por Barbara Falleiros
Grávida e flores: apogeu da feminilidade? |
Gostaria de começar o ano com uma série de posts sobre um assunto ao qual demos pouco espaço em 2012. Discutimos a descriminalização do aborto e o direito da mulher de decidir sobre a reprodução, mas não falamos de gravidez, do tratamento reservado às mulheres grávidas no cotidiano, da discriminação no trabalho, da violência obstétrica e das questões em torno do aleitamento materno. Visto que muitas amigas Subvertidas estão grávidas ou com filhos pequenos neste momento, aproveito a boa ocasião para abrir a discussão.
À primeira vista, pode parecer estranho criticar o tratamento reservado no dia-a-dia às mulheres grávidas, quando sabemos que, numa situação em que a gravidez é desejada e que a grávida "vive um momento mágico", como se diz, ela costuma ser paparicada. Em situação ideal, todo mundo fica contente e tudo vai bem. De repente, a grávida se vê tendo suas vontades satisfeitas, as pessoas interessam-se por ela, são gentis, fazem elogios. Em situação ideal, uma grávida é uma mulher feliz. E, em breve, quando se tornar mãe, será uma mulher realizada. Ou não?
Para começar, é preciso pensar na origem dessa "plenitude", desse sentimento de realização feminina que se espera da gravidez. Viria ele da própria essência feminina? Existe isso? Ora, as pensadoras feministas que refletiram sobre a questão descobriram que esta idealização da gravidez e da maternidade acabava colaborando para fazer da função materna a principal - senão única - condição feminina possível. E assim, ajudava a manter a mulher presa a um único destino.
Veja bem, não se trata aqui de uma crítica à gravidez nem à vontade de ser mãe! Trata-se simplesmente da percepção de fenômenos culturais e de discursos socialmente construídos. Argumentos biológicos que procuram explicar o instinto materno e o amor materno como tendências naturais e inatas existem: dizem que a ocitocina, um hormônio que provoca as contrações do parto e a saída do leite, tem efeitos no cérebro que colaboram para a criação do vínculo entre a mãe e o bebê. Mas eu não seria capaz de ir mais longe com argumentos químicos, biológicos ou genéticos (se alguém souber mais sobre isso, por favor comente abaixo). Por outro lado, não me parece possível analisar o comportamento humano sem ter em mente que somos seres sociais, históricos e culturais. Por isso, reluto em acreditar que a mulher esteja programada para ser mãe, amar seu filho e dedicar-se a ele, assim como um pai não nasce "geneticamente programado" para ser incapaz de trocar fraldas ou de levantar à noite... Em resumo:
Ao contrário do Brás Cubas pessimista que "não teve filhos, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria", a constituição de uma família é um valor importante na nossa sociedade. Li um artigo interessante sobre as representações do corpo grávido na mídia, em que a autora ressaltava a "dimensão simbólica das imagens do corpo e da gravidez como parte da construção moderna da identidade feminina". O que no fundo é um mecanismo de aprisionamento (quando a mulher tem que ser mãe, deve ser mãe, só é feliz se for mãe, só é mulher se for mãe), passa a ser representado, ao contrário, como a "afirmação de uma liberdade de escolha e de autorrealização". A autora do artigo dá o exemplo da apresentadora Angélica, grávida do primeiro filho em 2005, dizendo: "Agora a gente vive o filme da vida real. E seremos felizes para sempre!" Sério, quer mais comercial de margarina do que isso?
Mas, na prática, onde é que está o problema? A maternidade sendo vista como uma habilidade intrínseca à mulher, isto contribui, por exemplo, para a divisão desigual das tarefas dentro de casa (o bebê fica majoritariamente sob a responsabilidade da mãe). Outro exemplo: uma mãe de primeira viagem sofre uma imensa pressão social porque se espera dela, logo de cara, a perfeição na execução de tarefas maternas. Imagina o stress! Ao mesmo tempo em que todo mundo resolve palpitar - e tratar a neomãe como incompetente - esta mãe está tentando provar pra si mesma e para os outros que é capaz. Quantas mães em depressão pós-parto são estigmatizadas e se culpam por não conseguirem atingir essa "plenitude", por estarem profundamente tristes quando deveriam estar vivendo "o momento mais feliz de suas vidas"? Quem já passou pela experiência de ter um bebê pequeno sob sua total responsabilidade, full-time, sabe que o cansaço e o esgotamento podem ser torturantes, o que, somado à exigência de felicidade e de plenitude, faz da mãe uma bomba relógio prestes a explodir. Quanto sofrimento e quanto cansaço não seriam evitados se essa busca irrealista da perfeição maternal fosse esquecida!
Eu costumava ler um blog engraçadinho chamado "Mauvaises mères" ("Péssimas mães"), em que um trio de jovens mães francesas contavam de forma bem-humorada o quotidiano de mães... reais! Claro que elas não eram péssimas mães, mas o título do blog fala por si só: confessar que sua vida não gira em torno do bebê, que na realidade o bebê não torna sua existência absolutamente perfeita e feliz, faz mesmo de você uma "mãe indigna" (título de outro blog)? Na verdade, ao longo dos posts, elas acabavam convencendo o leitor do contrário, de que é possível ser uma ótima mãe conservando seus interesses, suas ambições profissionais, guardando um pouco de sua velha identidade de antes da maternidade.
Em um post sobre sua própria gravidez, uma das autoras conta como foi chocante descobrir que os nove meses maravilhosos eram na verdade um mito:
"Ah! A gravidez, um dos mais belos períodos da minha vida! - Minha mãe me criara em torno deste mito da maternidade. E bem, era chegada a minha vez de estar grávida, eu iria enfim viver este momento de graça. Uma certa sabedoria tomaria conta de mim. Por que afinal, a gravidez não é o melhor momento para se lembrar do que é essencial? Mas meu pai me contou que não tinha sido nada daquilo, que minha mãe ficara de cama a partir do quinto mês. Teriam mentido para mim?
Mês 1 à 3
Quero vomitar. Tenho frio o tempo todo. Estou cansada, quero dormir, meus seios dóem. Estou distraída. Brigo com todo mundo, choro em filme água-com-açúcar. Choro todo o tempo. No metrô, ninguém me cede o lugar, embora seja o momento mais difícil da gravidez. Sexo: só o que eu digo é que quero vomitar.
Mês 4
Eu não entro nas minhas roupas, meu sutiã me corta a pele, a alergia do creme antiestrias faz meu corpo inteiro coçar. No metrô, ninguém me cede o lugar. Sexo: bloqueio.
Mês 5 e 6
Faço xixi o tempo todo. Ninguém me cede o lugar no metrô. Sexo: eca!
Mês 7 à 9
Um monte de ecografias. O verão chegou enfim, e com ele a licença maternidade. Eu sonhara em passar as tardes no parque, lendo, sentada na grama. Andando igual a um pinguim, demoro tanto tempo no trajeto que, ao chegar, estou com vontade de fazer xixi. Sexo: me dou conta de que também não poderemos fazer amor após o parto. É hora de tirar o atraso. Mas o ato é bem mais acrobático do que glamour, é como transar com uma bola de futebol entre vocês.
É oficial. Minha mãe mentiu pra mim. A gravidez não é a fase mais bonita da vida."
Ao contrário do que o "mito da beatitude da gravidez" induz a pensar, reclamar dos incômodos físicos e psicológicos deste período não significa "não querer o bebê", "não amá-lo", "não estar ansiosa pela sua chegada". Para não cair nessa armadilha e em toda a frustração que ela gera, é preciso ter consciência de que o que se exige de irreal da supermãe não tem absolutamente nada a ver com fazer o melhor para o bebê nem com o que fará ambos felizes. A Roberta disse algo legal em um post sobre mulheres e humor escatológico: "Nós precisamos rir dessas experiências porque o riso naturaliza. E não há nada mais natural do que nossas necessidades fisiológicas. É como se nossa própria experiência corpórea em seu nível mais concreto nos fosse negada." Acho que isso serve também para a gravidez. Grávidas poderosas com gazes, hemorroida e incontinência: menos idealização e mais humor, menos frustração e mais liberdade!
... continua na próxima semana.
Para começar, é preciso pensar na origem dessa "plenitude", desse sentimento de realização feminina que se espera da gravidez. Viria ele da própria essência feminina? Existe isso? Ora, as pensadoras feministas que refletiram sobre a questão descobriram que esta idealização da gravidez e da maternidade acabava colaborando para fazer da função materna a principal - senão única - condição feminina possível. E assim, ajudava a manter a mulher presa a um único destino.
Veja bem, não se trata aqui de uma crítica à gravidez nem à vontade de ser mãe! Trata-se simplesmente da percepção de fenômenos culturais e de discursos socialmente construídos. Argumentos biológicos que procuram explicar o instinto materno e o amor materno como tendências naturais e inatas existem: dizem que a ocitocina, um hormônio que provoca as contrações do parto e a saída do leite, tem efeitos no cérebro que colaboram para a criação do vínculo entre a mãe e o bebê. Mas eu não seria capaz de ir mais longe com argumentos químicos, biológicos ou genéticos (se alguém souber mais sobre isso, por favor comente abaixo). Por outro lado, não me parece possível analisar o comportamento humano sem ter em mente que somos seres sociais, históricos e culturais. Por isso, reluto em acreditar que a mulher esteja programada para ser mãe, amar seu filho e dedicar-se a ele, assim como um pai não nasce "geneticamente programado" para ser incapaz de trocar fraldas ou de levantar à noite... Em resumo:
"A capacidade de dar à luz é algo biológico; a necessidade de convertê-lo no papel primordial da mulher é cultural." (fonte)
Ao contrário do Brás Cubas pessimista que "não teve filhos, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria", a constituição de uma família é um valor importante na nossa sociedade. Li um artigo interessante sobre as representações do corpo grávido na mídia, em que a autora ressaltava a "dimensão simbólica das imagens do corpo e da gravidez como parte da construção moderna da identidade feminina". O que no fundo é um mecanismo de aprisionamento (quando a mulher tem que ser mãe, deve ser mãe, só é feliz se for mãe, só é mulher se for mãe), passa a ser representado, ao contrário, como a "afirmação de uma liberdade de escolha e de autorrealização". A autora do artigo dá o exemplo da apresentadora Angélica, grávida do primeiro filho em 2005, dizendo: "Agora a gente vive o filme da vida real. E seremos felizes para sempre!" Sério, quer mais comercial de margarina do que isso?
Mas, na prática, onde é que está o problema? A maternidade sendo vista como uma habilidade intrínseca à mulher, isto contribui, por exemplo, para a divisão desigual das tarefas dentro de casa (o bebê fica majoritariamente sob a responsabilidade da mãe). Outro exemplo: uma mãe de primeira viagem sofre uma imensa pressão social porque se espera dela, logo de cara, a perfeição na execução de tarefas maternas. Imagina o stress! Ao mesmo tempo em que todo mundo resolve palpitar - e tratar a neomãe como incompetente - esta mãe está tentando provar pra si mesma e para os outros que é capaz. Quantas mães em depressão pós-parto são estigmatizadas e se culpam por não conseguirem atingir essa "plenitude", por estarem profundamente tristes quando deveriam estar vivendo "o momento mais feliz de suas vidas"? Quem já passou pela experiência de ter um bebê pequeno sob sua total responsabilidade, full-time, sabe que o cansaço e o esgotamento podem ser torturantes, o que, somado à exigência de felicidade e de plenitude, faz da mãe uma bomba relógio prestes a explodir. Quanto sofrimento e quanto cansaço não seriam evitados se essa busca irrealista da perfeição maternal fosse esquecida!
Eu costumava ler um blog engraçadinho chamado "Mauvaises mères" ("Péssimas mães"), em que um trio de jovens mães francesas contavam de forma bem-humorada o quotidiano de mães... reais! Claro que elas não eram péssimas mães, mas o título do blog fala por si só: confessar que sua vida não gira em torno do bebê, que na realidade o bebê não torna sua existência absolutamente perfeita e feliz, faz mesmo de você uma "mãe indigna" (título de outro blog)? Na verdade, ao longo dos posts, elas acabavam convencendo o leitor do contrário, de que é possível ser uma ótima mãe conservando seus interesses, suas ambições profissionais, guardando um pouco de sua velha identidade de antes da maternidade.
Em um post sobre sua própria gravidez, uma das autoras conta como foi chocante descobrir que os nove meses maravilhosos eram na verdade um mito:
"Ah! A gravidez, um dos mais belos períodos da minha vida! - Minha mãe me criara em torno deste mito da maternidade. E bem, era chegada a minha vez de estar grávida, eu iria enfim viver este momento de graça. Uma certa sabedoria tomaria conta de mim. Por que afinal, a gravidez não é o melhor momento para se lembrar do que é essencial? Mas meu pai me contou que não tinha sido nada daquilo, que minha mãe ficara de cama a partir do quinto mês. Teriam mentido para mim?
Mês 1 à 3
Quero vomitar. Tenho frio o tempo todo. Estou cansada, quero dormir, meus seios dóem. Estou distraída. Brigo com todo mundo, choro em filme água-com-açúcar. Choro todo o tempo. No metrô, ninguém me cede o lugar, embora seja o momento mais difícil da gravidez. Sexo: só o que eu digo é que quero vomitar.
Mês 4
Eu não entro nas minhas roupas, meu sutiã me corta a pele, a alergia do creme antiestrias faz meu corpo inteiro coçar. No metrô, ninguém me cede o lugar. Sexo: bloqueio.
Mês 5 e 6
Faço xixi o tempo todo. Ninguém me cede o lugar no metrô. Sexo: eca!
Mês 7 à 9
Um monte de ecografias. O verão chegou enfim, e com ele a licença maternidade. Eu sonhara em passar as tardes no parque, lendo, sentada na grama. Andando igual a um pinguim, demoro tanto tempo no trajeto que, ao chegar, estou com vontade de fazer xixi. Sexo: me dou conta de que também não poderemos fazer amor após o parto. É hora de tirar o atraso. Mas o ato é bem mais acrobático do que glamour, é como transar com uma bola de futebol entre vocês.
É oficial. Minha mãe mentiu pra mim. A gravidez não é a fase mais bonita da vida."
Ao contrário do que o "mito da beatitude da gravidez" induz a pensar, reclamar dos incômodos físicos e psicológicos deste período não significa "não querer o bebê", "não amá-lo", "não estar ansiosa pela sua chegada". Para não cair nessa armadilha e em toda a frustração que ela gera, é preciso ter consciência de que o que se exige de irreal da supermãe não tem absolutamente nada a ver com fazer o melhor para o bebê nem com o que fará ambos felizes. A Roberta disse algo legal em um post sobre mulheres e humor escatológico: "Nós precisamos rir dessas experiências porque o riso naturaliza. E não há nada mais natural do que nossas necessidades fisiológicas. É como se nossa própria experiência corpórea em seu nível mais concreto nos fosse negada." Acho que isso serve também para a gravidez. Grávidas poderosas com gazes, hemorroida e incontinência: menos idealização e mais humor, menos frustração e mais liberdade!
... continua na próxima semana.
13 de janeiro de 2013
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Barbara,
maternidade,
saúde,
sexo
Muito bom o post!!! Aguardando pelos próximos com vontade, porque esses dias me meti numa briga ao tentar defender o direito de uma mulher mãe que trabalha se divertir (!). Sim, tem gente que 'concede' à mãe o direito de trabalhar, mas não admite que ela deixe o filho pra sair com os amigos... Tággidi
ResponderExcluirRealmente, seu texto toca num ponto muito importante! Até mesmo mulheres jovens como nós te olham torto quando você reclama de alguma coisa durante a gravidez, esse período intocável. Algumas amigas e parentes ainda ficam meio chocadas quando eu reclamo de me sentir "gorda" (pro meu padrão, nunca havia pesado tanto quanto agora no fim da gravidez e 13 Kilos depois - e isso que nunca fui magra como a moda quer). Ou acham esquisito quando você fala que não vê a hora do bebê nascer não só porque quer conhecer seu bebê, mas porque já tá meio que de saco cheio dessa história de gravidez, andar igual a pato, bebê chutando, falta de posição pra dormir. Mas a sociedade acha que tem que levar no salto, né? Infelizmente...
ResponderExcluirIsso do peso é um negócio curioso. Acho que a gravidez é o único momento em que uma mulher não é julgada abertamente pelo seu corpo. Mas isso porque, se em outras épocas da vida a mulher é levada a conceber seu corpo como um "instrumento de sedução", na gravidez acontece o oposto, já que "grávida não tem sexualidade", né? É uma santa de pureza (veja a foto no post: a mulher de branco, as flores...), seu corpo é só um receptáculo para o "milagre da vida". E por aí vai...
ExcluirPois é. A sociedade espera repostas padronizadas das mulheres, de acordo com a fase em que se encontram. Se é jovem e solteira, esperam uma sex bomb, se engravida é um poço de pureza desprovido de sexualidade; ao se tornar mãe, deve se anular para dar o melhor ao filho: daí tiramos esses preconceitos contra mães que pretendem continuar a viver (!) após os filhos: estudar, sair, trabalhar (aqui na Alemanha essa coisa de trabalho é ainda um tabu e muitas mulheres deixam de ter filhos por conta deste pré-conceito e a falha estrutura pública no que diz respeito aos berçários e jardins de infância). Quando escuto / leio esse tipo de comentário, penso: As pessoas esquecem que essas crianças também tem um pai? Porque tantas culturas ainda tratam o homem como mero reprodutor e provedor de meios financeiros?
ExcluirAdorei os comentários... Achei o texto colocando no Google "Saco cheio da gravidez"... Que é o tenho sentido, recém aos 4 meses de gestação. A barriga é desconfortável, o cansaço para quem sempre teve a vida a mil, é uma coisa muito encomoda, a cara bolachuda não me faz enchergar nenhum "gramour" do período... Enfim, algo que só se passa pelo prazer de ter um pequeno no colo.
ResponderExcluirExcelente texto, ótima conversa. Parabéns, meninas.
ResponderExcluirHá que desmistificar mesmo. Sem encarar a realidade, o sofrimento é maior. Bjs
Marilia (mae e avó)