Cinco mitos sobre o aborto


por Roberta Gregoli


Dando continuidade ao meu post da semana passada e aproveitando as ótimas novas de que o Uruguai é o primeiro país da América Latina a descriminalizar o aborto, revisito o tópico. Já vi várias versões de mitos sobre o aborto circulando pela internet, mas resolvi criar a minha própria lista, na esperança de adicionar meu vintém ao debate:

1. "Ser a favor do aborto é ser contra a vida" ou "Aborto é assassinato"

Este é, na minha opinião, o argumento mais sedutor contra a legalização do aborto, e também o mais moralizante. Primeiramente, o conceito de vida deve ser tratado com muito mais complexidade do que normalmente vemos por aí. Um feto sem cérebro, que não tem chance nenhuma de sobreviver, é vida? Um óvulo fecundado é vida? 

Na verdade, existem diversas teorias sobre quando a vida começa. A Igreja Católica diz que é no momento da concepção, e essa é sem dúvida a ideia mais difundida no Brasil. Mesmo dentro da Igreja Católica, no entanto, há uma corrente dissidente chamada Católicas pelo Direito de Decidir, que realiza um trabalho excepcional. 

Se não há definição em relação ao conceito de vida, a questão é somente moral e religiosa e daí, num Estado laico, cabe a cada um fazer a sua escolha. Moral e crença religiosa não se impõem com leis. 

O ponto central é que um embrião não é uma pessoa dotada de direitos e interesses - ao contrário da mulher. E então uma pergunta merece consideração: a "vida" de um embrião tem mais valor do que a vida de uma mulher? Porque o aborto inseguro é a terceira maior causa de óbitos maternos no Brasil

Podemos, então, inverter completamente o argumento e dizer que a criminalização do aborto que é, na verdade, contra a vida - a vida de milhões de mulheres que fazem abortos inseguros. "Assassinato sancionado pelo Estado", como muitos gostam de apelar em relação à descriminalização do aborto.

2. "Se legalizar, todo mundo vai sair por aí abortando"

Em outras palavras, o número de abortos aumentaria, certo? Errado. É comprovado que nos países onde o aborto é legalizado, o número de abortos é muito menor do que nos países onde é criminalizado. 

A taxa na América Latina, onde as leis são altamente restritivas, é de 32 abortos a cada 1.000 mulheres em idade fértil contra somente 12 em 1.000 na Europa Ocidental, onde o aborto é amplamente legalizado (veja o primeiro item da seção 'Abortion Law' aqui).

3. "A legalização do aborto encoraja uma postura sexual menos responsável" ou "Se legalizar, ninguém mais vai 'se cuidar'"


De certa maneira, a resposta ao mito 2 responde a este também, mas é preciso deixar claro: educação sexual e aborto são temas distintos. As feministas lutam pela descriminalização do aborto E por melhor educação sexual. 

Acho que não é preciso lembrar que, quem não usa preservativo corre risco de pegar uma infinidade de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive a AIDS. E ninguém sai por aí dizendo que a cura da AIDS encorajaria uma postura sexual menos responsável. Ou diz?

4. "Hoje só engravida quem quer"

Pois você sabia que a eficácia da camisinha gira em torno de 97 a 98%? E a pílula anticoncepcional em 98 a 99%? Ou seja, a cada 100 mulheres que tomam absolutamente todas as precauções para evitar uma gravidez, 1 a 3 podem terminar tendo uma gravidez indesejada. 

Num país de mais ou menos 98 milhões de mulheres, isso representa de 980 mil a quase 3 milhões mulheresÉ certo prender essas mulheres por abortarem?

Além disso, garantir a eficácia da pílula anticoncepcional não é tão simples assim. Muita gente não sabe, mas diversos medicamentos cortam o efeito da pílula. E se você esquecer de tomar a pílula um único dia e tiver tido relações sexuais na semana anterior, pode engravidar. 

É justo condenar mulheres que engravidaram sob esta circunstância por optarem pelo aborto? Quem nunca esqueceu de tomar antibiótico um dia na vida que atire a primeira pedra.

5. "E se o bebê que você abortou tivesse encontrado a cura do câncer"

A Lola trata desse mito de maneira brilhante e eu complemento: E se a mulher que morreu em decorrência de abortamento inseguro tivesse encontrado a cura do câncer? 

O ponto central deste mito é que é muito fácil idealizar a vida em potencial. Isso decorre, a meu ver, da ideia católica da "santidade da vida". Quando se pensa num bebê, se pensa num anjinho inocente e indefeso. Não que esse bebê é responsabilidade de pais que podem não estar preparados para criá-lo e que um dia, talvez até independente dos pais que teve, possa se tornar um bandido, um estuprador, um líder neonazista, um masculinista...
Da mesma forma, para muitos é fácil condenar a mulher que aborta e imaginá-la como um monstro. Mas os dados mostram que essa mulher pode, na verdade, ser sua tia, sua irmã, sua mãe

Conclusão

O que todos esses mitos têm em comum é a culpabilização das mulheres e a isenção dos homens de qualquer responsabilidade sobre a reprodução e mesmo sobre o aborto em si.

A discussão sobre a legalização do aborto tem que ser problematizada numa profundidade e sutileza muito maior do que a persistência de mitos tão primários expõe, e a velha mídia brasileira, que todos sabem ser retrógrada e conservadora, não tem interesse nenhum em promover debates mais complexos sobre o tema. Ainda bem que temos as mídias alternativas e grupos feministas ativos, como os citados neste post e muitos outros, para trazer uma outra perspectiva para a mesa. 

E seguimos tentando para quem sabe um dia chegar a um Estado laico que preze pela escolha, pela saúde e pela vida de suas mulheres.

13 comentários:

  1. O mito número 5 me lembra de uma discussão que participei no ensino médio em um fórum estudantil. As garotas que defendiam a criminalização do aborto (umas das poucas que estudavam em escolas particulares na ocasião) utilizaram "argumentos" como "A mãe de Einstein também pensou em aborto" e "A carta do bebê abortado". Gostaria muito de ter me exaltado. Me arrependo muito de não ter contra-argumentado um pouco mais.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É incrível como mesmo a nova geração é super retrógrada. Acho que é porque, como coloco no post, faltam discussões com um mínimo de profundidade sobre o tema. E a gente fica se achando um ET por ter uma posição contra o senso comum. Mas que legal ter mentes que pensam parecido como você, obrigada pelo comentário!

      Excluir
    2. Estudei num colégio católico que praticamente fazia uma lavagem cerebral nos alunos sobre o assunto. A professora de Ensino Religioso passava fotos de fetos abortados, vídeos e, é claro, a tal carta. Dessas aulas, saiam crianças de 11, 12, 13 anos vomitando e chorando, mas tudo bem para a escola, contanto que elas nunca fossem a favor da legalização do aborto. Os (poucos) argumentos apresentados eram exatamente os do texto.

      Excluir
  2. Cheguei aqui através do face. Já tenho essa mesma visão há bastante tempo e concordo com tudo. Mas, quando alguém vem com lenga-lenga religiosa para o meu lado eu não deixo ir muito longe a conversa: o corpo é da mulher e a decisão de abortar ou não cabe somente a ela. E quem é contra o aborto que não aborte, mas não encha o saco dos outros, né. Parabéns por abordar o assunto de forma tão simples e clara.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Legal, Wladimir! Precisamos mesmo de mais gente que vai direto ao ponto. Tem muitas pessoas bem intencionadas, mas vem com aquela "eu não faria um aborto, mas...". Precisamos de menos ressalvas e mais posições firmes. Afinal, posições firmes do outro lado não faltam... Obrigada por nos acompanhar!

      Excluir
  3. Caramba, fiquei impressionada, este é um tema que sempre me interessou, pois juridicamente temos inúmeros argumentos para a defesa da descriminalização do aborto e sua abordagem enquanto política de saúde pública, e o único, suposto argumento para a defesa da permanência na criminalização é o "direito à vida do feto", que nem é pessoa, nem se sabe quando começa a vida, enfim, tudo muito obscuro e muito obtuso diante do risco em que se coloca a mulher. Vc descreveu estas ideias no tópico de forma exata e clara, amei! A questão é uma só: trata-se de desvirtuamento dos princípios constitucionais, porque em verdade, o embasamento é puramente moral e religioso, como vc disse, biologicamente, quando começa a vida? Juridicamente, a partir de quando há proteção desta vida? Falam-se em direitos do nascituro, mas não do feto... Portanto, além da predominância do dogma religioso e da suposta moral brasileira (!!), há ainda o machismo generalizado, pois conforme vc disse no tópico 4, há sim possibilidade de engravidar, esse discurso só se aplica aos homens, apenas eles não estão sujeitos à possibilidade de engravidar, ainda que as mulheres não tenham vida sexual ativa, caso estejam em idade fértil podem vir a sofrer um estupro (e embora haja permissão de aborto, a justiça é lenta e não se sabe se a permissão chega a tempo). Enfim, como bem colocado pelo colega acima, ninguém é obrigado a realizar o aborto, mas é imprescindível que esta opção exista, e esteja disponível às mulheres.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Essa história de direito do nascituro é uma tentativa perversa de colocar uma capa jurídica sobre um discurso religioso, apelando para o mito mais tentador, o de que o aborto é contra a vida (sem levar em conta a vida das mulheres). Infelizmente ainda estamos longe de um Estado laico. Obrigada pelo comentário, Maria!

      Excluir
  4. Bem, tenho reservas quanto aos argumentos de todos os cinco supostos mitos sobre o aborto, mas no momento me atenho apenas ao primeiro. E o principal problema do seu argumento é a sua concepção de estado laico, estou discutindo isso no texto "e se sua mãe/irmã tivesse abortado?". Em um estado laico, ninguém é obrigado a seguir uma religião, mas todos devem se submeter as leis, por serem feitas por todos. Todos incluem relgiosos e não religiosos. Não é esse "oba oba". Cada um faz sim as suas escolhas, mas terá que arcar com as consequências, inclusive legais.
    Outro argumento falacioso (esse é muito perverso), é dizer que a criminalização do aborto coloca a vida do feto como mais importante que a vida da mãe. Esse argumento só seria verdadeiro se a mulher necessitasse do aborto para salvar a sua vida, ou seja ou a morte do feto ou a morte da mãe, ai eu concordo com vc a vida da mulher é mais importante. Mas abortar um feto saudável apenas por não achar que é conveniente ser mãe naquele momento específico coloca em lados opostos o direito a vida do feto e o direito de escolha da mulher de ser mãe ou não em um determinado momento, apenas isso. A vida da mãe não esta em risco, não há de se falar em qual a vida tem mais valor, a única vida que esta em risco é a do feto é ela que deve ser defendida.

    ResponderExcluir
  5. Fiz um comentário aqui também, estou aguardando a moderação.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fique tranquilo, anônimo, é só falta de tempo mesmo.

      Excluir
  6. Quem tem opinião diferente não pode postar aqui? Eu estou sendo censurado por não concordar e por meus argumentos serem contundentes e ficou díficil de vcs manterem o discurso de vcs?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fique tranquilo, anônimo, é só falta de tempo mesmo.

      Excluir
  7. “Percebi que todos aqueles que são a favor do aborto já nasceram”, dizia Ronald Reagan.

    ResponderExcluir