por Tággidi Ribeiro
Estátua da justiça em Berna. Cega. |
Creio que todos nós passamos por momentos de dúvidas e menos dúvidas, mas será que nos colocamos as
questões em termos de conduta moral? Os adultos, no geral, circunscrevem seus
valores e os questionam? Idealizam um ethos cuja realização
perseguem? Pergunto porque tenho dificuldade em entender como se processam as
diversas escolhas dos indivíduos, sobretudo quando prejudicam seus iguais e
também a si mesmos. A internet é prolífica em exemplos e talvez por meio dela
possamos conhecer mais o pensamento de nossa época do que por qualquer outro
meio. Protegidas por pseudônimos ou pelo anonimato, pessoas de todos os sexos
não relutam em deixar cair suas máscaras e pode ser realmente assustador o que
se esconde por trás delas. Vou me valer de duas notícias recentes, de janeiro e fevereiro deste ano, para ilustrar o que quero dizer.
Em janeiro, a mulher de um detento morre em um dia comum de visita. Segundo a
polícia, ela havia engolido um 'pacote' que não quis entregar durante a revista
e entrou em convulsão, morrendo logo em seguida. É muito fácil achar essa
história toda muito estranha e julgar ser necessária investigação séria do caso,
inda mais com as declarações da família e as fotos em que a mulher aparece
cheia de hematomas. A maior parte dos comentários dos diversos artigos de
internet, entretanto, era de gente dizendo que 'era bem feito', por ela ter se
envolvido com traficante; e mais: ela estava grávida e nem esse fato, que
geralmente comove, chegou a arrefecer o sentimento de que aquela mulher merecia morrer.
Ainda havia gente que afirmava não sentir pena pelo feto porque ele seria, tal
qual o pai, um bandido.
Mas filho de bandido tem que morrer. |
Mais recentemente, no início de
fevereiro, uma menina mexicana de 12 anos, estuprada
repetidamente pelo padrasto de 44, deu a luz a uma criança. De início no
entanto, a informação era de que a menina contava 9 anos e fora abusada por um
vizinho de 17. Com qualquer idade, óbvio, é uma desgraça que
meninas/mulheres sejam estupradas e engravidem, mas na internet, ainda pensando
ter 9 anos a menina, o burburinho cruel veio dizer que 'as meninas de hoje não
prestam desde criança' . Alguém sugeriu que a menina não tivesse levado a
gravidez adiante, por ser fruto de violência, por ser de risco a gravidez,
devido à idade da mãe, e pela incapacidade dessa criança de ser mãe: educar,
cuidar, manter. Então, contra essa voz, todos se voltaram, repetindo: 'um
crime não pode ser motivo para outro pior'.
Não sei quanto a vocês, mas para
mim as falas em um e outro caso revelam uma brutalidade que não se encontra,
parece, em outra espécie que não a humana. Assassinato e estupro são
justificados; não há empatia, em absoluto, pelas vítimas; quanto à morte de um
feto, é justificado em um caso e não em outro, de forma completamente
arbitrária. Aqui, é fundamental destacar as 'razões' para a falta de empatia
dos comentaristas, ou seja, é necessário perguntar: em que situações não se deplora
a lesão física e psicológica ou mesmo a morte de alguém? Em que situações
instaura-se uma tal ambiguidade que não chega a tornar lícito matar ou
estuprar, mas que ao mesmo tempo retira de tais atos o estatuto de crime? Por
fim, em que situações a opinião condena ao estupro ou à morte outros indivíduos
ou, mais amplamente, qual o ideário de justiça, inseparável da moralidade, do
nosso povo?
O que eu falo impunemente. |
No caso da morte da mulher do detento, podemos elencar as seguintes
razões para a falta de empatia: ser a mulher de um traficante; ter supostamente
tentado entrar com drogas em um presídio; agir supostamente de forma ilícita
estando grávida. A primeira razão está relacionada ao mote 'diz-me com quem
andas', que é inclusive citado em um dos comentários - ou seja, se essa mulher casou
com um criminoso, deve ser criminosa, e também seu futuro filho o seria; a
segunda e terceira razões trazem algo mais capcioso, pois que são
comportamentos, ainda que supostos, moralmente reprováveis, de caráter
criminoso. Esses motivos, então, como que validam a primeira fala: estamos de
fato diante de uma criminosa - lembremo-nos de que a ideia de que
criminosos merecem morrer é senso comum. Há aqui dois pontos interessantes, o
fato de o criminoso, a despeito da gravidade de sua falta e da comprovação desta, ser destituído de
humanidade e, por isso, da possibilidade de figurar como
vítima. Isso quer dizer que em qualquer circunstância, qualquer sofrimento
infligido a essa mulher, e mesmo a morte, torna-se punição para seus crimes,
não importando se há crime de fato, se tal punição se aplica em relação a e na medida do crime, nem se é aplicada por aqueles designados para tal,
os agentes da lei. Portanto, acima da lei, acima de qualquer ideia de
equilíbrio entre falta e punição, a justiça da opinião condena à morte, sem
deplorar, o criminoso que comete qualquer falta e ainda seus descendentes.
Tão inocentes. |
E que falta cometeu a criança de 9
anos (depois sabidos 12)? Se a ausência de empatia ante uma morte imprevista e
talvez mesmo dolosa se dá pela desumanização e esta se processa sobre a figura
do criminoso, devemos supor essa adolescente também criminosa, para que não se
desenvolva a empatia ante seu estupro e a gravidez dele decorrida? Sim, há quem
cogite a possibilidade e mesmo quem afirme ser a menina a culpada de seu
próprio estupro. Há também quem cogite a consensualidade da menina e essa
suposta consensualidade é uma falta - note-se que, num
primeiro momento, todos supunham ter 9 anos a criança. Posteriormente, quando
se sabe que ela na verdade conta 12, o caso deixa de ter repercussão. É como se
meninas de 12 anos fossem indefensáveis. Nem o fato de ser o padrasto o
estuprador causa qualquer tipo de comoção. Nosso mundo parece enxergar meninas
de 12 anos como entes absolutamente autônomos, já formados, capazes de 'virar a
cabeça' dos homens ou, mais comumente, biscatinhas.
E, como sabemos, o senso comum minimiza ou desconsidera a violência
cometida contra elas. Biscatinhas - ou putinhas, piriguetes, vagabundas, vadias
- merecem a
violência sofrida. Daí a quase total falta de empatia pela menina de 12 anos
estuprada pelo padrasto de 44. É interessante mesmo perceber (neste caso
específico, quando se julga que a menina tem 9 anos) que os comentaristas de
internet praticamente não falam em crime e as palavras 'bandido', 'criminoso' e
'estuprador' não são usadas. Novamente, acima da lei, acima de qualquer
ideia de equilíbrio entre falta cometida e punição; acima inclusive da
existência da falta, a opinião condena ao estupro, justifica-o ou, o que talvez
seja ainda pior, ignora-o - o silêncio é a anulação do crime, sem o qual não há
culpado ou vítima. Mas não esqueçamos que essa adolescente deu à luz uma
criança e, se no caso da mulher grávida do bandido o feto também era condenado,
neste caso ele aparece como o único inocente. Um filho de bandido se
tornará bandido, e por isso é desejável que morra; já o filho de um estuprador
não se tornará estuprador. O feto fruto de relação consensual entre dois
criminosos não merece viver, mas o feto fruto de uma relação não consensual
deve ser preservado a todo custo, mesmo ao custo da vida e/ou do sofrimento
físico e psicológico da mãe, a menina de 12 anos.
Como eu dizia no início, é um
tanto difícil compreender o processo das escolhas morais dos indivíduos, que
conduzem seus julgamentos e também seu comportamento diário. É
difícil saber, inclusive, se há de fato a escolha, que pressupõe o contato com
diferentes visões acerca de um mesmo conceito, dado ou fato - a construção da
ética não nos permite ignorar as alteridades, pois tal ignorância nos faria
retornar ao fascismo. Enfim, são questões complexas (essas e as demais
levantadas ao longo do texto) e eu as exploro superficialmente, tanto por falta de conhecimento quanto por falta de tempo. Tenho a
impressão, contudo, de que já na superfície se pode revelar o grau de
insanidade de algumas vozes.
Algum comentarista disposto a mostrar o rosto? |
Muito bom, Tággidi! É horrível pensar no "determinismo" servindo tão bem para discriminar o filho do pobre/ladrão/vagabundo, mas não o fruto do estupro. Assumir que os crimes passam de pai pra filho e, ao mesmo tempo, que o filho do estuprador "não tem culpa", é o mesmo que conceber o estupro como um não-crime. Uma falta moral cuja culpa é da vítima... (mas falando em determinismo e descambando pra fofoca de celebridade, tem o sad Keanu Reeves, né? Filho de um traficante com uma stripper...)
ResponderExcluirMuito simples,a moral é subjetiva. Cada pessoa, cada grupo social tem a sua, por isso, não serve como base. Objetivamente, temos que ter leis claras e aplicáveis. Por isso, se os dois atos estiverem configurados em lei como crime, tem de aplicar a lei, e pronto. O resto é filosofia. Ser ético, é outra coisa, é fazer certo sem a necessidade de lei impondo ou alguém controlando.
ResponderExcluirO problema dessa história é eterno: as leis não são plurais, a vida do feto vai ser defendida sempre, porque quem o carrega é uma mulher e não temos representantes no congresso, vamos lá, quem nos representa (as mulheres), de verdade, no legislativo? Temos poder de lobby? Pois é assim que são feitas as leis no atual jogo político... Não temos, infelizmente somos muito menos ouvidas que minorias menos expressivas. Assim, é fácil continuar com essa justificativa torta sob essa falsa moral, de que é imoral matar um feto em dada situação e em outra não. Há até um princípio utilizado no direito norte-americano que justifica o aborto - o impacto desproporcional - é o impacto desproporcional da lei que proíbe o aborto, porque só a mulher sofre com isso, sobre os homens não pesa. Fácil metade da população (os homens) falarem de proibição do aborto quando jamais passaram por isso, necessitarão pesar uma escolha dessas. Não pretendo incitar as diferenças, mas expor a realidade, já exposta no texto, de que o peso que recai sobre a mulher, sobre a mãe e sobre seu futuro é ignorado nesta moralidade, e isso é imoral.
ResponderExcluirObrigada, Bárbara! E fora o determinismo, o apagamento do crime de estupro e a culpabilização da vítima, ainda as penas extremadas quando se julga que há crime... Sobre o Keanu Reeves - que eu amo, mesmo não sendo tão bom ator :) -, talvez ele seja menos triste que todas essas estrelas que perdem o prumo quando deixam de fazer sucesso.
ResponderExcluirArmando e Maria, obrigada pelos comentários. A discussão é complexa - fico imaginando o que seria a 'subjetividade' de um grupo social - e passa pela questão das leis, mas também pela questão da construção sócio-histórica da moral/ética (quem são esses homens/mulheres? como se formaram suas opiniões?).
Abraço!
Tággidi