Mulher de verdade

por Thais Torres

Mário Lago foi um dos poucos brasileiros que conseguiram criar um vocábulo para a Língua Portuguesa. Sim, procurei no dicionário e encontrei a palavra “Amélia” dicionarizada. Segundo o Houaiss, trata-se de um substantivo feminino, um regionalismo que, no uso informal de nosso idioma, significa “mulher amorosa, passiva e serviçal”.

Grande injustiça. Não é neste samba que podemos encontrar a manifestação mais pura do machismo na música brasileira. Exceto pelo fato de não ter vaidade (não custava nada, né, Amélia?), a personagem criada por Mário Lago me parece mais uma representação da mulher pobre, lutadora e companheira do que alguém “passivo”, algo como uma “serviçal” pouco dona de si.

Amélia é uma lembrança na mente do sambista que se lamenta na canção pelo comportamento egoísta e vaidoso da mulher com quem ele se relaciona no momento. É com ela que ele conversa ao longo da canção. “Nunca vi fazer tanta exigência”, lamenta-se ele, um “pobre rapaz” que se vê obrigado a proporcionar o “luxo e a riqueza” que sua amada exige.

Já Amélia agia de outra forma. Ao passar por dificuldades, o casal lutava pela sobrevivência. Ciente das dificuldades, a saudosa mulher não fazia como a parceira ambiciosa que tudo quer. Enfrentava a fome, encorajava o companheiro, lutava contra as contrariedades de tal forma que manipulava a realidade, em uma luta honrosa por amenizá-la. Ora, não é isso que faz uma mulher que “acha bonito não ter o que comer”?

Presente nas rodas de samba desde os anos 1940, Amélia é uma das personagens femininas mais injustiçadas da MPB. Apesar de ter se tornado sinônimo da mulher passiva e submissa, ela é uma representação da corajosa e brava gente brasileira que luta contra a miséria com as poucas armas que possui.

Mas voltemos a outra personagem da canção: a interlocutora do eu-lírico da música, a atual amada e sua vaidosa busca pelo luxo e pela riqueza. Estranho que não tenha sido dado um nome para este personagem tão comum no imaginário do samba brasileiro: a mulher que exige mundos e fundos de um pobre e sofrido homem que, a despeito de todo o esforço heroico, é traído e abandonado por ela. Falsa, fingida, mentirosa, ardilosa, leviana, mascarada. São tantos os adjetivos que falta a essa mulher um nome próprio que a simbolize. Melhor defini-la nas palavras de Noel Rosa, cantadas por Caetano Veloso.



Há alguns personagens típicos que povoam o samba. Dois deles estão representados na música de Mario Lago: o malandro e a mulher interesseira e vaidosa. O primeiro é o habitante dos bares, das rodas de samba e da orgia. É tão importante que Chico Buarque dedicou uma ópera a ele e Noel Rosa, Cartola, Moreira da Silva e Paulinho da Viola, alguns dos mais brilhantes sambas de suas obras. Vive a noite intensamente, envolve-se com mulheres mais diversas é, algumas vezes, abandona a farra em nome de uma única amada. Injustiçado, é traído e abandonado por ela e, após isso, retorna aos bares e ao estilo de vida promíscuo, agora com uma justificativa de peso.

Mas qual é, afinal, o papel das mulheres neste universo? A elas, com exceção da injustiçada Amélia, parece caber apenas um único papel: ser traidora e mentirosa, a única responsável pelo sofrimento do pobre malandro.

Mas há um samba de Adriana Calcanhoto que conta outra história. Mostra o olhar da mulher para o amor, para a orgia e para o desengano amoroso, algo tão relatado e discutido nos sambas escritos por homens. Uma mulher que se apresenta como alguém desiludido (“Eu não sou mais/quem você deixou,/amor”). Sua reação ao abandono não é passiva, pois ela “vai a Lapa decotada”, se dá ao direito de “beijar cem”, de “beijar bem”, de ser feminina e sedutora, buscando o amor como qualquer outra pessoa saudável deve fazer na vida. Ela não mente, não trai e não engana ninguém, mas apenas deseja encontrar um amor verdadeiro. E acaba encontrando muita diversão enquanto a espera não acaba.

Mais privilegiada do que Amélia, a personagem da canção de Adriana Calcanhoto é outra “mulher de verdade” da música brasileira, uma corajosa autora de seu desejo, que engendra as próprias buscas e exalta suas virtudes e seus desenganos.

Deliciem-se com a versão de Marisa Monte para a música. Com participação da autora da canção. Diversão e emoção certeira.



3 comentários:

  1. Sandra Seabra Moreira20/04/2013, 20:41

    Delícia de texto! Linda defesa da Amélia, e samba sobejando liberdade com as duas fofas. Demais. Beijo.

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