Como diz a Lola Aronovich, toda mulher tem uma história de horror para contar. Ainda que não seja possível medir a dor, algumas histórias são particularmente contundentes. Recebemos o texto abaixo de maneira anônima, estamos tocadas e muito, muito revoltadas pelo absurdo da situação. Ficamos gratas em receber este texto, que com certeza confortará, na sororidade, outras sobreviventes e nos dá mais força para continuarmos no ativismo, mesmo contra a maré fortíssima da cultura do estupro.
Eu acho que já está mais do que na hora de “colocar tudo pra fora”. Por tudo o que tenho lido, por tudo o que tenho presenciado... por essa bizarra cultura do estupro em que vivemos.
Eu acho que já está mais do que na hora de “colocar tudo pra fora”. Por tudo o que tenho lido, por tudo o que tenho presenciado... por essa bizarra cultura do estupro em que vivemos.
Aos 17 anos a minha vida se transformou. Mas não porque na adolescência é normal que estas transformações aconteçam. Se transformou pois é o que acontece com o espírito de uma pessoa após um estupro. Você passa a não servir mais dentro de você mesma. E esse “aperto” muda você, muda a sua forma, muda o seu reflexo no espelho.
Em 1998 eu passava grande parte do meu dia na escola, estudava durante o dia e a noite, me preparando para o vestibular no fim do ano. Não sabia muito bem o que eu queria da minha vida, mas quem sabe aos 17 anos? Eram comuns os “xurras” aos finais de semana com a turma do cursinho. Sempre tinha alguém disposto a emprestar a chácara. Eram momentos pra relaxar e fugir um pouco dos livros. E claro, beber! É essa a maneira que os adolescentes encontram pra “fugir” dos problemas que pensam ter.
Fui convidada por uma amiga e me lembro até hoje que pensei em não ir... decidi de última hora.
Durante a festa, em uma chácara afastada da cidade, encontrei uma antiga amiga, com quem eu tinha brigado por ela achar que eu havia denunciado seu consumo de drogas à polícia e ao diretor da escola (o que de fato nunca aconteceu). Estranhei o fato de ela me tratar com tanta simpatia, como se nada tivesse acontecido! Me ofereceu uma cerveja (que eu aceitei) e nos juntamos a uma rodinha de amigos. De tempos em tempos aparecia um com mais uma rodada de cerveja e assim o tempo foi passando. Depois de umas cinco latas ela me disse que já estava enjoada de beber cerveja e que iria preparar algo diferente pra beber. Apareceu com um drink cor de rosa Quick e me entregou um copo.
Depois disso eu me lembro de pouca coisa...
Alguns flashes... pessoas, risadas, uma tatuagem de palhaço... eu estava inconsciente quase o tempo todo e nestes breves momentos de lucidez, eu só enxergava vultos.
Senti uma pontada de dor nas costas e desmaiei. Acordei não sei quanto tempo depois, semi nua, no chão, toda suja de terra e com pedaços de folhas nos cabelos.
Eu fui drogada e estuprada na frente de mais de duzentas pessoas e ninguém fez absolutamente NADA pra me ajudar. Eu conhecia aquelas pessoas, eram meus colegas de classe, alguns estudavam comigo desde o primeiro colegial. E ainda tiveram a frieza de trancar a minha amiga dentro da casa pra que ela não interrompesse o “show”.
A pontada que senti nas costas foi quando ele apagou um cigarro em mim...
Quando finalmente consegui sair daquele lugar eu não sabia para onde ir. Na verdade eu nem me lembro como voltei pra casa...
Entrei correndo com a minha amiga e no quarto conversamos se deveríamos contar para os meus pais ou não. Parece óbvio, mas não é. Só consegui sair do quarto depois de horas. Chamei os meus pais e contei tudo.
Eu vi quando uma parte do meu pai morreu, ali na minha frente...
Não denunciamos.
Não sei como essa decisão foi tomada, mas ela foi. Não denunciamos. Na verdade, não fizemos muita coisa...
O primeiro sentimento que te invade, por mais incrível que pareça, é a vergonha. Você não quer que mais gente saiba. Você só quer se esconder.
Eu voltei pra escola depois de alguns dias...
E o que já era um pesadelo, ficou pior ainda.
O estupro é o único crime em que a vítima é também ré.
Sofri com um bullying em massa!
Cada vez que eu entrava na sala, cada vez que eu me movia, uma catarse se iniciava e todos enlouqueciam gritando “Churrasco”, “Puta”, “Vagabunda”, e por aí vai.
Uma vez, quando eu entrei na sala havia uma pichação na parede. O desenho de uma mulher fazendo sexo oral em um cara e acima da figura a palavra “PUTA”.
Fui à diretoria (que SIM, sabia de tudo o que havia acontecido e também não fez NADA). Me deram um pano e um frasco de Veja e me disseram pra limpar, porque afinal de contas, a culpa de tudo o que estava acontecendo era minha. Todos os dias eu chegava e já passava na diretoria pra pegar o pano e o Veja... e todos os dias eu limpava a parede da sala...
Agüentei por algumas semanas...
E tentei o suicídio.
Minha mãe me encontrou a tempo e me levou para o hospital.
Foi lá que eu tomei a decisão de não permitir que aquilo me matasse. Não outra vez.
Continuei na escola. Foi o que me fez mais forte. Eu era uma vítima e ninguém ia me tirar o direito de andar de cabeça erguida. Cheguei a ser proibida de ir a uma excursão pelo que “eu poderia causar”... olha o nível do absurdo em que vivemos...
Passei no vestibular, saí da cidade e depois de quatro anos quando eu voltei ninguém mais se lembrava... quer dizer, eu nunca vou me esquecer, nem a minha família... mas aprendemos a deixar os fantasmas trancados no castelo... e depois de 13 anos eu ainda cuido para que a porta do castelo não se abra...
Não tenho grandes reflexões a fazer. Só uma vítima seria capaz de entender outra. Entender os sentimentos que te invadem, que te envergonham e que te calam...
Hoje eu sei que a gente deve ser mais forte que o preconceito, mas não é fácil, ainda mais em uma sociedade que culpa a exatamente a pessoa que não tem culpa!
Chegou a hora de falar.
4 de abril de 2013
História terrível. Atitudes revoltantes, grotescas e estúpidas dos seus colegas, além claro do comportamento criminoso e abjeto do quem lhe causou esse mal. Bom que mesmo aos trancos e barrancos você se reergueu!
ResponderExcluirVocê é uma sobrevivente. Continue firme em seu caminho e nos tenha como suas aliadas, sempre. Vamos estar lado a lado, lutando para que sua história não se repita.
ResponderExcluirNão tenho coragem de dizer nada. Tudo está tão fora do lugar. Estas pessoas deveriam ser punidas, não entendo como infelizmente nesta espécie de crime - que acontece muito - há sempre uma suspeita injusta e cruel sob a vítima.
ResponderExcluirÉ absurdo imaginar quantas situações como essas as pessoas presenciam sem mover um dedo para intervir. Pior, muitas ainda se divertem. Mas sabe o que é mais revoltante? É saber que em algum momento essas pessoas vão se queixar da sociedade, dos políticos, do marido / esposa, dos vizinhos. Vão reclamar do colega de trabalho que puxou seu tapete, do "trombadinha" que roubou seu celular, da pessoa que "furou" sua fila. Aí querem que o mundo se mobilize para resolver seu grande problema, afinal, é preciso garantir os direitos dos cidadãos, não é? Mas na hora de cumprir com seus deveres de cidadão preferem se acomodar em seu confortável egoísmo. Esse egoísmo que nos impede de reconhecer o sofrimento do outro, de intervir em situações de injustiça, de ajudar da maneira que podemos quem quer que necessite. Parece óbvio, mas muitas pessoas não compreendem que situações como essas não são exclusivas, que em algum momento a vítima pode ser outra. E quando for você ou uma pessoa que você ama? Haverá risos também?
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSei bem como é... estou escrevendo um blog para me livrar disso e ajudar outras mulheres que já passaram por isso a se recuperar...
ResponderExcluirLá, também conto meu relato pessoal...
http://fuiviolentadaeagora.blogspot.com.br/