por Thaís Bueno
La Malinche, de Rosario Marquardt, 1992 |
Se existisse um hall of fame para tradutorxs, com certeza no topo da lista de homenageadxs estaria uma índia, que, não bastasse ter sido a tradutora do original, foi também amante dele.
Trata-se de La Malinche, como é mais conhecida (mas também foi chamada de Malinalli e Malintzin na tribo onde cresceu). La Malinche foi uma princesa de origens asteca e maia, nascida no final do século XV, na região onde hoje fica o México, e ainda criança foi vendida como escrava, por seu padrasto, a um comerciante local. Em seguida, com a invasão do México pelos espanhóis, La Malinche foi parar nas mãos de Hernan Cortéz, espanhol que foi figura central no episódio da conquista do México.
Ao perceber que Malinche se virava muito bem com idiomas, os espanhóis a recrutaram como intérprete de Cortéz. A partir de então, ela passou a traduzir, para o invasor, não apenas as palavras do imperador asteca Montezuma, mas tudo o que os astecas discutiam a respeito da chegada dos espanhóis.
Obviamente, essa "mexicana nativa", se é que se pode falar assim, foi extremamente influente nos planos de conquista orquestrados por Cortéz, planos esses que terminaram em um dos maiores genocídios de que se tem notícia. E é muito interessante pensar que, muitos anos após a conquista do México, durante o processo de independência e de formação do imaginário nacional do país (uma nova ordem patriarcal e religiosa), a figura de Malinche reapareceu, passando a representar a mulher traidora e vil, que se entregou (linguística, cultural, militar e sexualmente) ao inimigo, e assim entregou ao invasor todo o México. Ao contrário da imagem da Virgem de Guadalupe, a virgem mestiça que representaria a face “santa” da cultura mexicana, Malinche carregaria a imagem de puta (e não deixa de ser engraçado e irônico que, em uma cidade do Texas, EUA, exista um bairro em que as ruas Guadalupe e Malinche se cruzam). “Hijo de La Malinche”, “malinchista”, “à La Chingada” são todas expressões pejorativas (que aqui no Brasil têm correspondentes como "filho da puta" e "para a puta que o pariu") que remetem à figura da índia e são bastante usadas no México.
Vista do Google Maps da irônica esquina em que a rua Guadalupe e a avenida Malinche se cruzam em Laredo, Texas, EUA |
Pensando em toda essa história e também que a História que conhecemos é sempre contada segundo uma ideologia, não me surpreende que La Malinche tenha se transformado em palavrão na boca dos mexicanos. Ela foi uma mulher dotada de um poder extraordinário, dado o contexto político. Como intérprete de Cortéz, ela estava na posição singular de decidir o que ambas as partes do conflito iriam saber e o que seria mantido em segredo. Ela não apenas estava passando informações de uma língua para outra, mas tinha o poder de decidir se mudaria ou não o curso da história, a cada frase. Uma mulher como ela, com tamanho poder, não poderia ser admirada, nem respeitada. Ela teria que ser rebaixada e ridicularizada, tanto naquele momento específico, quanto em todo o desenrolar da história do México.
Essa questão me faz lembrar um ótimo professor que, certa vez, em sala de aula, contou para a turma uma das inúmeras e péssimas piadas sobre a “loira burra”, que todo mundo conhece. A turma riu. Em seguida, o professor perguntou: “vocês sabem por que riram?” A turma em silêncio. Ele próprio respondeu à pergunta, explicando que, pelo simples fato de a loira ser loira, ou seja, se encaixar no padrão de beleza que o nosso país mais valoriza, ela não pode nem deve ter outras características positivas, como inteligência ou bom humor, pois, caso isso aconteça, seu poder será muito grande e ela poderia ameaçar o status quo.
A história de La Malinche pode nos ensinar muito sobre o porquê de a “loira” sempre ser “burra” em nossas piadas. No entanto, há alguns anos, a figura de La Malinche tem sido resgatada por estudiosas (e isso me torna muito otimista) que passaram a defender para a indígena a imagem da mulher que representa a abertura ao outro e que, em uma situação de poder, o utiliza para transpor limites de gênero e cor, celebrando o hibridismo e a mestiçagem em detrimento de um ideal de pureza.
Norma Alarcón[1], feminista chicana, buscou em Todorov uma boa e nova definição para papel de La Malinche na história mexicana e latino-americana:
Norma Alarcón[1], feminista chicana, buscou em Todorov uma boa e nova definição para papel de La Malinche na história mexicana e latino-americana:
primeiro exemplo e, portanto, símbolo da hibridação de culturas, ela proclama o estado novo mexicano e, mais do que isso, o estado presente de todxs nós, uma vez que, se não somos todxs bilíngues via de regra, somos, inevitavelmente, bi ou triculturais. La Malinche glorifica a mistura em detrimento da pureza, bem como o papel dx intermediárix. Ela não se submete ao outro simplesmente. Ela adota a ideologia do outro para melhor compreender sua própria cultura, conforme se pode ver na eficácia de seu comportamento (mesmo que "compreender" signifique aqui "destruir").
[1] ALARCÓN, Norma. “Traddutora, traditora: a paradigmatic figure of chicana feminism”, in Inderpal Grewal & Caren Kaplan (org.) Scattered hegemonies. Postmodernity and transnational feminist practices. Minneapolis & London: University of Minnesota Press, 1994, p. 43-56.
4 de fevereiro de 2013
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Muito bom o texto Tha e a contextualização histórica a respeito dessa mulher poderosa. Muito bom mesmo. Parabéns a todas pelo blog. Excelente!
ResponderExcluirAdorei. Havia ouvido uma coisinha mínima sobre essa mulher tão poderosa em sua função. Não dá pra não se perguntar quais foram os motivos que a levaram a auxiliar os espanhóis, que certamente, jamais comungarão com os motivos que levam todo um povo a condená-la posteriormente. Aliás, cabe bem a figura do bode expiatório a uma mulher dessa envergadura.
ResponderExcluirQuanto às loiras, muito obrigado. Na região onde vivo, há muitas, e não há uma relação entre a propalada burrice e a "loirice", como havia de se esperar! Coisa chata, ridícula, ofensiva. Parece que a loira burra existe mais virtualmente, na mídia mesmo: triste o fato de que o estereótipo é tão reforçado, que a título de encarnar o poder da fêmea fatal é preciso entrar no personagem, daí o círculo vicioso.
Enfim, gostaria muito de saber mais sobre estas figuras históricas, Tks!
ELA NÃO FOI TRAIDORA ELA REALMENTE GOSTAVA DE HERNAN CORTEZ,OUTRA COISA,NOSSA
ResponderExcluirSENHORA DE GUADALUPE É A MESMA VIRGEM MARIA,NADA VER COM A ÍNDIA MALINCHE,SE
NÃO ACREDITAM EM NOSSA SENHOR TENHAM MAIS RESPEITO.
Nunca li tanta merdx na minha vidx !!! Voces feminitxs adoram desconstruir o obvio. Malinche se entregou ao poder, fez o que lhe convinha, traiu seu povo, crianças, velhos, homens e mulheres, pra usufruir de uma vida no epicentro do poder. Isso acontece com todo mundo, independente de gênero. Estudem mais, e cheguem até Anacaona!
ResponderExcluirThaís, recomendo que vc leia, se ainda não tiver lido, o Manifesto Ciborgue, da Donna Haraway. Nesse texto a autora, inclusive, retoma a história da Malinche. Eu, como historiador, tenho discordâncias sobre este fato, mas vale a pena a leitura. Abraços!
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