por Barbara Falleiros
Infelizmente o preconceito, a má fé e o ódio não são atributos exclusivos dos colunistas da Veja. Como já comentado aqui no blog, recentemente J. R. Guzzo, da maior revista de desinformação do país, fez um ataque grosseiro à luta pela igualdade de direitos dos homossexuais. Ele escreveu, defendendo a impossibilidade de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo:
(...) o casamento, por
lei, é a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa.
Pessoas do mesmo sexo podem viver livremente como casais, pelo tempo e
nas condições que quiserem. Podem apresentar-se na sociedade como
casados, celebrar bodas em público e manter uma vida matrimonial. Mas a
sua ligação não é um casamento — não gera filhos, nem uma família, nem
laços de parentesco. Há outros limites, bem óbvios. Um homem também não
pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação
estável com ela, mas não pode se casar.
Propaganda de uma marca de sapatos: "Como dizem as minhas duas mamães, a família é sagrada." |
Ora, ele baseia seu argumento na definição da lei quando a questão é justamente a alteração da lei. Mas antes fosse apenas uma mostra de sua inabilidade de raciocínio lógico... A má fé está na apresentação de uma realidade fantasiosa que desacredita as reivindicações, como se todos os direitos já tivessem sido conquistados. A manobra é bem conhecida: "os negros não precisam de cotas, falta-lhes é força de vontade" (e não condições) ; "as mulheres não precisam lutar por nada, hoje em dia trabalham e são livres" (mas cumulam jornadas e recebem menores salários); "os gays não precisam se casar, eles podem morar junto" (e @s companheir@s seguem sem proteção jurídica).
Num estado democrático laico, o casamento é antes de mais nada um contrato que serve para promover a assistência mútua entre o casal, regular as relações sexuais e os deveres para com os (eventuais) filhos resultantes da união. É enganoso pensar que, sem o respaldo da lei, um casal - mesmo heterossexual - possa "viver livremente". A organização da vida em comum, em família, envolve uma série de aspectos práticos que precisam ser assegurados juridicamente: impostos, licenças, pensões, seguros, aquisições, etc. Quanto ao que se denomina família, podemos realmente pensar que a ideia de uma configuração familiar única (papai-mamãe-filhinhos) encontra uma correspondência real no mundo de hoje? E quanto aos casais hétero que não desejam ou não podem ter filhos? E quanto às crianças criadas pelos avós ou tios, mães solteiras, famílias recompostas com meio-irmãos, não são famílias também? Por que não duas mães ou dois pais? Na psicologia de fila de supermercado, a tendência à patologização da homossexualidade estende-se aos filhos de homossexuais: "a criança vai ter problema se não tiver um pai e uma mãe". Uma montanha de estudos desmente esse tipo de mito. O problema, na verdade, é gerado pelo preconceito:
Num estado democrático laico, o casamento é antes de mais nada um contrato que serve para promover a assistência mútua entre o casal, regular as relações sexuais e os deveres para com os (eventuais) filhos resultantes da união. É enganoso pensar que, sem o respaldo da lei, um casal - mesmo heterossexual - possa "viver livremente". A organização da vida em comum, em família, envolve uma série de aspectos práticos que precisam ser assegurados juridicamente: impostos, licenças, pensões, seguros, aquisições, etc. Quanto ao que se denomina família, podemos realmente pensar que a ideia de uma configuração familiar única (papai-mamãe-filhinhos) encontra uma correspondência real no mundo de hoje? E quanto aos casais hétero que não desejam ou não podem ter filhos? E quanto às crianças criadas pelos avós ou tios, mães solteiras, famílias recompostas com meio-irmãos, não são famílias também? Por que não duas mães ou dois pais? Na psicologia de fila de supermercado, a tendência à patologização da homossexualidade estende-se aos filhos de homossexuais: "a criança vai ter problema se não tiver um pai e uma mãe". Uma montanha de estudos desmente esse tipo de mito. O problema, na verdade, é gerado pelo preconceito:
Nós fomos amados, e todas as pessoas que nos cercam e que nos cercaram desejaram o melhor para nós. Nós aprendemos a generosidade, a tolerância e o altruísmo, pois fomos criados no coração desses princípios. E nós temos orgulho desta educação. (...) A única coisa que poderia ter-nos desequilibrado, e falamos por experiência própria, é o olhar homofóbico de uma sociedade e de grande parte daqueles que a compõem. [Carta de dois filhos adultos de uma mãe lésbica]As três grandes religiões monoteístas mantêm, é claro, um discurso conservador, condenando moralmente a homossexualidade como um atentado à família. Mas mais do que uma questão moral, a discussão a respeito do casamento entre pessoas do mesmo sexo deve ser jurídica e política (e, cá entre nós, a mistura entre religião e política só resultou nos grandes massacres da história).
Nos últimos dias, na França, a vontade do governo de aprovar o casamento entre homossexuais - e permitir a adoção - tem inflamado os ânimos adversários, principalmente católicos. Sábado passado, uma grande manifestação impulsionada pela Igreja católica levou às ruas milhares de famílias modelo com crianças penteadinhas. Eles carregavam balões e cartazes rosa e azul, com bonequinhos sexuados de mãos dadas representando a família - mais generificado impossível!
Em seguida, no domingo, houve uma caminhada de integristas católicos (ligados à extrema direita), com um viés bem mais agressivo. Eles gritavam: "Primeira, segunda, terceira geração! Somos todos filhos de héteros!". No final, militantes do Femen que contramanifestavam acabaram apanhando, assim como uma famosa jornalista e militante feminista, Caroline Fourest. De acordo com a jornalista, um padre chegou a incentivar os agressores dizendo "Vão lá mostrar sua virilidade", enquanto esses gritavam "Odiamos sapatões!"
Mas voltemos um instante ao texto de Guzzo. Ele conclui o trecho citado com uma referência à zoofilia. Para ele, homossexuais não podem se casar assim como um homem não pode se casar com uma cabra, como se o relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo fosse equivalente ao relacionamento entre um homem e um animal. Neste ponto, infelizmente, ele também não está sozinho. Há quinze anos, discutia-se na França a adoção de uma nova forma de união civil entre pessoas de mesmo sexo ou de sexo diferente, o PACS (Pacto Civil de Solidariedade). Um deputado propôs então que os contratos fossem assinados "nos serviços veterinários". No ano passado, uma deputada francesa da UMP, partido de [centro-]direita do ex-presidente Sarkozy, disse no meio da Comissão de Leis da Assembleia Nacional, a respeito do casamento gay: "E porque não uniões com animais?"
E depois do arcebispo de Lyon, que teme que a liberação do casamento homossexual abra caminho para a aceitação do incesto, foi a vez dos Irmãos Muçulmanos franceses precaverem contra os perigos dos amores desnaturados: "Se o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo se tornar uma norma, então poderão emergir as reivindicações mais incongruentes. Quem poderá deslegitimar a zoofilia, a poliandria, em nome do sacrossanto amor?" Nuance: para os seguidores do Profeta, o horror está na poliandria (casamento de uma mulher com mais de um homem). Quanto à poligamia... Inch Allah!
Uma outra política da UMP, esta da mais pura tradição católica, também insinuou recentemente que a homossexualidade leva à poligamia. Mas deixemos de lado o fato de ela ter tido três filhos com seu primo (saibam os desavisados não há nada de incestuoso nisso: primo pode. Amém). Um de seus colegas de partido, subprefeito de um bairro parisiense, escreveu em carta à população: "Como se opor, amanhã, à poligamia na França, princípio que só é tabu na sociedade ocidental? Por que a idade legal mínima para se casar seria mantida? Por que proibir os casamentos consanguíneos, a pedofilia, o incesto, que são moeda corrente no mundo?"
Poderia até ser engraçado ver-lhes espernear seus medos e obsessões, não fossem essas pessoas detentoras do poder. Seus fantasmas morais e sexuais formam amálgamas cujas consequências são nefastas para os principais interessados, os que fogem à "norma" heterossexual, é claro, mas para a sociedade como um todo, que segue cruel e injusta. No fim das contas, pode-se medir o quão violenta é esta assimilação do projeto de vida de duas pessoas ao ato sexual com animais? Dois homens, duas mulheres ou um homem e uma cabra: dá no mesmo. Julgados imorais, os homossexuais não são privados apenas de seus direitos civis, mas de sua própria natureza humana.
Santo biologismo: "Todos nascidos de um homem e de uma mulher"; "Nem genitor A, nem genitor B: pai e mãe!" |
Mas voltemos um instante ao texto de Guzzo. Ele conclui o trecho citado com uma referência à zoofilia. Para ele, homossexuais não podem se casar assim como um homem não pode se casar com uma cabra, como se o relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo fosse equivalente ao relacionamento entre um homem e um animal. Neste ponto, infelizmente, ele também não está sozinho. Há quinze anos, discutia-se na França a adoção de uma nova forma de união civil entre pessoas de mesmo sexo ou de sexo diferente, o PACS (Pacto Civil de Solidariedade). Um deputado propôs então que os contratos fossem assinados "nos serviços veterinários". No ano passado, uma deputada francesa da UMP, partido de [centro-]direita do ex-presidente Sarkozy, disse no meio da Comissão de Leis da Assembleia Nacional, a respeito do casamento gay: "E porque não uniões com animais?"
E depois do arcebispo de Lyon, que teme que a liberação do casamento homossexual abra caminho para a aceitação do incesto, foi a vez dos Irmãos Muçulmanos franceses precaverem contra os perigos dos amores desnaturados: "Se o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo se tornar uma norma, então poderão emergir as reivindicações mais incongruentes. Quem poderá deslegitimar a zoofilia, a poliandria, em nome do sacrossanto amor?" Nuance: para os seguidores do Profeta, o horror está na poliandria (casamento de uma mulher com mais de um homem). Quanto à poligamia... Inch Allah!
Uma outra política da UMP, esta da mais pura tradição católica, também insinuou recentemente que a homossexualidade leva à poligamia. Mas deixemos de lado o fato de ela ter tido três filhos com seu primo (saibam os desavisados não há nada de incestuoso nisso: primo pode. Amém). Um de seus colegas de partido, subprefeito de um bairro parisiense, escreveu em carta à população: "Como se opor, amanhã, à poligamia na França, princípio que só é tabu na sociedade ocidental? Por que a idade legal mínima para se casar seria mantida? Por que proibir os casamentos consanguíneos, a pedofilia, o incesto, que são moeda corrente no mundo?"
Poderia até ser engraçado ver-lhes espernear seus medos e obsessões, não fossem essas pessoas detentoras do poder. Seus fantasmas morais e sexuais formam amálgamas cujas consequências são nefastas para os principais interessados, os que fogem à "norma" heterossexual, é claro, mas para a sociedade como um todo, que segue cruel e injusta. No fim das contas, pode-se medir o quão violenta é esta assimilação do projeto de vida de duas pessoas ao ato sexual com animais? Dois homens, duas mulheres ou um homem e uma cabra: dá no mesmo. Julgados imorais, os homossexuais não são privados apenas de seus direitos civis, mas de sua própria natureza humana.
25 de novembro de 2012
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