Curti os comentários de um dos meus textos anteriores, sobre humor e escatologia. Talvez meu ponto principal não tenha ficado muito claro: não que eu ache que "falar merda" seja intrinsicamente bom, mas que precisamos de mais mulheres falando merda. Em outras palavras, argumentei contra um moralismo que obrigada as mulheres a se conformarem a estereótipos de delicadeza, timidez e contenção.
Em geral, a divisão entre o que é 'apropriado' falar na intimidade e publicamente não é só pessoal mas também cultural, e pode ser bastante repressora, principalmente para as mulheres. Basta ver aqui o depoimento da Dani Calabresa sobre mulheres fazendo comédia. Ela diz:
Eu acho que a sociedade permite que os homens sejam loucos e engraçados desde sempre. Então é bonito um menino falar palavrão, é bonito um menino arrotar, soltar pum. A menina que faz isso é louca. A mulher tem medo de se expor ao ridículo. Eu sempre fui mais moleca, eu era gorda, louca, queria fazer os outros rir. Para mim era normal, mas a mulherada quer passar maquiagem, quer ficar bonita. Hoje eu sou mais vaidosa do que há muito tempo atrás. Na TV as pessoas me produzem, gente, me penteiam, eu não sabia fazer nada disso.
Aliás, o vídeo do qual este depoimento foi tirado me chocou tanto que resolvi analisá-lo em detalhe. Veja na íntegra:
0m01s
Dani Calabresa é apresentada como pizza nos seguintes termos: "O motoboy já entregou a nossa pizza?" Justo, podem dizer, já que esse é o nome artístico dela. Mas será que a mesma piada se aplicaria a um comediante homem chamado, sei lá, João Melancia? "O fruteiro já entregou nossa melancia?" Me cheira a padrão duplo.
1m
A segunda piada machista é do desagradabilíssimo Marcelo Mansfield, sobre as vezes em que "comeu calabresa". Duas piadas machistas em menos de 1 minuto e meio.
1m23s
Eu AMO quando ela responde no mesmo nível e diz que não faz "nenhum personagem tão bem como o Mansfield se faz de homem... Quase engana". Vale a pena ver o vídeo só por esse fora e pela expressão no rosto dele.
2m33s
Danilo Gentili, já citado aqui por sua piada racista, insinua que ela dormiu com alguém da MTV para manter o emprego. Ela não se submete e responde de novo à altura e com convicção, entrando na brincadeira e, por consequência, ridicularizando a fala dele.
3m23s
Ela desafia Mansfield de novo, esfregando o currículo na virilha. Referências a vagina são sempre tabu e achei ótimo ela usá-la contra o misógino de plantão.
5m20s
A câmera dá um close up longo nas pernas dela. Alguma dúvida de que isso nunca aconteceria com um humorista homem?
5m30s
Referência a quando a humorista era "gordinha". Sem comentários.
7m08s
Mansfield faz uma piada inteligentíssima #not sobre a "dicção" dela, subentende-se voz aguda, ou seja, de mulher. Ela, como sempre, responde na lata: "Você tem que ligar o aparelho auditivo". Muito menos criativo e perspicaz, Mansfield responde "haha, como você é engraçada, Dani". Coitado.
7m33s
Danilo Gentili pergunta se a Playboy nunca a procurou. Claro, porque mulher não pode só ter talento, tem que "mostrar o talento" na mente mesquinha dele.
7m55s
A partir desse momento a questão do gênero relacionada ao humor entrar em cena aberta e diretamente e Gentili diz que Dani é a melhor humorista mulher do Brasil.
8m11s
Mansfield mina a afirmação de Gentili, dizendo um "é" irônico. De novo, ela responde rápida e certeira: "Quer meu posto, né?" Ele responde dizendo que não é tão masculino. Ahn? O assunto não era a melhor humorista mulher? Melhor dar a ela o título de melhor humorista, ponto. Os dois homens humoristas desse programa, pelo menos, ficam léguas na retaguarda em comparação à rapidez, ousadia e inteligência dela.
8m30s
Gentili pergunta por que não há tantas mulheres humoristas no Brasil e Dani Calabresa dá o depoimento transcrito acima.
9m25s
Mansfield insinua que ela não é talentosa, por isso precisa se maquiar. Mais uma piada machista, sem contar o bullying.
9m32s
Gentili pergunta se foi o casamento que a deixou mais vaidosa e ela, para mim infelizmente, diz que sim.
10m27s
Mais uma piada abertamente machista: Gentili diz que amarrou uma vassoura no microfone para ela fazer stand-up. Inaceitável.
11m22s
Gentili insinua que ela se prostituiu para ganhar a vida. Inaceitável e tosco.
13m20s
Gentili pergunta quando ela terá um bebê. Por que as pessoas se sentem no direito de tal invasão da privacidade alheia quando se trata de ter filhos? E alguém imagina a mesma pergunta sendo feita a um homem na mesma situação? #padrãoduplo
13m30s
Roger, da banda, passa uma cantada. Pessoas, se liguem: cantada não é elogio, é desrespeito. Ela reage, deixando o cantador sem graça #yes
Em menos de 21 minutos, uma artista consagrada tem que passar por:
E ainda perguntam por que não há mais mulheres comediantes no Brasil.
14m12s
Gentili diz que, na época (quando ela era gorda, entende-se), a única maneira de dar no couro para ela era "entrar no coro". Inaceitável.16m17s
Márcio Ribeiro, outro comediante convidado, a assedia sexualmente, no que é, para mim, o momento mais chocante do programa. Passar a mão na perna de maneira indesejada é assédio sexual. E fica claro pela expressão e reação dela que a ação é indesejada e não consensual.18m32s
Ela faz piada sobre o pênis do marido, sinalizando a própria vida sexual. "É como andar de banana boat todo o dia!" Como é bom ter mulheres fazendo piadas sobre sexo de maneira não leviana.Contagem final
Em menos de 21 minutos, uma artista consagrada tem que passar por:
- 11 piadas machistas
- 7 ocorrências de bullying
- 1 take voyeurístico do seu corpo
- 1 ocorrência de assédio sexual
E ainda perguntam por que não há mais mulheres comediantes no Brasil.
28 de novembro de 2012
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Roberta
Isso aí nem é se expor ao ridículo, é se jogar sem dó na arena de leões. Pra quê? Pra que dar ibope para um programa desses? Eu faria stand up com o título "por que não fui ao programa tal". Deu mole demais pros caras.
ResponderExcluirIxe, Sandra, culpabilizar as mulheres é complicado. Eu prefiro pensar que ela encarou o jogo deles e se saiu muito bem, obrigada. Mas concordo com você que muito melhor do que jogar no jogo dos homens e ganhar deles é subverter o jogo em si.
ResponderExcluirNossa, num tô culpabilizando não. Mas a estratégia foi ERRADA. Claro que ela foi corajosa, mas isso de toda hora a gente ter de pagar preços altíssimos pra tudo já passou do limite. Inclusive, ela se vê obrigada a jogar contra as mulheres pra se defender. Olha lá pra você ver. E é isso que mostra o limite de até onde devemos fazer o jogo deles. E o resultado tá aí. Na vida pessoal, no dia a dia, nas relações, eu defendo o enfrentamento por meio do diálogo. Mas nesse nível aí, tem mais é de ter muita, muitas estratégia, estudar o programa antes, antever, perceber o que pode acontecer. Ou vamos pagar mico o resto da eternidade.
ResponderExcluirE o "deu mole demais" é no sentido de dar mais ibope mesmo. O close na perna dela que você citou, por exemplo, pode aumentar bastante o índice de audiência. Pode, não, aumenta. Foi um prato cheio pra eles. Se isso reverter em mais audiência pra ela também, em mais admiradores, legal. Mas de imediato, quem lucrou , e bastante, foram eles.
ResponderExcluirdeveriamos estar mais bem resolvidas e nao achar que tudo é um sinal de machismo!!! afff
ResponderExcluirO problema não é ver machismo em tudo, o problema é não ver.
ExcluirComo é, então,bem resolvida = tolerante/conivente/resignada com a sociedade como está? Aff, digo eu, eu passo.
ExcluirE a Tata Werneck? o que vcs acham dela?
ResponderExcluirOi, Tami, como estou fora, só fiquei conhecendo a Tatá Werneck recentemente e me pareceu bem legal. Um humor meio nonsense, né? Você conhece bem o trabalho dela? O que acha?
ExcluirObrigada por acompanhar o nosso blog!