Nascer sem violência

por Barbara Falleiros

"Para mudar o mundo, é preciso mudar a forma de nascer"
Michel Odent (obstetra francês) 

Racismo de cada dia:
"Não quisemos ofender"
Depois de informarem as mães sobre como e quando alisarem os "cabelos crespos ou rebeldes" de suas filhas para deixá-las "mais bonitas", a maternidade paulistana Santa Joana acaba de proibir a entrada de doulas no centro obstétrico. Como fizera dias antes no caso da mensagem racista, o hospital se defendeu evocando nobres intenções: não se trata de proibir as doulas, mas de restringir a presença na sala de parto a apenas um acompanhante, com o intuito de minimizar os riscos de infecção hospitalar. Em outras palavras, a parturiente tem a liberdade de escolher quem vai acompanhá-la: a doula ou o marido. O que pedir mais?

Poder-se-ia pedir à maternidade, por exemplo, que fornecesse os índices comparados de infecções em partos humanizados com doulas e em cesárias eletivas, assim como os índices de internações na UTI de mães e bebês nascidos por cesariana versus parto natural...

Conversei com a doula Thatiane Menéndez do Blog Espaço Abertto, que citou a frase que abre este post e que me explicou a importância das doulas nas práticas de parto humanizado:

No pré-natal, a doula orienta, informa, acolhe e ajuda a mulher a se preparar para o parto. Em um parto humanizado, a mulher é sujeito ativo do processo, tomando as decisões em conjunto com a equipe. Para isso, ela deve conhecer e entender seu corpo e o processo do parto, precisa estar verdadeiramente empoderada e consciente, especialmente no Brasil, onde temos que lutar pelo simples e óbvio direito de caminhar durante o trabalho de parto.

A doula ajuda a mulher neste processo de empoderamento. Durante o trabalho de parto, ela oferece apoio físico e emocional, ajudando-a a lidar com a dor. Seu trabalho continua no acompanhamento pós-parto, ajudando a mulher a lidar com a nova fase, com a descoberta da maternidade, com a amamentação e os cuidados com o bebê.

De toda a equipe multiprofissional, a doula é quem mais tem contato com a gestante e que acaba criando com ela um vínculo maior, o que só traz benefícios durante o parto. A questão da proibição das doulas é incoerente, primeiro porque ela é uma profissional da saúde capacitada para este atendimento e não uma acompanhante, como o pai ou outros familiares. Segundo, o argumento do risco de infecções não tem embasamento científico e perde todo o sentido quando se permite a entrada de profissionais para filmagem e fotografia. Diversos estudos demonstram que a presença da doula pode reduzir em 50% as taxas de cesarianas (que no Brasil chegam a 80% no sistema privado de saúde, quando a OMS recomenda apenas 15%), 25% a duração do trabalho de parto, 60% os pedidos de analgesia, 30% o uso de analgesia, 40% o uso de forceps e 40% o uso de ocitocina (Klaus et Kennel, 1993)

Como vemos, é todo o contrário da prática corrente, altamente medicalizada, reflexo de um modo muito característico de conceber a saúde e a sociedade. Hoje, no parto em hospitais, segue-se cada vez mais a cadência: privilegia-se a cesariana, ou se não é cesariana é episiotomia sem autorização, prende-se a parturiente em posição ginecológica e que ela grite mais baixo, oras! Por fim, depressa, um sorriso rápido para a foto e lá se vai o bebê embora... Num mundo em que só o que importa é o que é rentável, como o momento do parto escaparia aos moldes de uma linha de produção? Como reivindicar a vivência de uma experiência humana quando o que se quer do sujeito é a passividade anestesiada?
 
Essas práticas médicas influenciam e alimentam uma visão desnaturalizada do parto, um parto anotado na agenda: dizem que foi impressionante o número de cesarianas marcadas para o dia 12/12/12. Não duvido. Que importa se o bebê ainda não está pronto para nascer, desde que nasça numa data "combinandinha"? O mundo não acabou. Seguimos vivemos numa distopia.

Ao contrário do trabalho das doulas que auxiliam a mulher a "tomar posse" do próprio corpo, a violência obstétrica acontece justamente quando há uma apropriação do corpo da mulher e do processo do parto pelos profissionais da medicina, que passam a considerar todos os partos como patológicos e toda parturiente como uma paciente (ou seja, como aquela que sofre a ação): daí praticarem-se atos médicos e farmacológicos de forma rotineira, impedindo a mulher de participar ativamente do parto. O desrespeito e a desconsideração da parturiente podem tomar formas violentas e agressivas: comentários irônicos acerca do comportamento da grávida, broncas por causa de gritos ou choros, respostas evasivas a perguntas sobre o procedimento, rompimento da bolsa sem consentimento, toques vaginais frequentes, compressão do abdomen no momento das cólicas, episiotomia e raspagem do útero sem anestesia, impedimento de estar acompanhada por uma pessoa de confiança, caminhada e movimentos proibidos, impedimento de contato imediato com o recém-nascido, etc.

No Brasil, 52% dos bebês nascem por cesariana. A OMS recomenda uma porcentagem de 15%
No nosso vizinho Uruguai, a Anistia Internacional produziu um vídeo de conscientização e protesto contra a violência obstétrica, com imagens fortes, que falam por si mesmas. Não é à toa que o primeiro comentário sobre o vídeo, no Youtube, contesta a veracidade das práticas mostradas: "Como pode ser assim? Estão exagerando!" (como a gente ouve tanto!). Mas não... No Brasil, por iniciativa dos blogs Parto no Brasil e Cientista que virou mãe, produziu-se um documentário comovente com depoimentos de mães que sofreram violência obstétrica.




Fico chateada em terminar meus posts sobre gravidez e maternidade com este vídeo. Mas é mais uma prova de que a gente aqui no Blog não é um bando de "neuróticas", a violência contra as mulheres assume as formas mais diversas e mais cruéis, e ela atinge cotidianamente sua irmã, sua amiga, sua esposa, sua filha. Felizmente, existe quem luta pelo fim dessas práticas e pelo direito de dar à luz e de nascer sem violência. Como disse a Thati Menéndez, "a questão vai muito além da luta por dignidade e respeito no parto e nascimento, é uma questão ideológica e o início de um mundo melhor. Pois como vamos ter um mundo sem violência e com mais amor e respeito se nosso primeiro contato com este mundo é muitas vezes violento e frio?" Mudar o mundo, mudar as relações, desde o primeiro segundo.

Um comentário:

  1. A parte humanizadora do parto me faz pensar muito... no meu nascimento. Acho que devia ter 11~12 anos de idade quando minha mãe me contou pela primeira vez como foi meu parto. Como a enfermeira foi grossa com ela, como fez a lavagem intestinal sem delicadeza nenhuma. Como falou que na hora de fazer não achou ruim. Como tentaram forçar meu parto normal por um bom tempo antes de resolverem fazer a cesárea, neste caso necessária (meu pé tinha se enrolado no cordão umbilical e parece que ficou umas boas duas semanas roxo).

    E lembro o que eu pensava quando ela me contava isso: que exagero, não pode ser tão ruim assim. Queria eu estar certa naquela época. Agora vejo que minha mãe, provavelmente, nem contou tudo o que passou.

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