "porque minha esposa assim desejava". Não consigo nem lembrar quantos títulos mais foram aceitos pelo mesmo motivo. "Trabalhando quinze das 24 horas como eu trabalho", começavam dizendo dez mil trabalhadores. "Não, não, claro que você não lê, nem escreve. Mas por que você trabalha tanto?" "Minha prezada senhora, com uma família que cresce" "Mas por que sua família cresce?" Também era culpa das esposas ou talvez do Império Britânico.

Ainda mais significativas que as respostas eram as recusas em responder. Muito poucos respondiam a todas as questões sobre moralidade e religião e, se respondiam, não era de maneira séria. As perguntas sobre o valor do dinheiro e poder eram quase invariavelmente evitadas ou ofereciam grandes riscos a quem perguntava. "Tenho certeza", disse Jill, "que se o Sr. Harley Botinhas Apertadas não tivesse fatiando o carneiro, no momento em que perguntei sobre o sistema capitalista, ele teria cortado minha garganta. A única razão de escaparmos com nossas vidas depois de tanta perguntação é que os homens são ao mesmo tempo famintos e cavalheiros. Eles nos desprezam demais para levar em conta o que dizemos".

"Claro que nos desprezam", disse Eleonor. "Enquanto vocês constatavam isso, eu fazia perguntas entre os artistas. Então, nenhuma mulher nunca foi artista, certo, Poll?” "Jane-Austen-Charlotte-Brontë-George-Eliot," gritou Poll, como um homem gritando rosquinhas em uma rua do bairro. "Maldita seja!" alguém desabafou. "Que chatice ela é!"

"Desde Sappho, nunca houve nenhuma mulher de qualidade", começou Eleanor, citando uma publicação semanal.

"Agora sabemos bem que Sappho era, de certa forma, uma invenção libidinosa do Professor Hobkin", interrompeu Ruth.

"De qualquer forma, não existe razão para supor que alguma mulher algum dia tenha sido ou seja capaz de escrever", continuou Eleonor. "E mesmo assim, sempre que estou entre os autores, eles não param de falar sobre seus livros. Magistral! Eu digo ou algo do tipo: é como o próprio Shakespeare! (já que a gente precisa dizer alguma coisa) e garanto a vocês que eles acreditam em mim".

"Isso não prova nada", disse Jane. "Todos eles fazem isso". E suspirou: "simplesmente não nos ajuda muito. Talvez seja o caso de examinar a literatura moderna. Liz, é sua vez".

Elizabeth se levantou e disse que, para dar conta de sua pesquisa, ela teve de se vestir como um homem e se fazer passar por um crítico. "Li novos livros de maneira bem constante nos últimos cinco anos", disse. "Sr. Well é o escritor vivo mais popular, então, vem o Sr. Arnold Bennett, em seguida, Sr. Compton Mackenzie; Sr. McKenna e Sr. Walpole pode ser considerados como se estivessem no mesmo patamar". Então, ela se sentou.

"Mas você não nos disse nada!" nos queixamos. "Ou você está querendo dizer que esses senhores superaram imensamente Jane-Eliot, e a ficção inglesa está -- onde estão essas críticas escritas por você?”

“Ah, sim, 'guardadinha com eles'. Guardadas, bem guardadas", disse ela, alternado de maneira inquieta a posição dos pés. "E tenho certeza que eles dão bem mais do que recebem".

Todas nós tínhamos certeza disso. "Mas", seguimos pressionando, "eles escrevem livros bons?"

"Livros bons?" disse ela olhando para o teto. "Vocês devem ter em mente", ela disse, falando com extrema rapidez, "que a ficção é o espelho da vida. E não se pode negar que a educação tem a maior importância e que seria extremamente irritante, se uma pessoa estivesse sozinha em Brighton, tarde da noite, sem saber qual a melhor pensão para se hospedar, e vamos supor que fosse um domingo chuvoso, não seria agradável ir ao cinema?"

"Mas o que isso tem a ver?" perguntamos.

"Nada, nada, nada, tanto faz", respondeu.

"Então, fale-nos a verdade", nós ordenamos.

"A verdade? Mas a verdade não é maravilhosa", ela confessou, "o Sr. Chitter vem escrevendo um artigo semanal, nos últimos treze anos, sobre amor ou torrada com manteiga e mandou todos os filhos para Eton".

"A verdade!" exigimos.

"Ah, a verdade", ela resmungou, "a verdade não tem nada que ver com literatura", sentou-se e recusou-se a dizer outra palavra sequer.

Tudo ficou super solto, sem conclusão.

"Senhoras, devemos tentar somar os resultados", Jane começou a dizer, quando um burburinho, que já tinha sido notado pela janela há algum tempo, apagou a voz dela.

"Guerra! Guerra! Guerra! Declaração de guerra!" - homens estavam gritando pelas ruas.

Olhamos umas para as outras horrorizadas.

"Que guerra?" gritamos. "Que guerra?"

Lembramos, muito tarde, que não nos ocorreu mandar ninguém para a Câmara dos Comuns. Simplesmente, esquecemos. Olhamos para Poll, que tinha lido prateleiras de livros de história da Biblioteca de Londres e pedimos que nos explicasse. "Por que os homens vão para guerra?", perguntamos.

"Algumas vezes, por uma razão; outras vezes, por outras", disse calmamente. "Em 1760, por exemplo,"... Os gritos que vinham de fora abafaram sua voz. "Novamente, em 1797. Em 1840, foram os austríacos, em 18661-1870, foram os franco-prussianos, em 1990, por sua vez".

"Mas já estamos em 1914!" nós a interrompemos.

"Ah, agora, eu não sei porque estão indo à guerra", admitiu.

* * * * *

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A beleza trágica

por Thais Torres

Difícil saber se Nelson Rodrigues é mais admirado por ser o criador do teatro moderno brasileiro com Vestido de Noiva ou odiado por ser reacionário, machista e defensor da Ditadura Militar. De toda forma, é um nome impressionante da Literatura Brasileira. Primeiro motivo: é personagem e autor ao mesmo tempo. Segundo: é um autor completo, criador notável de tipos e de frases antológicas nas crônicas e autor de algumas das peças mais geniais da dramaturgia brasileira. Terceiro: em um momento em que ninguém podia se abster de ter uma opinião, ele teve a coragem de manter a sua e de alterá-la quando o próprio filho foi torturado pelo regime político que ele defendia. Há outros diversos motivos, mas acredito que é preciso reforçar este último: trata-se de um autor genial em diversos sentidos e suas opiniões políticas não alteram esse fato.

Tantas justificativas parecem ser necessárias em um post sobre Nelson Rodrigues neste blog. No entanto, ser feminista não me faz menos admiradora de sua obra. Isso gera conflitos, pois por mais que eu observe as nuances da máxima "Toda mulher gosta de apanhar" em seu real contexto (e há várias),  não posso negar que em parte foi isso mesmo que ele disse.

A crônica que escolhi para comentar hoje ("A morte pela beleza", está em O remador de Ben-Hur) trata de uma das obsessões do autor: a tragicidade da beleza, do talento e da santidade extremas. Assim ele começa o texto:

Marilyn Monroe morrera, na véspera, dessa enfermidade terrível que é a beleza. Enfermidade, disse eu. E, de fato, a beleza causa na mulher um desgaste interior, macio, insidioso, fatal. E, no fim de certo tempo, a mulher bonita se volta contra si mesma, com tédio e ira de todos os seus dons plásticos.


Mais adiante, o autor compara a tragicidade da beleza feminina com o drama que, segundo ele, acometeria um rol curioso de pessoas que vai dos santos aos grandes líderes, passando pelas belas mulheres e pelos  jogadores de futebol:

Mas o que eu queria dizer é que a autoflagelação, ou a autodestruição, é própria dos seres melhores. Há um momento em que o santo, ou o gênio, ou o herói, ou o craque tem uma brusca saudade da mediania.

O que é a tentação, para o santo, senão o ressentimento? Por um instante, baixa nele um tédio cruel da graça que o ilumina. Ele, então, desejaria ser um burocrata. Trocaria a bem-aventurança pela repartição. Do mesmo modo, um Napoleão, ou um Goethe, ou um Michelangelo há de perguntar, por vezes, a si mesmo: - "Por que é que eu não sou uma besta?"


Pode-se argumentar que o único papel da mulher nessa atormentada lista de "seres melhores" entediados com a própria supremacia é o de "mulher bonita". De fato. No entanto, cabe lembrar a profunda admiração que ele tinha por Clarice Lispector, classificada por ele mais de uma vez como "a maior escritora do Brasil e da América Latina" e acima dele próprio, portanto. O mesmo para sua irmã Stella, uma das raras médicas no Brasil dos anos 1940. Em outras palavras, a admiração de Nelson Rodrigues pelos seres geniais e superiores não reside na mera constatação do gênero ou da profissão do indivíduo, mas na tragicidade que acomete quem é, de alguma forma, superior. Mas que também faz parte de todos os seus outros suburbanos personagens. Para o autor de Vestido de noiva, a tragédia está por toda parte.

Além disso, como negar que há mesmo um trágico destino associado às mulheres extremamente belas? Há aquelas que envelhecem e que jamais são perdoadas por isso. Há outras que morrem tragicamente jovens, como foi o caso da atriz citada por Nelson Rodrigues em sua crônica. Não ser bela tampouco é fácil para a mulher. Basta ver a luta incessante nas academias e clínicas de estética para se alcançar um padrão estético impossível. Padrão esse que traz sofrimento, mesmo quando atingido. 


Impossível não recordar aqui o episódio relatado no capítulo 31 de Memórias Póstumas de Brás Cubas. O protagonista se depara com uma borboleta preta e assustadora em sua casa, metáfora viva da "por que bela se coxa" Eugenia. Incomodado, não consegue deixar de matar o inseto e justifica seu próprio ato dizendo "Também por que diabo não era ela azul?". Em seguida, percebe que às borboletas azuis não caberia um melhor destino: "Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos". 

À borboleta preta cabe um destino trágico: ser morta e lançada com um "piparote" para as formigas do jardim. Tampouco terá outro melhor desfecho a vida da bela e suntuosa borboleta azul ou laranja, pois ela será morta e cruelmente exibida como um item de decoração.

Termino com uma foto de Norma Jean Baker, tão bela quanto o personagem Marilyn Monroe que ela interpretou ao longo da vida, para deleite de todos. 



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O princípio Smurfete

por Roberta Gregoli


Jogo dos erros: Qual o problema com esta imagem?

Muito se diz da competição feminina no ambiente de trabalho e como por vezes mulheres em cargos mais altos são particularmente competitivas com outras mulheres. Enquanto é verdade que, no geral, mulheres são criticadas muito mais ferozmente do que seus colegas homens pelo mesmo tipo de comportamento (o famoso padrão duplo), a pergunta que não quer calar é: É possível ter uma atitude feminista ao reclamar da sua chefe?

Não seria o caso de negar que existem, sim, mulheres particularmente competitivas, fato observado não só em empresas como também em outros ambientes, como a política (vide Margaret Thatcher), mas para evitar que - como sempre - as mulheres levem a culpa por tudo, é preciso enfatizar que a raiz do problema é o machismo introjetado, não a mulher individual

E não é de se espantar que mulheres introjetem esse padrão de comportamento. Na cultura popular, o chamado princípio Smurfete, a existência de uma única personagem feminina num mundo de outro modo dominado por homens, continua presente em diversos produtos culturais... até hoje. Para citar dois exemplos brasileiros, nunca ouvi ninguém questionar o CQC por ter uma única (e mais recente) comediante mulher no seu quadro ou tampouco estranhar que, no filme De Pernas pro Ar (Roberto Santucci, 2010), Alice seja virtualmente a única mulher na empresa em que trabalha no início do filme. A consequência disso é a naturalização de um mundo não-natural (da última vez que verifiquei ainda éramos 50% da população mundial).

Nesses casos, em que uma única mulher serve para simbolizar todo o gênero, a figura feminina é chamada mulher-símbolo (minha tradução do termo token woman do inglês). O mesmo conceito de token se aplica a outros grupos minoritários: vemos em novelas x negrx-símbolo ou o gay-símbolo. Esse tipo de representação superficial tem por objetivo criar a ilusão de representatividade, sem alterar o paradigma estrutural ou significativamente. O equivalente a dizer que, agora que Dilma Rousseff é presidenta, não há mais machismo no Brasil.

"A negra-símbolo da empresa? É isso mesmo que você se considera,
Ms Corwin? Você é muito mais do que isso, eu lhe asseguro.
Você também é nossa mulher-símbolo."

Para expandir sobre o tópico, deixo vocês com este ótimo vídeo da Anita Sarkeesian do excelente Feminist Frequency, que descreve em detalhes esses dois conceitos - o princípio Smurfete e a mulher-símbolo - citando diversos exemplos da cultura estadunidense.


Legenda em português disponível clicando no botão no canto inferior direito


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Mulher de verdade

por Thais Torres

Mário Lago foi um dos poucos brasileiros que conseguiram criar um vocábulo para a Língua Portuguesa. Sim, procurei no dicionário e encontrei a palavra “Amélia” dicionarizada. Segundo o Houaiss, trata-se de um substantivo feminino, um regionalismo que, no uso informal de nosso idioma, significa “mulher amorosa, passiva e serviçal”.

Grande injustiça. Não é neste samba que podemos encontrar a manifestação mais pura do machismo na música brasileira. Exceto pelo fato de não ter vaidade (não custava nada, né, Amélia?), a personagem criada por Mário Lago me parece mais uma representação da mulher pobre, lutadora e companheira do que alguém “passivo”, algo como uma “serviçal” pouco dona de si.

Amélia é uma lembrança na mente do sambista que se lamenta na canção pelo comportamento egoísta e vaidoso da mulher com quem ele se relaciona no momento. É com ela que ele conversa ao longo da canção. “Nunca vi fazer tanta exigência”, lamenta-se ele, um “pobre rapaz” que se vê obrigado a proporcionar o “luxo e a riqueza” que sua amada exige.

Já Amélia agia de outra forma. Ao passar por dificuldades, o casal lutava pela sobrevivência. Ciente das dificuldades, a saudosa mulher não fazia como a parceira ambiciosa que tudo quer. Enfrentava a fome, encorajava o companheiro, lutava contra as contrariedades de tal forma que manipulava a realidade, em uma luta honrosa por amenizá-la. Ora, não é isso que faz uma mulher que “acha bonito não ter o que comer”?

Presente nas rodas de samba desde os anos 1940, Amélia é uma das personagens femininas mais injustiçadas da MPB. Apesar de ter se tornado sinônimo da mulher passiva e submissa, ela é uma representação da corajosa e brava gente brasileira que luta contra a miséria com as poucas armas que possui.

Mas voltemos a outra personagem da canção: a interlocutora do eu-lírico da música, a atual amada e sua vaidosa busca pelo luxo e pela riqueza. Estranho que não tenha sido dado um nome para este personagem tão comum no imaginário do samba brasileiro: a mulher que exige mundos e fundos de um pobre e sofrido homem que, a despeito de todo o esforço heroico, é traído e abandonado por ela. Falsa, fingida, mentirosa, ardilosa, leviana, mascarada. São tantos os adjetivos que falta a essa mulher um nome próprio que a simbolize. Melhor defini-la nas palavras de Noel Rosa, cantadas por Caetano Veloso.



Há alguns personagens típicos que povoam o samba. Dois deles estão representados na música de Mario Lago: o malandro e a mulher interesseira e vaidosa. O primeiro é o habitante dos bares, das rodas de samba e da orgia. É tão importante que Chico Buarque dedicou uma ópera a ele e Noel Rosa, Cartola, Moreira da Silva e Paulinho da Viola, alguns dos mais brilhantes sambas de suas obras. Vive a noite intensamente, envolve-se com mulheres mais diversas é, algumas vezes, abandona a farra em nome de uma única amada. Injustiçado, é traído e abandonado por ela e, após isso, retorna aos bares e ao estilo de vida promíscuo, agora com uma justificativa de peso.

Mas qual é, afinal, o papel das mulheres neste universo? A elas, com exceção da injustiçada Amélia, parece caber apenas um único papel: ser traidora e mentirosa, a única responsável pelo sofrimento do pobre malandro.

Mas há um samba de Adriana Calcanhoto que conta outra história. Mostra o olhar da mulher para o amor, para a orgia e para o desengano amoroso, algo tão relatado e discutido nos sambas escritos por homens. Uma mulher que se apresenta como alguém desiludido (“Eu não sou mais/quem você deixou,/amor”). Sua reação ao abandono não é passiva, pois ela “vai a Lapa decotada”, se dá ao direito de “beijar cem”, de “beijar bem”, de ser feminina e sedutora, buscando o amor como qualquer outra pessoa saudável deve fazer na vida. Ela não mente, não trai e não engana ninguém, mas apenas deseja encontrar um amor verdadeiro. E acaba encontrando muita diversão enquanto a espera não acaba.

Mais privilegiada do que Amélia, a personagem da canção de Adriana Calcanhoto é outra “mulher de verdade” da música brasileira, uma corajosa autora de seu desejo, que engendra as próprias buscas e exalta suas virtudes e seus desenganos.

Deliciem-se com a versão de Marisa Monte para a música. Com participação da autora da canção. Diversão e emoção certeira.



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Crise e oportunidade

por Roberta Gregoli


Hoje estou lutando com um capítulo da tese, então, infelizmente, não vou conseguir travar outra luta vã com um texto aqui no blog. Mas, para não passar batido, aproveito da minha pesquisa uma citação que vem bem a calhar tendo em vista os recentes comentários de nossos novos fãs masculinistas.

Como a proeminente Tania Modleski já dizia há mais de uma década, esses comentários:

[...] confirmam minha própria convicção de que, por mais que a subjetividade masculina esteja "em crise", como muitas feministas otimistas [e homens que se sentem lesados] agora declaram, temos que considerar até que ponto o poder masculino não é, na verdade, consolidado através de ciclos de crise e resolução, por meio dos quais os homens, em última instância, lidam com a ameaça do poder das mulheres incorporando-o.

Como sabe qualquer economista, crises são também oportunidades. Para os que já têm o capital, claro, não para os que estão na extremidade inferior da escala.

No contexto de gênero, proclamar uma grande crise é uma forma de se manter no poder, negando o próprio privilégio, negando a legitimidade da demanda do outro por poder e, consequentemente, reforçando e reinventando mecanismos de dominação.

Isso não quer dizer que os homens não sejam oprimidos pelo patriarcado, mas, bom, para desmantelar o patriarcado nós já temos o feminismo...

É nisso que dá tentar reinventar a roda

Referência:
Modleski, Tania. Feminism Without Women: Culture and Criticism in a "Postfeminist" Age. New York and London: Routledge, 1991. Minha tradução.


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Filosofia e mulheres - Franco Volpi e Schopenhauer 2

por Tággidi Ribeiro


Rosa Luxemburgo: filósofa
Dando continuidade ao post da semana passada, com comentários sobre o prefácio de Franco Volpi ao A arte de lidar com as mulheres, do Schopenhauer. Você sabia que 'já na Antiguidade não faltavam figuras de pensadoras mulheres'? Então, vê só!
4. Todavia, se observarmos bem, veremos que não faltavam, já na Antiguidade, figuras de pensadoras mulheres. No primeiro século a. C., o estoico Apolônio encontrou matéria suficiente para redigir uma história da filosofia feminina, e Filocoro escreveu um livro inteiro sobre as filósofas pitagóricas, que efetivamente formaram um grupo numeroso. Mas nossa gratidão maior vai para Gilles Ménage (...). Perlustrando pacientemente os séculos, Ménage recolheu em 1690 uma Historia mulierum philosopharum, que se lê ainda hoje com divertimento e proveito.

Olha, quando eu li isso, pouco ou muito pouco me importei com o pouco caso que Franco Volpi usa para nos informar dessa história inimaginada por todxs nós. Que eu tenha pressentido a zombaria na referência a 'um livro inteiro' sobre filósofas pitagóricas; mais zombaria na descrição, que não transcrevi aqui, de Gilles Ménage e zombaria certeira em 'divertimento e proveito', não importa. Perlustrando com alguma impaciência mas com sobejado interesse esse parágrafo, lembrei-me de que 'a história é contada pelos vencedores'. Durante muito tempo da minha vida não havia percebido que nós mulheres também fomos vencidas, que tivemos uma história não dita ou esquecida. Quantxs de nós ainda comem a história oficial? Quantxs de nós a regurgitam, na forma da 'emotividade, sensibilidade, impulsividade, irracionalidade femininas'? As perguntas feitas agorinha por muitas de vossas cabeças vêm formuladas e respondidas logo abaixo.

Susan Sontag: filósofa
5. No entanto, ocorre de nos perguntarmos: por que, de todas as venustas filósofas mencionadas nessa obra, não restou um só pensamento, nem um único fragmento se salvou da fúria destrutiva do tempo? Foi um acaso ou devemos pensar, com Hegel, que nessa matéria a história universal (Weltgeschichte) também emitiu seu julgamento universal (Weltgerischt)? Quer dizer: no fundo, esses pensamentos não mereciam ser conservados? 

Franco Volpi é tão erudito, né? Puxa vida, ler (e entender) Hegel no original deve ser difícil pra caráleo. Mas o que deve ser difícil mesmo é formular, sobre o destino histórico de toda uma biblioteca, uma questão  em que o 'acaso' aparece como única possibilidade de resposta ante o grande julgamento universal hegeliano. Mais difícil ainda deve ter sido refazer tautologicamente a questão - tipo assim, pra quem não entendeu chegar mais fácil à categórica resposta. A facilidade fica por conta da antiga arrogância da razão masculina, branca e ocidental, que de tão racional e merecedora de conservação, nos fez acompanhar no século passado os maiores genocídios da história. Franco Volpi foi um homem do século passado, nasceu no baby boom depois da Segunda Guerra, foi adolescente nos anos 1960, frequentou ambientes definitivamente intelectualmente intensos e escreveu esse prefácio em 2004: ele nos prova que difícil mesmo é achar um homem branco heterossexual privilegiado que duvide do merecimento de seu privilégio. A razão é solapada aqui - so sorry.

Semana que vem termino essa série, que ainda nos guarda umas tantas emoções, e volto a falar do grande fantasma que precisamos enfrentar: o estupro.

ps: escrevo e a palavra filósofa aparece com o grifo vermelho de erro. Até aqui só existem filósofos. Precisamos urgentemente de outra história.

Hannah Arendt: filósofa

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Sorriso amarelo

por Barbara Falleiros

Olhando para as fotos, me bateu um desânimo tão grande que eu tive vontade de chorar. Então é isso mesmo, nós não valemos nada. Pensei nas vezes em que já senti sobre a minha pele mãos indesejadas. E me veio novamente aquela repulsa, reação infelizmente familiar a tantas mulheres. A todas as mulheres - ouso dizer - em pelo menos algum momento de suas vidas. Numa dessas vezes, quando eu tinha dez anos, um garoto da escola se divertia em passar a mão na bunda das meninas. Lembro-me bem da sua risada. Eu e as outras garotas não achávamos a menor graça, mas ele continuava. Como nos ensina desde cedo a cultura do estupro, agressão é brincadeira, assédio é humor.

O Pânico é um programa de "humor" fraco e primário que, como de costume na tv brasileira, funciona à base de brincadeiras de mau gosto e de humilhações, reforçando o preconceito e o sexismo desde a concepção de seus "personagens", do homossexual com hemorroidas à mulher planta meramente decorativa. No programa, o grau de importância das participantes mulheres se mede pela quantidade de roupa que vestem: aquela que aparece um pouco mais coberta tem um papel de destaque, embora permaneça sendo a loira burra japonesa gostosa. Nicole Bahls, antiga figurante de biquíni, estava feliz em voltar ao programa com uma promoção: "Não vou ficar mais usando biquíni. (...) Vou ficar sentada junto com os outros humoristas. Estou me sentindo ótima, emocionada com a volta."

Gerald Thomas, embora se veja como grande expoente artístico com carreira internacional - há prova de maior provincianismo do que a idolatria do exterior e o desprezo puro e simples por seu paisinho de quarto mundo, do qual ele mesmo reproduz o pior da cultura sexista? - não passa de um babaca que gosta de chocar e de mostrar o próprio pênis. Freud explica. Vergonhoso nivelamento por baixo esta sua vingança grosseira contra o Pânico, tentando levantar o vestido de Nicole e abrir o zíper da calça do colega repórter.

A grande repercussão do episódio mostra que, pouco a pouco, começa-se a questionar os limites de supostas "brincadeiras" do tipo. Ótimos textos foram publicados sobre o que aconteceu no lançamento do livro do dramaturgo, como o de Nádia Lapa: A cultura do estupro gritando e ninguém ouve. Eu chego tarde para acrescentar algo novo ao debate, mas gostaria apenas de chamar a atenção para o teor das declarações dxs envolvidxs na cena, para o vocabulário, que não é outro que o das justificativas e desculpas comumente usadas em casos de agressões e abusos. É como a cultura do estupro, que discute Nádia Lapa em seu texto e da qual já falamos bastante aqui no blog, se constrói pelo discurso.

As pessoas têm o direito de fazer o que quiserem com o corpo dx outrx? Uma agressão é um direito? Não seria, por acaso, por ele ser homem - por seu corpo não ser imediatamente tido com um bem público - que ele esteja menos sujeito à falta de respeito do que sua colega mulher? E a culpa então recai sobre a própria mulher, cuja beleza atrai e justifica o assédio? Estratégia clássica de minimização do ocorrido: a naturalidade do colega, o "bom humor" de outro expectador da cena, a negação dos fatos pelo diretor do programa...



Lendo na internet discussões sobre os padrões de comportamento de agressores sexuais, li uma frase que *curiosamente* se aplica à situação descrita aqui. Dizia assim: "Um agressor sexual geralmente acredita que ele é melhor que os outros e que não tem que seguir as regras como as pessoas comuns. Geralmente define a si mesmo como forte, superior, independente, auto-suficiente e muito masculino". Bom, na verdade, essa descrição serve para qualquer machão de grande ego por aí (e pouco importa sua orientação sexual). Aqui, Geraldo não só afirma sua superioridade, inatingível face à impunidade reinante no país (e ao falar de impunidade, ele é consciente de que seu ato não constitui uma simples brincadeira), mas se serve também do subterfúgio perverso de culpabilização da vítima. A culpa de ter sido tocada e apalpada é da moça que estava com um vestido curto e um salto alto. Ela estava pedindo, certo? É o comportamento dela que está em questão aqui, não? É uma vadia mesmo, não é? Pelas fotos, não dá pra ver que ela está gostando? O pior é que muita gente continua concordando nesse ponto, de que a mulher que se expõe é responsável, moralmente responsável pelo assédio que pode vir a sofrer:



Nicole Bahls, com sua beleza formatada de Panicat, é ela mesma uma vítima da concepção machista e objetificadora da mulher. E ela mesma ignora que abusos, agressões, ataques, assédios, apalpadas não são uma questão de sexo, mas sim de poder. “Acho que ele é gay assumido. Se fosse homem, com outra intenção... Mas era uma brincadeira. Se fosse um homem, talvez fosse mais agressivo”. Ledo engano. Nenhuma forma de assédio sexual manifesta o impulso incontrolável do desejo masculino pelo corpo feminino, essa é a desculpa para o que não passa de uma afirmação do poder de um sobre x outrx. Que importa que Geraldo sinta ou não desejo pela mulher que ele decidiu tocar e constranger publicamente! Somente o que importa é o consentimento. Nicole concordou em aparecer na tv de biquíni, concordou em tirar fotos para a Playboy, não concordou em que um desconhecido a agarrasse e tentasse levantar seu vestido em um evento diante de expectadores e fotógrafos. Simples assim. Ele não tinha o direito de fazê-lo, assim como os igualmente babacas do Pânico não têm o direito de fazer muito do que fazem.
Só que isso não é humor, não.


Fonte: Nós estamos sujeitos a tudo, diz Bola sobre brincadeiraNicole Bahls sobre ataque de Gerald Thomas: "Fiquei abalada" ; Gerald Thomas responde a críticas.

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Lavando a roupa suja (sem pagar por isso)

por Thais Torres, a mais nova Subvertida :)

Estava eu lendo um caderno especial da Folha De São Paulo, publicado neste domingo, sobre a nova lei que regula o trabalho das domésticas. Não tenho empregada, nem tenho a intenção de pagar alguém para limpar a minha própria casa. Sinceramente, não vejo necessidade. Meu objetivo era achar algum texto que complementasse uma proposta de redação que estou fazendo sobre o assunto.

A vida do professor no Brasil tem muitos desafios e discutir assuntos que envolvam os direitos daqueles que trabalham e que se subordinam às ordens da família dos alunos é um deles. Na tentativa de cumprir essa e outras tarefas, há insatisfações das mais diversas ordens, mas uma me incomoda em particular: a crueldade com que jovens de 17, 18, 20 anos, no máximo, olham para pobreza que caracteriza o país e o total desinteresse deles em mudar essa realidade.


Enfim, estou me desviando do assunto. Na leitura do referido caderno da Folha, encontrei um artigo, pretensamente divertido e descolado, chamado 'Empregada pra quê?'. Escrito pelo ilustre desconhecido Sandro Macedo, é de um machismo atroz. Não pude deixar de me lembrar de um post (ótimo) da Bárbara Falleiros, aqui nesse blog, sobre a associação entre mulheres e a responsabilidade de limpar a casa.

O texto de Macedo começa bem. Assim o autor se define: 

Felizmente, ou não, faço parte de uma turma que não tem uma empregada. Aliás, minha família nunca teve empregada. Se puxar pela memória, vou me lembrar de mim mesmo enxugando a louça, sem direito a mesada, num exercício a seis mãos (a irmã lavava e o caçula guardava).

Pensei comigo: bacana! Pode servir para discutir com os alunos a cultura escravocrata do brasileiro, acostumado a ser servido o tempo todo e incapaz de lavar o próprio prato de comida. Engano meu. O argumento central para que ele não tenha empregada doméstica não é esse. Pelo contrário, o horror e a desconfiança dele em relação aos pobres são tamanhos, que ele se recusa até a ser servido por eles:


Mas só de escutar os amigos reclamando ("Ela não sabe lavar", "Mudou tudo de lugar", "Comeu o alfajor argentino") dá um desânimo.


Logo em seguida, ele dá “dicas” para evitar a empregada doméstica em casa. Algumas pouco higiênicas (“O copo de cerveja de ontem, por exemplo, é o copo de hoje. Se você for moderninho e quiser tomar uma IPA ou uma stout, melhor ainda. Pode misturar aromas”), outras até engraçadas (“Primeira dica: a cama. Para que arrumar de manhã o que será bagunçado à noite?”).



As mais interessantes são as que envolvem uma espécie de mentira que ele prega na mãe e na namorada para ter a casa limpa. O foco do texto não parece ser outro senão ensinar o leitor, um “macho-cristão-ocidental-solteiro” como ele, a conseguir ter serviços de empregadas domésticas, sem precisar pagar por isso, já que elas têm carinho e amor por ele.



A primeira a ser usada é a namorada. A dica é um primor: ajuda até a fingir romantismo, quem sabe, o leitor “macho-cristão-ocidental-solteiro” não consegue usar a mulher para a sua segunda função mais comum, aquela que ele não mencionou no texto:


No dia em que quiser trocar a cama, chame a namorada para dormir lá e faça tudo a dois. Vai parecer romântico.

A segunda a servir de empregada é a mãe. Mas cuidado, leitor! Não vá exagerar! É preciso lembrar que ela não é a sua empregada mais. Ela já foi, mas isso passou. Agora você tem mais de 18 anos, mora sozinho e é um macho solteiro. Não seja infantil!

E importante: a cada 15 dias, convide sua mãe para fazer uma visita. Use a camisa amarrotada. Mãe que é mãe não consegue ver o filho todo desarrumado.

Roupa passada e até uma minifaxina são quase garantidos. Mas, lembre-se, ela não é sua empregada. Ela já fez tudo isso para você até os 18.

Preciso interpretar o machismo da frase “Mãe que é mãe não consegue ver o filho todo desarrumado”? E, a pergunta que não quer calar, “Filho que é filho” convida a mãe para uma visita apenas para ter suas camisas passadas?

Os absurdos não param por aí. A mãe é uma empregada muito mais barata. Não precisa de salário, muito menos dessas bobagens como direito a descanso, férias e hora extra que andam exigindo por aí... Basta pagar um almoço que fica tudo resolvido.

E, se você levá-la para almoçar em seguida, todo mundo vai ficar feliz e agradecido. E sua roupa vai ficar com o cheiro que você gosta.

Podem se passar anos sem que essa lógica seja quebrada... ou até você se casar.

O texto é idiota, é claro. Mas não deixa de ser sintomático o recado – claríssimo e límpido como a mãe e a namorada do autor da crônica devem deixar as roupas de cama dele: empregadas domésticas roubam nossos alfajores importados e, por esse motivo não devemos contratá-las. Além disso, é desnecessário pagar alguém para arrumar sua casa, se você tem uma mãe que faz isso para você até os 18 anos – e quinzenalmente depois disso. Isso até você casar, é claro. Depois disso, fique tranquilo: suas namoradas cumprirão a função que sua mãe exercia. Você não ficará um único instante desamparado.

O texto termina com uma indicação: a série Downton Abbey, que está passando no GNT. Assista, leitor-machão-solteiro, para matar as saudades do tempo em que “subalternos até se estapeavam para poder ajudar o patrão a colocar a luva, com direito a livro de ponto”. Bons tempos aqueles, não é?

Não consigo deixar de também dar a minha dica para o autor do texto e para os leitores que concordam com ele. Recebi a brincadeira abaixo esta semana, publicada por amigos do Facebook:


Procurando por imagens para ilustrar o que escrevi aqui, encontrei essa outra obra-prima na abordagem deste assunto:


O post fica sem a ilustração que eu queria, portanto, pois ao digitar no Google “Machão + limpeza”, não encontrei uma única imagem de um homem de vassoura na mão. Mas o cartoon anterior me parece mais ilustrativo para compreender a relação entre essas duas palavras.


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Uma Sociedade - Virginia Woolf

por Mazu


Quem tem medo da Virginia Woolf?
Um dos objetivos do blog é compartilhar, debater e popularizar a literatura feminista. Como o cotidiano machista nosso nesse mundão véio sem porteira vive nos dando outros assuntos e motivos para blogar, a gente acaba falando menos nisso do que era nossa intenção de fato. A Thaís e a Thaís trouxeram alguns textos para gente, mas era bom fazer crescer e aumentar o assunto por aqui.

Com isso em vista, vou apresentar um trecho de um dos textos mais amados da Virginia Woolf, Uma Sociedade, traduzido por mim, de maneira livre, leve e rápida (aceito sugestões) para evitarmos quaisquer problemas com direitos dos sujeitos por aí. Um trecho agora, outro logo mais porque talvez eu não possa publicar a tradução do texto todo e, talvez, eu obedeça #NOT.

O texto é uma delícia e tendo em vista a semana que tivemos (violência sexual no horário nobre da TV, nada de novo, não), merecemos alguma delícia nessa vida. Um grupo de mulheres se reúne para tentar avaliar, agora que sabem ler, o mundo liderado e civilizado pelos homens. Humor sutil e feminista, finalmente! Vou fazer como novela e parar no clímax, mas semana que vem eu volto.


Uma Sociedade

FOI ASSIM que tudo aconteceu. Um belo dia, seis ou sete de nós estávamos sentadas depois do chá. Algumas olhavam para o outro lado da rua para a janela de uma loja de roupas, em que a luz ainda brilhava fortemente sobre plumas vermelhas e sapatos dourados. Outras estavam muito ocupadas, só que não, na construção de pequenas torres de açúcar sobre a borda da bandeja de chá. Depois de um tempo, pelo menos é o que me lembro, reunimo-nos ao redor do fogo e, como de costume, começamos a louvar os homens, quão fortes, quão nobres, quão brilhantes, quão corajosos, quão belos eles eram, e como invejávamos aquelas que, por bem ou por mal, conseguiram se prender a um deles para a vida toda. Quando Poll, que não tinha dito nada, explodiu em lágrimas. Preciso pontuar que Poll sempre foi esquisita. Para começar, seu pai era um homem estranho. Ele deixou uma fortuna em seu testamento, mas com a condição de que ela lesse todos os livros na Biblioteca de Londres. Nós a confortamos da melhor forma possível, mas sabíamos em nossos corações o quão isso era inútil. Ainda que gostássemos dela, ela não era nenhuma miss, deixava os cadarços desamarrados e devia estar pensando, enquanto elogiávamos os homens, que nenhum nunca iria se casar com ela. Finalmente, ela parou de chorar. Demoramos a entender o que ela disse. Por mais estranho que fosse, fazia sentido. Ela nos disse que, como já sabíamos, ela passava a maior parte do tempo na biblioteca de Londres, lendo. Ela disse que começou com literatura inglesa no último andar e o plano era ir em ordem e firmemente até Atualidades no térreo. E, agora, na metade no caminho ou, pelo menos, em um quarto do caminho, uma coisa terrível aconteceu. Ela não conseguia mais ler. Os livros não eram o que nós pensávamos. "Livros", resmungou ela, levantando-se e falando com uma desolação de uma intensidade que nunca esquecerei, "são, na maioria, indescritivelmente ruins!" 

Obviamente começamos argumentar com Shakespeare, Milton e Shelley.

Ao que ela respondeu "Ah, sim". "Vocês aprenderam bem, eu percebo. Mas vocês não são membros da Biblioteca de Londres." Nesse momento, os soluços a interromperam de novo. Por fim, recuperando-se um pouco, ela abriu um dos livros em sua pilha de livros que sempre carregava consigo. O livro chamava-se "De uma janela" ou "Em um jardim" ou alguma coisa do tipo e foi escrito por um homem chamado Benton ou Henson ou alguma coisa parecida. Ela leu as primeiras páginas. Ouvimos em silêncio. "Mas isso não é um livro", alguém disse. Então, ele escolheu outro. Dessa vez, uma história, mas não me lembro do nome do autor. Nossa trepidação aumentava conforme ela lia. Nenhuma palavra ali parecia verdadeira, e o estilo em que estava escrito era execrável. "Poesia! Poesia!" pedimos impacientemente. "Leia poesia para nós!" Não posso descrever a desolação que nos assolou quando ela abriu um pequeno volume e declamou a tolice verborrágica e sentimental que o livro continha.

"Deve ter sido escrito por uma mulher," uma de nós argumentou. Mas não. Ela nos disse que foi escrito por um jovem, um dos mais famosos poetas atuais. Imagine só o choque dessa descoberta. Ainda que tenhamos pedido e implorado para que ela não lesse mais, ela persistiu e leu alguns trechos da Biografia dos Chanceleres (Lives of the Lord Chancellors). Quando ela terminou, Jane, a mais velha e sábia de nós, levantou-se e disse que não estava convencida.

Ela perguntou: "Por que, se os homens escrevem esse tipo de asneira, teriam nossas mães perdido suas juventudes trazendo-os ao mundo?"


Estávamos todas em silêncio e, no silêncio, podíamos ouvir a coitada da Poll soluçando "Por que, por que meu pai me ensinou a ler?"

Clorinda foi a primeira a tomar as rédeas. "É tudo nossa culpa", ela disse. "Todas sabemos ler. Mas nenhuma de nós, a não ser Poll, deu-se o trabalho. De minha parte, dei como certo de que a função de uma mulher era passar a juventude tendo filhos. Venerava minha mãe por ter tido dez, mais ainda minha avó por ter tido quinze. Confesso que minha vontade era ter vinte. Nós, em todos esses séculos, supomos que os homens fossem igualmente engenhosos e que seu trabalho fosse de igual mérito. Enquanto dávamos a luz a crianças, eles, supúnhamos, davam a luz a livros e obras de arte. Nós populamos o mundo. Eles o civilizaram. Mas, agora, que podemos ler o que nos impede de avaliar o resultado? Antes de trazermos outra criança ao mundo devemos jurar que procuraremos saber como o mundo está."

Então, transformamo-nos em uma sociedade de fazer perguntas. Uma de nós visitaria os homens da guerra; outra se esconderia num escritório de um acadêmico; outra iria às reuniões de negócios; enquanto todas leríamos livros, apreciaríamos as pinturas, iríamos aos concertos, manteríamos os olhos abertos na rua e faríamos perguntas sem parar. Éramos muito jovens. É possível perceber nossa simplicidade pelo fato de que antes de terminarmos a noite, concordamos que os objetivos da vida eram produzir boas pessoas e bons livros. Nossas perguntas buscavam descobrir o quanto desses objetivos foi atingido pelos homens. Juramos solenemente que não engravidaríamos de um bebê sequer até que estivéssemos satisfeitas.

Assim, partimos, algumas para o Museu Britânico; outras para o Navio Real; algumas para Oxford; outras para Cambridge; visitamos a Academia Real e o Tate; ouvimos música moderna em concertos, fomos às cortes de justiça e assistimos a novas peças. Ninguém jantava fora sem perguntar ao acompanhante determinadas perguntas e anotar cuidadosamente as respostas. De tempos em tempos, nos reuníamos e comparávamos nossas observações. Ah, aquelas adoráveis reuniões! Nunca ri tanto na vida como na ocasião em que Rose leu suas nota sobre "Honra" e descreveu como se fantasiou de príncipe etíope e foi a bordo de um dos navios de sua Majestade. Descobrindo a farsa, o capitão foi visitá-la (agora, disfarçada de um cavalheiro do povo) e exigiu que a honra fosse satisfeita. "Mas, como?" ela perguntou. "Como?" ele berrou. "Com a chibata!" Vendo que ele estava fora de si de raiva e esperando que aquele fosse seu fim, ela se curvou e recebeu, para sua surpresa, seis chibatadas leves nas partes traseiras. "A honra da marinha britânica foi vingada!" ele gritou. Ao se levantar, ela percebeu que ele tinha o rosto pingando suor e segurava sua mão direita trêmula, "Alto lá!" ela exclamou, criando uma postura e imitando a ferocidade da expressão dele, "minha honra ainda deve ser satisfeita!" "Falou como um cavalheiro!" ele respondeu e ficou pensativo. "Se seis chibatadas foram o suficientes para vingar a honra da marinha real", ponderou ele, "quantas seriam necessárias para um cavalheiro do povo?" Ele disse que apresentaria o caso aos companheiros de tripulação. Ela disse com arrogância que não poderia esperar.  Ele elogiou a sensibilidade dela. "Deixa-me ver", disse ele de repente, "seu pai tinha uma carruagem?" Não, ela respondeu. "Ele andava a cavalo?" "Tínhamos um burro", recordou, "ele movia o moinho". Com isso, o rosto dele se iluminou. "O nome da minha mãe", ela acrescentou. "Em nome de Deus, homem, não mencione o nome da sua mãe!" ele riu alto, tremendo como uma vara verde, mas completamente vermelho de constrangimento, e levou pelo menos dez minutos para que ela conseguisse fazer com que ele continuasse. Finalmente, ele resolveu que se ela desse quatro golpes e meio de chibata no seu lombinho, região indicada por ele, (meio, conforme ele explicou, em reconhecimento ao fato de que o tio da avó dela ter sido morto em Trafalgar*), ele acreditava que a honra dela ficaria nova em folha. E isso foi feito. Então, foram para um restaurante, beberam duas garrafas de vinho, pelas quais ele insistiu em pagar, e se despediram com votos de amizade eterna.

Depois disso, a Fanny nos contou sobre sua visita às cortes de justiça. Em sua primeira visita, ela chegou à conclusão de que os juízes eram feitos de madeira ou eram personificados por grandes animais que se assemelhavam aos homens e que teriam sido treinados para mover com extrema formalidade, sussurrar e consentir com a cabeça. Para testar sua teoria, ela soltou um punhado de varejeiras em um momento crítico de um julgamento, mas não conseguiu determinar se as criaturas deram algum sinal de humanidade porque as moscas zunindo a induziram a um sono tão pesado que ela só acordou a tempo de ver os prisioneiros sendo levados às celas. Contudo, pela descrição trazida por ela, decidimos que era injusto supor que os juízes fossem homens.

Helen foi à Academia Real, mas, quando pedimos que ela relatasse as peças, ela começou a recitar o que lia em um pequeno livro azul: "Oh! pelo toque de uma mão envernizada e o som de voz parada. A casa é o caçador, a casa da colina. Ele balançou as rédeas de seus quadris. O amor é doce, o amor é breve. Primavera, a bela primavera, é a rainha adorável do ano. Oh! estar na Inglaterra agora que abril chegou. Homens devem trabalhar e mulheres devem reclamar. O caminho do trabalho é o caminho para a glória". Não podíamos mais ouvir aquela baboseira.


"Não queremos mais poesia!" protestamos.

"Filhas da Inglaterra!" ela começou, mas nós a fizemos sentar e jogamos um copo de água nela enquanto o fazíamos.

"Graças a Deus!" ela disse, sacudindo-se como um cão. "Agora vou rolar no tapete para ver se consigo tirar o que resta da Union Jack** de mim. Quem sabe." Então, ela começou a rolar energicamente. Ao levantar-se começou a nos explicar como eram as pinturas modernas, quando foi interrompida por Castalia.

“Qual é o tamanho médio de uma pintura?” ela perguntou. "Pouco mais de meio metro talvez", ela disse. Castalia fez anotações enquanto Helen falava e, quando ela terminou, e tentávamos não olhar uma nos olhos das outras, Castalia levantou e disse "Conforme combinamos, passei a semana passada em Oxbridge, disfarçada de faxineira. Assim, tive acesso às salas de vários professores e vou passar a vocês alguma ideia do que percebi", ela confessou, "Não sei como. É tão estranho. Esses professores", ela continuou, “vivem em grandes casas construídas ao redor de gramados, isolados em um tipo de célula. Ainda assim, eles têm toda conveniência e conforto. A única coisa a fazer é pressionar um botão ou acender uma pequena lâmpada. Seus documentos são lindamente organizados. Livros em abundância. Não há crianças ou animais, a não ser alguns gatos de rua e um galo velho”. "Lembram-me", ela confessou, "uma tia minha que vivia em Dulwich e tinha cactos. Você chegava na estufa depois de passar por uma grande sala de estar, e lá estavam, em tubos aquecedores, eram dúzias delas, plantinhas feias, esquálidas, eriçadas, cada uma em um vazo diferente. Uma vez a cada cem anos, a aloe dá flores, dizia minha tia. Ela nunca viveu para ver." Nesse ponto, pedimos que ela voltasse ao assunto. "Bem", ela retomou, "quando o professor Hobkin saiu, examinei o trabalho de sua vida, uma edição de Sappho. Trata-se de um livro de aparência estranha, 15 ou 16 centímetros de espessura, não é todo da Sappho. Ah, não. Trata-se, em sua maior parte, de uma defesa da castidade de Sappho, o que foi negado por um senhor alemão, e posso garantir como a paixão com que esses dois cavalheiros discutiram, o conhecimento que esbanjaram, a ingenuidade com que disputaram o uso de algum instrumento - que, para mim, tinha a importância de um grampo de cabelo - me assombrou, especialmente, quando a porta abriu e o Professor Hobkin apareceu em pessoa. Um senhor muito agradável e brando, mas como poderia saber qualquer coisa sobre castidade?" Nós a entendemos mal.

"Não, não", ela argumentou, "ele tem honra na alma, tenho certeza. Não que ele não se pareça com o capitão descrito pela Rose, de forma alguma. Eu pensava nos cactos da minha tia. Como eles saberiam qualquer coisa sobre castidade?"

Novamente, dissemos a ela para parar com as viagens mentais, afinal, os professores de Oxbridge ajudavam a produzir boas pessoas e bons livros? Os objetivos da vida.

"É isso!" ela exclamou. "Nunca pensei em perguntar. Nunca me ocorreu que eles pudessem produzir coisa alguma."

"Acho que você fez alguma coisa errada", disse Sue. "Talvez o tal Professor Hobkin fosse um ginecologista. Um acadêmico transborda humor e criatividade, com algum alcoolismo, mas e daí? São companhias deleitáveis, generosas, sutis, inovadoras, obviamente. Já que passam a maior parte de sua vida com os melhores seres humanos que já existiram".


"Hum", ponderou Castalia. "Talvez eu deva voltar e tentar novamente".

Uns três meses depois disso, aconteceu de eu estar sentada sozinha quando Castalia chegou. Não sei bem o que no jeito dela que me comovia, mas não pude me conter e, enquanto atravessávamos a sala, dei um abraço nela. Ela não estava apenas linda, mas parecia felicíssima. "Como você está alegre!" Exclamei, enquanto ela se sentava.
"Estive em Oxbridge", ela me disse.

"Fazendo perguntas?"

"Respondendo perguntas", retrucou.

"Você não quebrou nossa promessa?" Perguntei ansiosamente porque notei alguma coisa nela.

"Ah, a promessa", disse ela casualmente. "Vou ter um bebê, se é disso que está falando. Você não pode imaginar", disse de repente, "o quão excitante, lindo e satisfatório"

O quê?" perguntei.

"Responder perguntas", ela disse com alguma confusão. Foi aí que me contou a história toda. 


continua...