Um prazer enorme ter aqui o primeiro Guest Post do blog, com uma participação mais que especial: Thaís Bueno, especialista e tradutora desta fascinante pensadora que é Gloria Anzaldúa.
“Quando ouvi pela primeira vez duas mulheres, uma porto-riquenha e outra cubana, dizendo “nosotras”, fiquei chocada. As chicanas usam “nosotros” para se referir tanto a homens quanto a mulheres. O plural masculino roubou nosso ser feminino. A linguagem é um discurso masculino.”[1]
Pensar o feminismo, não como um bloco único e homogêneo, mas como uma prática subversiva de desconstrução de diversos sistemas de opressão (entre eles os relacionados a classe social e etnia), que têm sido construídos política e ideologicamente há séculos - essa é a principal ideia que me vem à cabeça quando penso em Gloria Anzaldúa e quando me questiono sobre o que aprendi com minha pesquisa sobre essa autora.
Quando se trata da fronteira entre México e Estados Unidos, as imagens mais recorrentes geralmente incluem grupos mexicanos, cucarachas, wetbacks, desesperados, arriscando-se de forma irracional para conseguirem viver de forma ilegal na “terra das oportunidades”: a América (aliás, esse é um termo que me incomoda, afinal, não somos todos americanos?).
Quando se trata da fronteira entre México e Estados Unidos, as imagens mais recorrentes geralmente incluem grupos mexicanos, cucarachas, wetbacks, desesperados, arriscando-se de forma irracional para conseguirem viver de forma ilegal na “terra das oportunidades”: a América (aliás, esse é um termo que me incomoda, afinal, não somos todos americanos?).
A fronteira política: à esquerda, San Diego (EUA); à direita, Tijuana (México) |
“The US-Mexican border es una herida abierta where the Third World grates against the first and bleeds.”[2]
Lendo o texto de Anzaldúa, percebemos que o feminismo, ou a prática feminista, não vem sozinhos, como um pacote fechado que se “compra”, apesar do que muitas pessoas pensam. Hoje, padrões estereotipados do que seja o feminismo (e de como seria uma feminista) reproduzem, com a 'ajuda' da mídia, a ideia de que, para ser feminista, você precisa necessariamente rasgar sutiãs e declarar ódio aos homens. Minha sugestão: leia Borderlands/La Frontera – The New Mestiza (disponível na íntegra para download aqui).
Ao ler Borderlands..., você percebe, logo pelo título, qual era a proposta de Anzaldúa: mostrar, de forma escancarada, que toda divisa, toda fronteira, todo limite, todo corte é também uma abertura, uma fenda para novos espaços, novas discussões e articulações. Assim, a barra entre “Borderlands” e “La Frontera” que lemos no título do livro não é uma marca de divisão e isolamento, que produz dicotomia e oposição, mas um movimento sinuoso de articulação e problematização, que produz um discurso híbrido, ou alien, como ela própria escreveu.
Ao ler Borderlands..., você percebe, logo pelo título, qual era a proposta de Anzaldúa: mostrar, de forma escancarada, que toda divisa, toda fronteira, todo limite, todo corte é também uma abertura, uma fenda para novos espaços, novas discussões e articulações. Assim, a barra entre “Borderlands” e “La Frontera” que lemos no título do livro não é uma marca de divisão e isolamento, que produz dicotomia e oposição, mas um movimento sinuoso de articulação e problematização, que produz um discurso híbrido, ou alien, como ela própria escreveu.
“...não é suficiente se posicionar na margem oposta do rio, gritando questionamentos, desafiando convenções patriarcais, brancas. Um ponto de vista contrário nos prende em um duelo entre opressor e oprimido; fechados/as em um combate mortal, como polícia e bandido, ambos são reduzidos a um denominador comum de violência.
[O contraposicionamento] não é um meio de vida. A uma determinada altura, no nosso caminho rumo a uma nova consciência, teremos que deixar a margem oposta, com o corte entre os dois combatentes mortais cicatrizado de alguma forma, a fim de que estejamos nas duas margens ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, enxergar tudo com olhos de serpente e de águia.”
E é exatamente essa a proposta que você encontrará em todo o livro, marcada na própria materialidade do texto: em Borderlands..., para apresentar seu feminismo chicano e propor a figura na new mestiza, Anzaldúa recorre a diversos gêneros textuais (testemunho, narrativas populares, ditos, texto histórico, diário, poesia) e idiomas (inglês, espanhol e nahuatl – língua indígena falada no império asteca, na era pré-colombiana). Tudo costurado em um constante movimento de code-switching (alternância de idiomas em uma mesma frase – o que nunca foi novidade para qualquer falante que viva em região de fronteira).
“El anglo com cara de inocente nos arrancó la lengua. Línguas selvagens não podem ser domadas. Elas apenas podem ser arrancadas.”
A chicana que Anzaldúa nos mostra é, portanto, uma mulher que sofre por ser a minoria em diversos sistemas de opressão. Se o homem chicano sofre em termos de etnia e classe, a mulher encontra-se em uma situação ainda pior: ela é minoria em termos de etnia, classe, gênero e, em muitos casos sexualidade. E é nessa intersecção de discursos minoritários que Anzaldúa, ela própria chicana, mulher e lésbica, faz sua crítica não só à cultura branca anglo-saxã, imperialista e exploradora, mas à cultura mexicana de seus descendentes, conservadora, patriarcal e religiosa.
Só em Ciudad Juarez (México), 1.100 mulheres já foram dadas como desaparecidas desde 1993 |
A fronteira se estende de uma costa a outra no continente americano, chegando até o mar: "The sea cannot be fenced / El mar does not stop at borders", escreveu Anzaldúa |
Resumindo, o belo trabalho de Anzaldúa é justamente desconstruir dualidades como homem x mulher e machismo x feminismo, mostrando que qualquer desses pares são compostos de identidades complexas, mestiças, heterogêneas. A velha e tradicional receita de identidade (uma nacionalidade + uma religião + um gênero + uma cultura) já não é mais um modelo, e suas fendas e falhas ficam evidentes no processo interminável de constituição das identidades da mulher chicana. A consciência declaradamente subalterna e nomádica dessa new mestiza permite que ela seja, ao mesmo tempo, uma e várias (tanto em termos de gênero quanto de sexualidade) e que ela vá além das dualidades tradicionais para subverter patriarcalismo, exploração sexual, linguística, religiosa, política e econômica. E, nesses interstícios de todas essas categorias de identidade, ela encontra seu espaço, seu tempo e sua casa. Habitando a ferida aberta na fronteira, ela abre espaços para novas possibilidades e transpõe os limites de tudo o que, na história tradicional escrita pelos homens, se acredita ser uno, completo e natural.
This is her homethis thin edge of
barbwire.[3]
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[2] “A fronteira entre os Estados Unidos e o México é uma ferida aberta, na qual o terceiro mundo entra em atrito com o primeiro e sangra.”
[3] “Esta é a casa dela / esta sutil borda / de arame farpado.”
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Thaís Bueno é graduada em Letras e mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, cursa o doutorado, também em Linguística Aplicada, pesquisando as relações entre tradução e a obra da feminista chicana Gloria Anzaldúa e traduzindo o livro mais conhecido da autora: Borderlands/La Frontera - The New Mestiza. Mãe, feminista e latino-americana apaixonada. Trabalha como tradutora, revisora e escrevinhadora na Escrevedoria.
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Thaís Bueno é graduada em Letras e mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, cursa o doutorado, também em Linguística Aplicada, pesquisando as relações entre tradução e a obra da feminista chicana Gloria Anzaldúa e traduzindo o livro mais conhecido da autora: Borderlands/La Frontera - The New Mestiza. Mãe, feminista e latino-americana apaixonada. Trabalha como tradutora, revisora e escrevinhadora na Escrevedoria.
1 de fevereiro de 2013
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Guest Post,
literatura,
teoria feminista
Muito interessante! Me parece um feminismo ativista, consciente, político e não ressentido, pois propõe questionamentos de forma a buscar saidas para conflitos e não apenas para apontar conflitos.
ResponderExcluirQuero saber mais!!! vire uma colaboradora fixa aqui!
meninas, eu adoro o blog de vcs. Sempre acompanho admirada.
Parabéns!