por Thais Torres
Para o bem e para o mal, Caio Fernando Abreu está na moda. Há várias páginas no Facebook com frases que supostamente seriam do autor, bem como teses acadêmicas sobre sua obra, além de alguns filmes e peças de teatro baseados em seus textos. Trata-se de um autor emblemático para a Literatura brasileira contemporânea e não deixa de ser interessante essa atenção especial que vem sendo dada a ele. No entanto, com o modismo vem a incompreensão. Acho que poucos autores são tão mal interpretados quanto Caio Fernando Abreu. Os motivos são vários, mas um me incomoda em particular: saber que, para grande parte das pessoas que leem sua obra – e as que afirmam ler, sem ter efetivamente lido – o gaúcho é uma espécie de mártir daquilo que, para muitos, é conhecido como “Literatura gay”.
Aparentemente, o tema sobre o qual escrevo não é tão pertinente neste blog. Mas, não tenho dúvida que as autoras e os leitores são contra a ideia de “Literatura feminina” ou “Literatura para mulheres”. Como assim? Que espécie de gueto é esse? Quais são os estereótipos que essas denominações mobilizam? Vale lembrar outro modismo do momento: por que as mulheres que querem ler livros eróticos não se interessariam pelo maravilhoso A história de O ou mesmo pela polêmica obra de Hilda Hilst e prefeririam o sofrível Cinquenta tons de cinza? Basta ler as primeiras obras para entender o perigo do poder subversivo do erotismo. Aí fica fácil entender o que se cala com essa febre do momento.
Mas voltemos à “Literatura gay”. Sem dúvida alguma, lutar pelos direitos dos gays é uma questão de extrema importância no país que não deve se orgulhar de ser o campeão mundial de assassinatos homofóbicos, concentrando 44% do total de execuções de todo mundo. A importância desta luta é indiscutível. A grande questão é se reduzir a obra de um dos mais importantes autores da literatura contemporânea a um rótulo pré-determinado ajuda nesta luta. Não há dúvidas que a verdadeira literatura pode ser lida e escrita por qualquer um, de qualquer idade, orientação sexual, gênero ou time de futebol preferido. Acho que esse é o caso do Caio F. Sua obra transcende muito as amarras pretensamente libertadoras que são colocadas quando alguém determina que determinado livro é feito para gays ou por um gay. Basta ler com atenção Morangos mofados e (o meu preferido) Os dragões não conhecem o paraíso para concordar comigo.
O curioso é que o próprio autor rechaçava a possibilidade de ser uma espécie de defensor dos gays. Em carta ao escritor João Silvério Trevisan, escrita em 18 de outubro de 1983, Caio F. avalia “Pela noite”, conto de sua autoria que frequentemente é lido como um exemplar desta “literatura gay”:
É talvez um pouco impiedoso demais com o gueto gay, não sei se “impiedoso demais”, não sei se o gueto merece compreensão. Eu detesto.
Mais adiante ele comenta que foi convidado a participar de um evento intitulado “Os homoeróticos: os gays e as lésbicas na sociedade brasileira”. Conta ao amigo que não vai comparecer naquilo que chama de “coisa” e complementa: “Cá com meus botões, continuo a pensar que homossexualismo não existe”. Em diversos momentos, Caio Fernando Abreu defende essa ideia. Para ele, o conceito de homossexualismo não apenas estigmatiza determinados sujeitos, como também oculta a noção de uma sexualidade universal, que particularmente lhe interessava:
O homossexualismo está sendo mais aceito, ou mais entendido, mas só de certa forma. Porque continua sendo um estigma, uma mancha. Antes a pessoa ser homossexual era lama. Aí a coisa passou a ser discutida, relatórios daqui e dali e de repente parece que virou moda. Mas profundamente a questão não foi resolvida. Nunca me liguei a movimentos de liberação gay porque acho que não existe homossexualismo, existe sexualismo. As pessoas são sexuadas ou assexuadas. Tem gente que é assexuada e não gosta de trepar. Mas se você é sexuado, trepa com homem, trepa com mulher, transa com pessoas, mas quando põe o rótulo homossexual ou bissexual, você reforça preconceitos. [meu grifo]
Uma última citação: em “Terça-feira gorda”, o autor descreve com uma beleza ímpar o desejo homoerótico: “Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também”. E aqui eu, que por acaso sou heterossexual, reforço minha admiração por um grande escritor, que por acaso era homossexual. Não poderia ser simples assim?
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Thais Torres é graduada em Letras pela Unicamp e mestre em literatura brasileira pela USP. Atualmente, é professora de redação e doutoranda na USP. Apesar de ter ouvido de um professor de uma universidade federal que ela “não conseguiria entender Caio Fernando Abreu porque era mulher”, insiste em estudar o erotismo nos contos do autor. É apaixonada pelos amigos, pela arte, pelo talento das pessoas e por discussões divertidas e inteligentes. E por uma cerveja, para dar liga nisso tudo.
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6 de março de 2013
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Thais T
Sim, Thaís, poderia ser simples assim. Tomara que um dia - e que esse dia chegue logo - seja. Beijo.
ResponderExcluirEngraçado também ele falar em 'homossexualismo', que dentro dos grupos LGBT é um termo rejeitado pois o -ismo tem conotação de doença e -dade é coerente com 'sexualidade'. Mas ele usa também 'sexualismo'! Enfim, a escolha do uso de palavras dá pano pra manga e reforça, como colocado no texto, seu desengajamento com o movimento gay em prol de uma maior liberdade sexual, sem rótulos. Muito legal o texto, parabéns!
ResponderExcluirQue delícia de texto, Thaís! Volte sempre, faz favor! ;)
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