Enviado por Maria C.
Imagine a seguinte situação hipotética:
“Um senhor abastado, lá com seus 60 anos de idade, possui uma linda família. Uma esposa devotada, com quem vive há cerca de 40 anos. Três filhos, todos adultos e devidamente casados. Sua prole lhe proporcionou carinhosos netos de variadas idades.
Em sua cidade, o senhor é muito respeitado. Além de proprietário de vários negócios, é influente na política local. Como era de se esperar, o senhor e sua família são muito conhecidos.
Contudo, há mais um aspecto de conhecimento público local acerca do senhor: sua amante. Mesmo casado, o senhor sempre foi um namorador. Conheceu sua amante quando ela ainda tinha 17 anos, e então iniciaram um relacionamento, que se arrasta por quase 20 anos.
Contudo, há mais um aspecto de conhecimento público local acerca do senhor: sua amante. Mesmo casado, o senhor sempre foi um namorador. Conheceu sua amante quando ela ainda tinha 17 anos, e então iniciaram um relacionamento, que se arrasta por quase 20 anos.
Nesse meio tempo, a amante tornou-se uma espécie de co-esposa do senhor. Toda sua família conhece o caso, sabem de sua amante, onde ela trabalha – em um dos negócios do senhor – diga-se, não lhe gostam, mas a toleram, por amor ao senhor.
A esposa e o senhor convivem apenas nos finais de semana – por conta do trabalho é o que se diz. A amante, por sua vez, é a esposa durante a semana, vive com o senhor durante este período, pernoita em sua casa, fazem refeições juntos, vão ao supermercado, cuidam dos cachorros, estas coisas de casal; e cede passagem para a esposa nos finais de semana, feriados e festas de família, num acordo não dito.
O senhor realiza viagens, jantares e comparece a eventos, ora com uma, ora com outra. As apresenta a todos pelo nome. Ambas o apresentam aos outros como seu marido. Fim da história.”
A coincidência com a realidade é bem provável, convenhamos. Não vou acusar os homens da unilateralidade da vida dupla, mas na busca de um exemplo corriqueiro, a situação é mais comum. Além disso, não vim aqui falar de sonhos, literatura, nem de amor, mas de realidade.
Há um assunto que toca aos direitos de uma legião de pessoas marginalizadas socialmente, mas em especial as mulheres, os quais precisam ser discutidos. Falamos destes espectros, que por vezes se tornam vultos aos nossos pés, sempre escuros. Sim, são elas, as amantes, também conhecidas como concubinas, destruidoras de lares ou mais carinhosamente como putas e oportunistas.
Há poucos anos os Tribunais locais vêm entendendo que as concubinas, em situações parecidas como as descritas na historinha têm direito à partilha de bens. Isto desde que comprovem que contribuíram para a formação do patrimônio destes bens. É uma situação muito complexa, que exige longa prova e, especialmente exige que a relação tenha sido duradoura, de companheirismo – como se casados fossem, como se formassem uma unidade familiar – e que a amante, assim como a esposa, tenha contribuído para a formação do patrimônio.[1]
Há muita hipocrisia nestes entendimentos, ainda. Muitos direitos são extirpados tendo em vista a manutenção da família patriarcal, da família legítima, da família que não pode ser vulnerada por relações paralelas, como se a concubina fosse uma terrorista que atentou sozinha contra esta família, sem a presença deliberada de alguém – o cônjuge – cuja participação é imprescindível.
Todo o mimimi tem se instaurado por que o Superior Tribunal de Justiça negou seguimento a um Recurso Especial interposto de uma decisão do Tribunal Regional da 4ª Região. Esta decisão, pela primeira vez, entendeu que houve concomitância de uniões estáveis, entre um homem e duas mulheres, e que em razão destas duas uniões estáveis – cada uma em sua casa, numa situação parecida com a descrita acima, com o dado de que se trata de união estável e não casamento – a pensão por morte devida à companheira devida ser repartida entre as duas mulheres, beneficiando ambos os núcleos familiares.
Não se pode esquecer de que não estou a tratar de relações eventuais, de casos fortuitos, de escapadas. Estas situações não são tuteladas juridicamente, nem serão, porque não geram efeitos jurídicos fora da órbita do relacionamento entre os cônjuges (o divórcio).
Está em discussão situações em que pessoas devotam grande parte de suas vidas a outra e, em especial, com o consentimento de muitos. Aí sim, efeitos são gerados e materializados no tempo, indiscutivelmente. E se qualquer destas pessoas vêm às portas do Judiciário, o que fazer, virar as costas, simplesmente? Parece injusto.
Não sejamos hipócritas. Ninguém quer instituir a bigamia, e juridicamente, a monogamia é princípio informativo da união entre as pessoas.
Por outro lado, também não vivemos na década de 1950, onde não havia divórcio. Atualmente, uma pessoa pode se casar e se divorciar no dia seguinte, inclusive o divórcio pode ser feito em cartório extrajudicial, moleza né?
Por este motivo, não se tolera mais tamanha hipocrisia. A reação dos Tribunais é um sinal disto. É o que é, o que todo mundo vê, viu, sabe. Fi-lo porque qui-lo.
Portanto, repito, não sejamos hipócritas. Apenas porque eu não quero uma fulana no meu relacionamento, vamos ignorar a existência desta situação eternamente e virar as costas para seus efeitos, já materializados no tempo? Não, minha gente. Ação e reação.
Persistir na culpabilização e na negação dos fatos não protege a família, conforme o discurso basilar da negação dos direitos destas pessoas. Que homem esconde a existência de uma mulher com quem vive cotidianamente e divide sua vida, de sua esposa oficial ou seus filhos por décadas? Nem o Batman. Como negar os efeitos desta relação paralela neste primeiro núcleo familiar? E neste segundo?
Nada mais justo do que buscar uma adequada tutela de direitos. Não podemos nos esquecer de que se alguém agiu contra seu relacionamento ou sua família foi primordialmente o cônjuge.
Há necessidade, portanto, de distribuição da responsabilidade dos efeitos deste ato, postumamente a seu término, pois a responsabilização exclusiva do elemento externo – a concubina – é irreal e hipócrita.
É preciso questionar, que sanções sofre este cônjuge, patrimonialmente – e é este o ambiente que interessa, pois estamos na esfera cível – embora tenha vivido 20, 30 ou 40 anos com esta pessoa, como se casado fosse, concomitante e paralelamente? Nenhuma. Temos então um padrão que premia o cônjuge que agiu ilicitamente, o coloca acima da lei sob o pretexto de proteger a família, e desta forma reforça a distinção de gênero nestas situações: tolera-se a infidelidade masculina, já que é praticamente inexistente tais questionamentos quanto ao gênero feminino nos Tribunais; de modo que a figura feminina persiste como a grande culpada de todos os males, uma vez que suporta sozinha os ônus do que foi vivido a dois. O problema é que o paradigma não protege a família, mas apenas um único personagem: o patrimônio do cônjuge, de modo hipócrita e cruel.
Problemas não são solucionados amplamente, e abrimos brechas para tratar pessoas que vivem em situações similares de formas distintas, o que é odioso.
É esta a realidade que pode vir a mudar, sim, a da concubina, da amante, que viveu durante décadas com um homem casado, como sua verdadeira companheira, com a conivência e o conhecimento de todos, muitas vezes com a geração de filhos, e que por fim, teve rejeitados todos direitos. Portanto o alvoroço. A perspectiva é boa, porque apenas virá a reconhecer direitos a quem os viveu. Só, nem mais nem menos.
[1] Conforme se verifica da decisão do TJRS, um Tribunal de vanguarda, e ainda assim cauteloso na questão: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL CUMULADA COM PARTILHA DE BENS. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA AFASTADA. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. SENTENÇA MANTIDA. PRECEDENTES DO STJ. [...] 2. MÉRITO. Houve relacionamento duplo pelo varão, que, enquanto entretinha a união com a autora, preservava íntegro, no plano jurídico e fático, seu matrimônio. Tratou-se, pois, de uma relação adulterina típica, que se amolda ao conceito de concubinato (art. 1.727 do CCB), e não de união estável. Nosso ordenamento jurídico, no âmbito do direito de família, é calcado no princípio da monogamia. Tanto é assim que, um segundo casamento, contraído por quem já seja casado será inquestionavelmente nulo e, se não são admitidos como válidos dois casamentos simultâneos, não parece coerente admitir-se como apto a constituir uma entidade familiar produtora de todos os efeitos jurídicos uma união de fato (união estável) simultânea ao casamento – sob pena de se atribuir mais direitos a essa união de fato do que ao próprio casamento, pois um segundo casamento não produziria efeitos, enquanto aquela relação fática, sim. Ademais, há regra proibitiva expressa em nosso ordenamento jurídico, qual seja o § 1º do art. 1.723 do CCB, ao dispor que “a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521”, somente excepcionando essa circunstância diante da comprovada separação de fato do casal matrimonial, o que não se verifica no caso em exame. Admitir-se como união estável uma relação adulterina significa afronta direta à norma, cuja não aplicação somente se justificaria sob o argumento de sua inconstitucionalidade. E, se esgrimida tal tese, indispensável seria suscitar incidente de inconstitucionalidade, perante o Órgão Especial deste Tribunal, diante da cláusula constitucional da reserva de plenário. Jurisprudência consolidada no STJ e no STF. (TJRS. 8ª Câmara Cível. Apelação cível n. 70052292943. Relator. Desembargador. Alzir Felippe Schmitz. Julgado em 07.02.2013.
8 de maio de 2013
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