por Barbara Falleiros
À medida que o corpo feminino se transforma durante a gravidez, muda também o modo de concebê-lo. Ao mesmo tempo, para a mulher, a gravidez é um momento de redefinição da identidade. Confesso que gostaria de ter estudado psicologia e que às vezes me vejo coletando dados para minha psicologia de boteco. É por isso que sempre sorrio quando uma amiga - agora mãe - fala em nome do bebê ao invés de falar em nome de si mesma: "o neném te manda um beijo!" Manda nada (rs)! Mas eu acho singelo. Você tem uma pessoa dentro de você, pelo menos durante um certo tempo aquela pessoa É você...
"Fala de bebê" ofende a minha inteligência |
Se por um lado acho inofensivo a própria mãe falar (de leve) em nome do bebê, fico perplexa diante da infantilização da mulher e de todo o uso exagerado de diminutivos ao se dirigir a uma grávida. A menos que você seja português, qual a justificativa pra dizer: "Ai, que gravidinha linda, olha essa barriguinha, você está comendo direitinho?" Já é irritante quando falam com bebês como se fossem imbecis, tratar dessa forma uma pessoa adulta é impor-lhe a redução de sua identidade e individualidade.
Mas deixemos essas análises para os mais competentes e voltemos ao corpo. Existem dois aspectos da forma como se lida com este novo corpo transformado que considero desconcertantes. Ambas dizem respeito à intimidade da mulher, ou à falta dela... Nós falamos um pouco no post da semana passada e nos comentários que ele suscitou que o corpo da mulher grávida é quase que santificado, "receptáculo da vida" em concepções de fundo religioso, transforma-se em um corpo dessexualizado (pois já está cumprindo sua função reprodutiva). Assim, privado da dimensão sexual que é situada, para nós, no âmbito da intimidade, o corpo grávido de repente se torna um corpo público.
Sim, estou grávida. Não, você não pode tocar minha barriga! |
"Que linda, posso passar a mão na sua barriga?" - diz o(a) desconhecido(a). Talvez eu esteja exagerando e eu mesma seja um bom objeto de estudo para minha psicologia de boteco, mas se estas são formas de aproximação "carinhosas", eu me pergunto, quem é que quer carinho de desconhecido? As implicações são outras, é verdade, mas em termos de atitude não vejo muita diferença entre pedir pra tocar uma pessoa que você não conhece e pedir pra ver seu pé...
Tem até aquelas que levantam a bandeira: "Barriga de grávida não é corrimão!" Caso perdido, a barriga aumenta e a grávida vai perdendo pouco a pouco sua privacidade... "Você está se cuidando?", "O bebê foi planejado?" Mas o que é que o outro tem a ver com isso? E sobretudo, como é que ele se acha no direito de perguntar?
O segundo aspecto que mais me desconcerta na relação - dos outros - com o corpo da mulher grávida é a forma como ele é tratado na "volta à sexualidade" no pós-parto (visto que a sexualidade supostamente não existe durante a gravidez...). A Tággidi falou uma vez da moda crescente de cirurgias íntimas, busca pela adequação a determinado "modelo estético" de vagina. Isso já é absurdo e triste o suficiente, porém é possível ir além. Sinto arrepios quando ouço a expressão "ponto do marido", que (pelo que entendi) consiste em praticar a episiotomia costurando a vagina mais apertada para "dar ao marido a sensação de penetrar uma virgem". E que isso cause dores à mulher, não preciso nem dizer. (Já posso ir embora desse mundo? Não quero mais ficar aqui, não!)
O negócio é que, no senso comum, por aí, a grávida logo passa de santa à baranga. Se ninguém ousou criticar seu corpo diretamente durante a gravidez, os ataques ressurgem quando se espera que a mulher volte à ativa. Numa concepção absolutamente machista das relações sexuais, na qual o corpo da mulher existe para satisfazer o homem e a satisfação do homem consiste basicamente na penetração da mulher, ei-la então como objeto imprestável, desqualificada, "flácida", "alargada", "estragada". Para coroar, muitas vezes é isso o que motiva a preferência por cirurgias cesarianas. Seguem algumas pérolas encontradas em uma discussão sobre a "flacidez da vagina após o parto normal":
"Minha namorada teve dois filhos. Cesárea. Minhas mulheres só fazem cesárea. Parto normal, nem pensar!!!!!!!! Mulher fica molhada, super larga, terrível!!!!!"
"[A vagina] Não volta ao normal sem algum procedimento estético após o parto normal! Sou casada, tenho 2 filhos ambos de parto normal. No primeiro parto não senti diferença, mas no segundo... Nossa, estou gigante, já fui traída por conta disso... Sabe, é até um desabafo. Ainda assim, com tudo isso, meu esposo não assume essa minha deformidade. (...) Dizem que o parto normal destrói casamentos (...). Ouvi dizer que a sensação é de fazer sexo com um copo americano quando antes do parto a sensação era de um anel."
"Sou ginecologista e há anos venho dizendo que após um parto normal de
crianca grande ou dois de criança de uns 3 kg, a mulher fica com a
vagina bem flácida e logo indico a correção cirúrgica. Só que o pós-operatório é muito doloroso. Devido a isso acho cesariana muito melhor,
pois os maridos normalmente não reclamam por pena da parceira, mas
depois que conserto eles ADORAM!"
Deformidade e conserto. Sexo é o que "segura" o homem no casamento e casamento é um compromisso do qual um homem sempre busca escapar... Sexo é o prazer do homem. Penetração e ponto. Exemplos de relações frágeis porque norteadas por concepções machistas. Exemplo de como decisões médicas importantes podem ser guiadas por uma postura machista que contraria as recomendações da Organização Mundial da Saúde (esta condena a "epidemia de cesáreas").
Não estou contestando a realidade das mudanças corporais no pós-parto, contesto a visão do corpo feminino como objeto de um prazer primário masculino. Essas alterações corporais devem ser levadas a sério, mas jamais motivadas por uma espécie de "mito pornográfico da virgenzinha" ao qual a mulher deva se conformar. Eu não sei como é no Brasil, mas na França há uma prática de reembolso, pelo sistema público de saúde, de sessões de fisioterapia para a reeducação do períneo após o parto normal. Parece importante, para os franceses, que a mulher possa retomar rapidamente uma sexualidade agradável. E é. Agradável tanto para ela quanto para o parceiro, repare na nuance... Mas não é só isso, a preocupação é centrada na saúde feminina, na prevenção de complicações como incontinência urinária ou até prolapso genital, com a perda de sustentação dos órgãos. Bem diferente das preocupações geradas pelo temor da "fuga do marido descontente"...
20 de janeiro de 2013
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