Circulando! Sexismo e movimento no espaço urbano

por Barbara Falleiros

Todo dia, voltando da "Grande Biblioteca", eu atravesso dois ou três becos. Modo de dizer, já que são becos modernos, passagens entre prédios recentes, quadrados e envidraçados, em contraste com a arquitetura dos cartões postais de Paris. Ruelas desertas que são tomadas à noite por uma luz lúgubre e esverdeada. Seria um ambiente de história em quadrinhos se não fosse - tenho que confessar - a total ausência de perigo. E é justamente esta falta de perigo real que me faz indagar: por que, mesmo sabendo que não corro risco algum, todo dia aperto o passo, busco segurança nos moradores dos prédios que vejo a preparar o jantar, e penso que "qualquer coisa eu grito com toda a força"? Qualquer coisa o quê? Por que este medo?


Porque a rua, especialmente à noite, é um espaço proibido para a mulher. Não foi essa a lição que quiseram dar aqueles estupradores assassinos indianos no último dia 16 de dezembro? Não foi o que o advogado desses homens afirmou, que "o casal de namorados era o maior responsável pela agressão, pois não deveria estar circulando pelas ruas à noite"?

O pessoal do mimimi provavelmente vai replicar que, em cidades violentas como São Paulo ou Rio, o espaço público é terra de ninguém onde todos se sentem ameaçados. Homens são vítimas de assalto e sequestro, não são? Ao reagirem a uma abordagem, podem ser agredidos ou até morrer, não podem? Não se trata, porém, do mesmo tipo de violência. Causas socioeconômicas explicam a criminalidade urbana e seus desdobramentos. Já a violação da integridade física, moral e sexual da qual mulheres e homossexuais são vítimas, no espaço público, são manifestações explícitas da violência de gênero. Um outro funcionamento.

Quando no mês de dezembro, em São Paulo, o estudante André Baliera foi agredido por dois brutamontes homofóbicos, o que eles disserem para se defender?

Ele mexeu com as pessoas erradas, no lugar errado, no momento errado. E foi agredido. Aprende, nunca mais mexe com ninguém na vida.
Foi agredido, apanhou. Apanhou de besta. Se tivesse seguido o caminho dele não teria apanhado.

Nessas falas, fica evidente como as relações de poder e de gênero condicionam a circulação de pessoas no espaço urbano. Grupos vulneráveis como mulheres, homossexuais e travestis, sobre os quais recai fortemente a violência de gênero, têm restringidos assim os limites de sua circulação. É interessante ver como a declaração dos brutamontes corrobora as conclusões de um geógrafo francês, autor de um relatório sobre a circulação das mulheres na cidade, assim como as constatações da porta-voz de um grande grupo feminista francês:

As mulheres apenas atravessam o espaço urbano, elas não estacionam.
Constatamos que as mulheres andam menos na rua sem ter algo específico para fazer, e que se locomovem rapidamente de um lugar a outro.

Estudos feministas de geografia começaram a mostrar, a partir dos anos 70, que a própria forma de organização das cidades é sexista, que ela "reforça a ordem heteronormativa compulsória" e que seu "planejamento não desenvolveu outras formas de desenvolvimento urbano que não estivessem subordinadas às tradicionais perspectivas da divisão sexual dos espaços, baseada na pretensa naturalidade entre sexo, gênero e desejo" (cito um artigo muito interessante publicado em 2010 na Revista de Psicologia da Unesp, "Espaço urbano, poder e gênero: uma análise da vivência travesti", ao qual voltarei mais abaixo).

Assim, as relações espaciais se constróem com base nas dicotomias entre interior e exterior, entre estaticidade e movimento. Fora do ambiente "protegido" do espaço privado (protegido em termos, pois neste há o risco de violência doméstica), uma mulher sozinha é sempre vulnerável, como um homossexual é vulnerável na madrugada paulistana. A Roberta mostrou recentemente como a responsabilidade de se proteger das agressões  recai sobre a mulher, cabe a ela ser "prudente", "não andar onde não deve", "voltar para casa cedo", "vestir-se adequadamente". Foi o que os brutamontes disseram, não? Que o agredido estava onde não devia? É interessante que tenham mandado a vítima "circular", isto é, ocupar como se espera um espaço que só pode ser atravessado, rapidamente, de cabeça baixa. Eles, os brutamontes, que tentaram esconder a motivação homofóbica da agressão, nem desconfiavam que ao pronunciarem essas palavras tinham acabado de revelá-la.

A oposição entre estaticidade e movimento me faz pensar nas prostitutas, mulheres e transsexuais cuja presença no espaço público é, ao contrário, estática. Paradas, "fazendo ponto". Mas esta estaticidade não lhes confere a mesma liberdade masculina de ocupação dos espaços. Esta presença estática e noturna é atrelada à violência e à exclusão, a uma vulnerabilidade ainda maior. Um indício: minha busca inocente no Google de uma imagem de "travesti no ponto" (soube depois que havia um bug na safe search) resultou em uma série de corpos ensanguentados... no meio da rua ou na sarjeta, no meio desse espaço público que, antes, não puderam ocupar plenamente. No artigo que citei acima, o autor e a autora explicam como os territórios de atuação de cada travesti são definidos:

Elege-se um local de grande tráfico de veículos, onde a passagem de famílias não seja comum, em geral, zonas comerciais e de serviços pesados. Esse tipo de local é considerado discreto porque durante a noite só frequenta a área quem está disposto a participar das relações que ali se estabelecem, em geral homens.

Logo, trata-se de uma estaticidade às margens do espaço. Chamada de "tempo de batalha", a delimitação do território, hierarquizada, é determinada pelas relações de poder e violência assim como pela beleza: o grau de "feminilidade" da transsexual conta na manutenção do ponto. A conclusão d@s autores é a de que estes territórios conferem às travestis, paradoxalmente, uma possibilidade de existência:

Um território que se faz da separação / conexão entre eu e outro, entre centro e margem em constante movimento, possibilitando a seres abjetos, impróprios e interditados à vivência socioespacial, sob a égide da heteronormatividade, criar resistências e existir através de seus territórios.

Uma existência resistente, "apesar de"... Embora a prostituição e a discriminação das travestis sejam problemas específicos, não se pode mais ignorar, no estabelecimento de políticas públicas de segurança, por exemplo, a forma como a heteronormatividade norteia os modos de ocupação urbanos e seus fluxos de circulação. Dizer para um gay circular, para uma mulher não sair sozinha, deixar morrer na sarjeta uma travesti em "área de risco", facetas do violento sexismo que domina o espaço geográfico urbano.

Um comentário:

  1. Aliás, acho que as próprias "cantadas" de rua são uma forma de mostrar pra mulher quem manda e quem não manda. Os homens estão ali para observarem seus corpos e comentarem o que quiserem, e as mulheres que ousarem reclamar ou olhar feio, podem ser agredidas verbal ou fisicamente.

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