por Maria C.
É fato o inchaço da
legislação penal brasileira, e é também fato sua absoluta ineficácia.
Sem distorções: não sou a
primeira a esbravejar contra a impunidade. Contudo, atribuir tratamento
criminal àquilo que a sociedade não considera, é uma forma genial de protelar
soluções: nada se resolve, mas se finge bem. Os problemas continuam reais e
sumamente ignorados.
Juridicamente não há
justificativa dentro da nossa Constituição para atribuir tratamento criminal ao
aborto voluntário. Os constitucionalistas atuais entendem que a criminalização
contraria os preceitos constitucionais que conferem dignidade humana à mulher,
pois estes não estão sopesados na proteção absoluta do feto:
[...] tanto a vida do nascituro como
os direitos fundamentais à saúde, à privacidade, à autonomia reprodutiva e à
igualdade da mulher são interesses constitucionalmente relevantes, que merecem
ser devidamente protegidos. [...] a solução legislativa dada ao aborto pelo
vetusto Código Penal, em 1940, não ponderou adequadamente estes bens
constitucionais em jogo, pois não atribuiu peso nenhum, ou praticamente nenhum,
aos referidos direitos fundamentais da gestante. Parece-nos que seria bastante
razoável adotar no Brasil solução semelhante àquela perfilhada por grande parte
dos países europeus, que legalizaram a realização do aborto voluntário no
trimestre inicial de gestação, mas, por outro lado, criaram mecanismos
extra-penais para evitar a banalização desta prática, relacionados à educação
sexual, ao planejamento familiar e ao fortalecimento da rede de proteção social
voltada para a mulher. Uma solução desta espécie, na nossa opinião, não
conflitaria com a Constituição, mas antes promoveria, de forma mais adequada e
racional, os seus princípios e valores.[1]
Trata-se de opinião serena
e majoritária na doutrina jurídica constitucional.
Se os Doutores da lei
entendem que o sistema jurídico não justifica a criminalização do aborto, sua
criminalização haveria de ter uma ampla aceitação social.
Eis a questão mais
hipócrita deste Brasil. Embora as pessoas achem “errado” abortar, efetivamente
há pouquíssimas prisões em decorrência do crime de aborto. Inclusive, desafio
alguém a apontar uma pessoa real, sua irmã, sua prima, sua amiga, sua vizinha,
que mereça ser presa unicamente por esta prática, você, acaso eleito jurado
neste caso, a condenaria?
Sim meus caros, o aborto
no Brasil é tão “terrível” quanto um homicídio, é um crime doloso contra a
vida. Aliás, a mera tentativa de aborto leva a júri popular, passível de
condenação. Você jurado, votaria sim ao quesito condenada e jogaria tal mulher
na cadeia?
Parece-me, poucas pessoas
teriam tal sangue frio: julgar que uma mulher deve ser encarcerada por
tentar/retirar uma vida que poderia ter
sido, apenas em tese, por efetuar o aborto de um feto, um embrião que o
Conselho Federal de Medicina disse nada sentir pois não tem sistema nervoso
central formado – defendemos o aborto apenas até este prazo, como em todos os
países civilizados.
Neste caso há um pleno
descompasso entre a lei e o sentimento de justiça que ela promove.
Ora, se as mulheres não
merecem prisão por abortarem, porque não lhes permitir a realização do aborto
em condições legais? Da forma como está o aborto é clandestino e gera apenas
traumas, complicações, mortes e promove sempre a desigualdade.
Parece que temos assistido
a uma falsa guerra santa, que afasta as pessoas do que realmente importa e do
que o cristianismo buscava promover – a compaixão e a inclusão, e falo do
cristianismo revolucionário dos Evangelhos, tão esquecido pelos nossos fariseus acusadores, padres e
pastores, juízes do bem e do mau.
Em se tratando dos países
latinos, Portugal, Espanha e Itália, todas as questões políticas passam pela fé
e logo se aponta um inimigo oficial do cristianismo. Há sempre mouros a
expulsar, e esta é uma questão que une os súditos,
independentemente de suas práticas. Não há razão. Depois dos reis, Salazar,
Franco, o próprio Mussolini usou a fórmula. Em tempos de caos, que venham as
guerras santas.
Há 80 anos, nós mulheres
não tínhamos direito a voto. O Código Civil de 1916 não atribuía plena
capacidade civil à mulher casada – era uma espécie de eterna adolescente – que
dependia da assistência do marido para os atos da vida civil. A situação cessou
apenas com a edição da Lei 4.121/62, Estatuto da mulher casada (que dizia – o
marido é chefe da sociedade conjugal); mas igualdade reconhecida e ainda em
âmbito formal mesmo, apenas com a edição da Constituição Federal de 1.988.
Hoje as mulheres
conquistam na vida real diversos papéis, por mérito exclusivo e próprio,
galgando, pouco a pouco, posições de respeito e espaço profissional junto a
áreas predominantemente masculinas.
De outro lado, a mídia nos
representa como objetos de adorno de pouco valor, bibelôs substituíveis
periodicamente por outro modelo mais atual, já que a única função é decorativa.
A TV aberta brasileira nos
trata como putas ou santas – bundas ou rostinhos – mas jamais como seres
humanos, pessoas com opinião, profissão, vida, sentimentos, enfim, cidadãs
respeitáveis. Estamos lá a enfeitar, de forma sensual, pejorativa ou delicada.
Função de menor de importância, secundária. Só.
Tanto antagonismo, entre
representatividade e realidade, é extremamente nocivo. Quem são e o que
reivindicam as mulheres reais? O que pensam e o que sentem além das
preocupações com as próprias bundas e narizes?
A análise das
transformações do papel social da mulher demonstra que estamos no olho do
furacão e não sabemos. As questões referentes aos nossos direitos gerarão muita
incompreensão e polêmica. Não à toa, a guerra santa é contra nós.
[1]
SARMENTO,
Daniel. Legalização do aborto e Constituição. www.mundojurídico.adv.br. 2005,
p. 50-51.
24 de agosto de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário